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FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS: MUDANÇAS SOCIAIS E SUAS INTERFERÊNCIAS NOS MODELOS FAMILIARES EXISTENTES

Isabelle Cristina Soares da Silva

Rafaela Aparecida Reis

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como finalidade abordar e esclarecer a respeito das uniões simultâneas, também conhecidas como paralelas, que são as novas modalidades familiares.

Trataremos brevemente do modelo familiar presente no ordenamento jurídico brasileiro, fazendo relação do contexto histórico familiar romano até os dias atuais, por meio de dispositivos da Constituição Federal e do Código Civil, abordando o conceito de família atual e vigente e trataremos também do direito civil e a hermenêutica constitucional que tem como finalidade resguardar direitos por meio de análise, interpretação e aplicabilidade da lei e dos valores sociais.

Serão compilados os princípios constitucionais, como liberdade, pluralidade, solidariedade e boa-fé, que são inerentes às formações familiares, sejam elas “novas” ou “antigas”, que busca cada vez mais se adequar à realidade. E será enfatizado o tema principal deste trabalho: a monogamia. Mostrando seu desenvolvimento nas formações familiares, as visões constitucionais e civis, definindo o casamento e os impedimentos matrimoniais, objetivando a sua desqualificação como princípio constitucional, adequando o reconhecimento jurídico, com análise de jurisprudências.

 

1 Histórico sobre a formação familiar

O Código Civil de 1916 considerava que as famílias se constituíram somente por meio do instituto do casamento, o que se difere muito do conceito de família atual, pois o direito de família da atualidade se adequa à realidade social, transformando, assim, a referência do passado e quebrando diversos paradigmas.

A Constituição Federal de 1988 trouxe o reconhecimento da união estável e da família monoparental, concedendo-lhes a proteção do Estado da mesma forma que o casamento em seu art. 226, caput. Desconstruindo, assim, o modelo patrimonial, patriarcal e hierarquizado.

Com as evoluções sociais, novas estruturas familiares surgiram, com o objetivo de desenvolvimento de seus membros, por meio da solidariedade e do apoio emocional, psicológico e cooperativo. O que era entendido como uma função social familiar hoje se atualizou pelos laços afetivos e sentimentos que são de suma importância para a formação da família.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional

Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, [(…])

O Código Civil de 2002 expõe a importância da proteção às estruturas familiares por parte do Estado, tendo em vista o bem-estar social dos entes, de modo que os interesses sociais devem prevalecer sobre os individuais, ou seja, o direito das famílias se trata de um direito privado e a sua formação possui caráter particular que valoriza a liberdade das partes de contrair matrimônio, dissolver e controlar a natalidade.

 

2 Conceito de família na atualidade

Uma nova caracterização de família está surgindo como instituição maleável, ao longo dos séculos, tanto no espaço público quanto no privado, de acordo com as evoluções básicas. Diante disso, leva-se em conta a distinção feita pelo Estado sobre pessoas e relações, segundo entendimento do mestre Venosa[1], entre casados, coniventes, solteiros, separados judicialmente, divorciados, parentes consanguíneos, etc.

A concepção de família paralela ainda enfrenta bastante diferença de opinião perante o Judiciário. Todavia, muito se fala sobre os diversos arranjos familiares, que sempre foram existentes, mas desamparados pelo Estado e pela jurisdição. Decorre, porém, a diversidade de direitos e obrigações presente em uma entidade familiar, precisamente, suas rogativas promovem sua existência e seu reconhecimento que geram efeitos jurídicos.

Dias[2] sustenta um conceito de família simultânea comparada ao concubinato, que tem por base a má-fé, questão no qual transcende a boa e má-fé, pois esse modelo familiar vem cada vez mais se tornando real e hodierno na sociedade.

Haja vista a importância dos direitos constitucionais que dominam o direito de família se vê a ânsia da sociedade em admitir a simultaneidade das entidades familiares. Dessa forma, os princípios da afetividade, princípio da dignidade da pessoa humana e do pluralismo, são de suma importância para examinar a família simultânea. Couto[3], em seu artigo, explica minuciosamente sobre “famílias paralelas e poliafetivas”, tendo em vista que em uma entidade familiar, diante do princípio da pluralidade de entidade familiar e de acordo com a norma aberta de inclusão do art. 226 da CF/1988, que enfatizou do casamento a particularidade de modelo familiar, existe a necessidade de fazer a verificação dos 3 elementos: estabilidade, afetividade e ostentabilidade.

A utilização da efetividade para caracterizar a entidade familiar que não se fundamenta em qualquer afeto, e sim em um sentimento especial, sendo valorizado juridicamente. O afeto familiar tem característica pela intenção de constituir família, o desejo de compartilhar a mesma vida. De acordo com Fiuza[4], o conceito de família hoje decorre do seguinte: família para a promoção do indivíduo, sua autonomia e pleno desenvolvimento da personalidade; família sem necessário casamento, pautada na igualdade entre os filhos e entre os genitores.

Em todos os lares onde houver pessoas ligadas, seja por laços de sangue ou não, unidas pelo afeto, pelo plano de concretização das aspirações de cada uma delas e daquele núcleo como um todo, concatenadas e organizadas econômica e psicologicamente, haverá uma família.

Ademais, Krapf[5] destaca em sua obra que, para haver o paralelismo familiar, tem que se verificar, seja simultaneamente a um casamento ou a uma união estável, se é desejável que sejam preenchidos os requisitos, que se assemelham muito com as hipóteses para caracterizar a união estável e demonstrar a ostentabilidade e estabilidade no vínculo afetivo, visto que não se planeja a tutela de relação eventual, mas sim a proteção dos membros e porventura os frutos dessa união estável.

Nessa mesma linha de raciocínio também temos o entendimento de Almeida[6], que apresenta: “A família paralela como outros fenômenos sociais que buscaram o reconhecimento jurídico, precisa vencer barreiras e principalmente romper um dos parâmetros sociais de maior carga dogmática, qual seja o ideal de monogamia”.

Vale enfatizar que os relacionamentos “casuais”, por não serem considerados estáveis, juridicamente falando, não se moldam no âmbito das relações familiares, e, diante disso, não auferem proteção à luz da legislação.

 

3 O DIREITO CIVIL E A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

O Estado Democrático de Direito é assimilado como “governo do povo”, que age sob os limites da legislação e procura sanar as necessidades da sociedade. Nessa conjuntura, a Constituição Federal assegura em seu preâmbulo, que tem o intuito de instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social […].[7]

Para que se tenha correta aplicabilidade do direito civil, Gustavo Tepedino[8] mostra que se faz indispensável uma inovação no modelo interpretativo da lei, em que o Código Civil faça associação de normas que descrevam valores e parâmetros hermenêuticos, e que o intérprete legislativo viabilize a conexão entre o CC/2002 e a CF/1988, que esclarece tais valores e princípios fundamentais à manutenção da ordem pública.

A constitucionalização do direito civil atua absolutamente nas relações privadas, pelo motivo de ser interpretado e, por esse motivo, aplicado contemplando valores e princípios expostos na Constituição, evidenciando o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade.

Tepedino ainda mostra que existem quatro características centrais da técnica legislativa contemporânea*: a narrativa, que possibilita uma atuação refinada e conjunta dos valores jurisprudenciais e dos valores sociais; a exploração de técnicas legislativas, que possibilitem garantir uma vasta efetividade dos critérios hermenêuticos, por meio da definição dos princípios que devem ser tutelados, proporcionando esclarecimento dos aspectos que descrevem a identidade cultural, de forma que tenha total inserção entre o caso concreto e o preceito normativo; a ampliação dos mecanismos de tutela da personalidade, que deve ser apontada como um valor jurídico, de maneira mais ampla, haja vista que atualmente o modelo do direito subjetivo tipificado é escasso para expectar todas as demandas diligenciadas juridicamente; e a elaboração de doutrinas que abordem os direitos de personalidade, a tipificação de situações antecipadamente estipuladas, nas quais pudesse refletir o ordenamento, a fim de que não se oculte a realidade.

A modernidade fez com que surgisse um inovador modelo constitucional, e, assim, uma nova ordem social, jurídica e política. Diante disso, a CF se expõe como o documento supremo dos ideais e dos requisitos modernos, portanto, sendo símbolo dessa nova filosofia.

A quimerização da Constituição escrita teve o intuito de multiplicar as conquistas e trazer segurança ao homem, que são segundo Baracho[9]:

a) crença na superioridade da Constituição escrita sobre a Constituição costumeira por, justamente, atribuir maior certeza à conquista dos direitos;

b) proporcionar a ideia de renovação do contrato social;

c) representar um insuperável meio de educação política, difundindo entre os cidadãos o conhecimento de seus direitos.

Nesse sentido, Canotilho[10] aponta que constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos.

A Constituição escrita foi o marco inicial para a aclamação do princípio da supremacia da Constituição. A hermenêutica constitucional possui impasses interpretativos que a torna diferente da hermenêutica jurídica clássica, no que tange à originalidade, à hierarquia, à supremacia da constituição e ao fator de ser fonte normativa. Decorre que considera que exista apenas uma hermenêutica, em que a apreciação da Constituição não se diferencia da interpretação das demais leis.

E, ainda, Hesse[11] estabelece que exista apenas uma hermenêutica jurídica, que projeta novos preceitos de interpretação, sendo comparado pela unidade da Constituição, a concordância prática entre o conflito e os bens protegidos, a exatidão funcional no que se refere à separação dos poderes, o efeito integrador, a força normativa da Constituição de forma atualizada e efetiva, e a interpretação conforme o padrão constitucional, afastando, então, os sentidos ambíguos ou indeterminados.

Assim, a hermenêutica jurídica é a arte de interpretar e determinar o alcance do Direito, passando a ter sua aplicabilidade realizada de forma equilibrada e justa O que o legislador deve ter claro em mente é que a interpretação dos textos normativos, das doutrinas e das jurisprudências precisa ocorrer de forma delicada, jamais sendo de forma automática ou mecânica, devido à interpretação sofrer diversas mudanças, assim como a realidade social.

Tendo transformações e anseios da sociedade, se faz indispensável a periodicidade de uma atualização do ordenamento jurídico, para que não ocorram interpretações errôneas e, muito menos, que algum direito seja violado ou negado.

 

4 Aplicabilidade dos Princípios Constitucionais no Direito de Família

Para falarmos dos princípios que ordenam as relações familiares, é necessário sabermos que eles não devem ser aplicados de forma definitiva ou integralmente, pois precisam de interpretação. Dessa forma, os princípios, quando há atritos, devem ser ponderados e aplicados em relevância ao caso concreto. Deve- se instituir de acordo com o art. 1º da CF/1988 que o princípio da dignidade humana tem como diretriz conduzir toda a sociedade e ser uma base do Estado Democrático de Direito, que visa à justiça e equidade de seus membros.

Existem também outros princípios que norteiam e se aplicam no direito de família, no qual deve ser confundido com valores, pois, segundo Robert Alexy[12], princípios referem-se a dever, permissão ou direito a alguma coisa; já os valores referem-se à denominação do que é bom ou ruim, obedecendo à hierarquia.

 

4.1 Princípio da boa-fé

Princípio que abarca a boa-fé dos companheiros dentro daquela união, no que se refere à descoberta da existência de uma família simultânea à primeira união, aquela união oficial e legal. Não se deve falar em suposição de união, pelo mero fato de ser vista por todos que integram a relação, podendo referir-se, por exemplo: a figura feminina que é casada com o sujeito e com ele detém bens e filhos, e sabe-se que o sujeito possui relação, bens e família com uma terceira pessoa. Vale ressaltar que, com relação a essa terceira pessoa da relação, para que seja caracterizada uma união simultânea, é necessário que possua alguns requisitos que sejam norteadores da entidade familiar.

A honestidade é o principal pilar da boa-fé, não podendo alegar que exista uma pessoa com prejuízo na relação, uma vez que todos terão os direitos sucessórios resguardados em caso de falecimento do cônjuge que possuir famílias dúplices.

Mesmo não constando no Código Civil e nem na Constituição Federal, a união simultânea não pode ser negada pela jurisprudência e pela legislação, uma vez que a sociedade se modifica, e negar a essas famílias os direitos cabíveis é estar negando os direitos constitucionais.

Vale ressaltar que os elementos que compõe a família contemporânea são: o afeto, o desejo de constituir família e ser uma relação pública e duradoura, onde os integrantes que dessa constituição familiar tenham obrigações.

 

4.2 Princípio da liberdade

Esse princípio versa sobre a mínima intervenção do Estado no âmbito familiar, por estar relacionado à intimidade. Aos membros é conferida liberdade para compor ou acabar com a entidade.

Portanto, a liberdade é fundamental para a felicidade, afetividade e convivência comum com os demais membros da família, pois o indivíduo dotado de consciência tem a capacidade de escolher o que é melhor para si, e, assim sendo, um direito de suma relevância para toda a sociedade. Desse modo, a liberdade deve ser vista como essencial para promover a dignidade, a autonomia e a solidariedade.

 

4.3 Princípio da igualdade

Sobre esse princípio, podemos destacar a importante conquista da mulher em um contexto de evolução social dentro da sociedade conjugal. Ela conquistou mais espaço e obteve mais condições de igualdade. Essa paridade está assegurada no art. 226, § 5º, da CF/1988.

Tal conquista não foi apenas das mulheres, mas também dos filhos, que, a partir de então, começaram a ter reconhecimento, independentemente de serem adotivos legítimos ou naturais, sendo proibido qualquer tipo de distinção.

 

4.4 Princípio da solidariedade

A esse princípio liga-se a responsabilidade entre os membros na busca ao respeito, ao auxílio, à tolerância, à cooperação, à harmonia e à igualdade na tratativa. Ele complementa a dignidade da pessoa humana, pelo simples fato de que, no âmbito familiar, a solidariedade é o caminho que busca o desenvolvimento, crescimento e êxito individual de seus membros.

Constata-se, dessa forma, que a solidariedade familiar sobressalta a confiança e lealdade entre os seus componentes, podendo afirmar que nas famílias simultâneas ou paralelas a solidariedade prova a confiança e lealdade entre os conviventes.

 

4.5 Princípio da pluralidade

No que versa a esse princípio, a família possui diversas formas de serem constituídas que se adapta às necessidades e aos interesses sociais. O Código

Civil e a Constituição estabelecem os modelos de entidades familiares, o que propiciou uma grande evolução no direito de família.

Atualmente, a incidência da falta de atualização do texto normativo para acompanhar as diversas modificações da sociedade fez com que a doutrina e jurisprudência adotassem novos conceitos de família.

O Código Civil de 2002 refere-se apenas a alguns modelos familiares, onde classificaremos a espécie familiar das formas a seguir: concubinato, família matrimonial, união homoafetiva, família paralela, união estável, família anaparental, família unipessoal, eudemonista, família pluriparental e família monoparental.

Os principais fatores necessários para que seja construída essa entidade familiar são: a estabilidade, o afeto, a ostentabilidade e o desejo de constituir família. Dessa forma, a família que deseja impulsionar é aquela que tenha compromisso com a união estável, que tenha cooperação de seus membros, cumprindo, assim, a principal função, que é a de proteção aos integrantes de forma solidária.

 

5 Famílias Simultâneas e a Monogamia como valor social

A monogamia pode ser vista como a simples relação entre homem e mulher, onde os cônjuges têm que preencher preceitos formais preestabelecidos pelo Estado e possuírem a intenção de formar uma família, não podendo, assim, ter mais de uma união com outra pessoa.

Com relação ao fato de o casamento ser visto como um contrato de dualidade, qualquer tipo de relação que se difere desse modelo é visto como um desvio às regras morais.

Porém, o conceito de monogamia não é o mesmo que fidelidade. No entanto, não podem ser aplicados juntos. A fidelidade é o fruto de uma escolha individual e pessoal, e, assim, o Estado não tem a capacidade de controlar esse tipo de comportamento.

Esses vários modelos familiares vêm demonstrar que não há mais temor no abandono e na estrutura familiar enraizados na sociedade, sendo considerada única relação existente, legítima e aceita pela Igreja. Sobressaltar a monogamia a um princípio constitucional é retroceder, visto que essa caracterização não passa de uma mera valorização de conduta moral criada pela Igreja Católica e nega a pretensão e o reconhecimento dos vários núcleos familiares que vêm se originando com o passar do tempo.

Atualmente, a família é constituída pelo desejo de seus membros, mas com respeito aos requisitos, de forma a não se importar se é monogâmico ou não, e sim levar em consideração a escolha de todos os indivíduos. A simultaneidade conjugal origina-se a partir da constituição de duas ou mais famílias, em que ambos os cônjuges formam famílias distintas na condição de companheiro, sendo estabelecidos a honestidade, a ética, o consenso, o afeto e o intuito de formar família.

Sob a holística do art. 235 do CP, que se refere à bigamia e à punição ao fato de constituir um novo casamento com um indivíduo que já é casado, é um dos fatores para impor o princípio da monogamia, dando possibilidade aos membros da família de receberem tutela. Insta salientar que o seio familiar é um local reservado à liberdade, transformação e formação de cidadãos. A partir daí, limitar a liberdade individual vai requerer um amparo social embasado no art. 1.513 do CC.

Frente ao surgimento de inúmeras demandas sociais por igualdade de direitos, cabe à legislação resolver conflitos de interesses que decorrem desse fato e consagrar a importância do surgimento de requisitos basilares da formação de novas famílias.

 

5.1 Definindo família simultânea, poliamor e bigamia

A abordagem do artigo a respeito do surgimento de relacionamentos não monogâmicos, na atualidade, enfatiza as suas principais características e os conceitos que visam ao reconhecimento jurídico. Não se pretende explanar qualquer relacionamento não monogâmico, mas reservadamente daqueles que possuem requisitos essenciais e primordiais que caracterizem uma família. Dessa forma, relacionamentos abertos, orgias, trizal e swing não devem ser confundidos com famílias simultâneas e poliamor.

A terminologia família simultânea é muito vasta e abrangente. Compreende-se que família simultânea pode ser considerada uma questão de gênero, e entre suas espécies está a família paralela.

As famílias paralelas, de acordo Dias[13]: são relações de afeto ou vínculos afetivos concomitantes, denominados no mundo jurídico como concubinato impuro, adulterino, impróprio e espúrio.

Por meio desse conceito explanado pela autora, pode-se afirmar que as famílias paralelas são vínculos concomitantes de conjugalidade ou companheirismos vividos por um indivíduo comum a ambas as formações sociais. Portanto, as famílias paralelas evidenciam claramente duas situações: uma é prevista no art. 1.727 do Código Civil brasileiro, denominado concubinato; e outra, a concomitância de vínculos de companheirismo, que em certa medida é equiparada pela doutrina como concubinato também.

Atentando-se ao fato de que as famílias paralelas não devem ser confundidas, nem são constituídas por meio de uma relação qualquer fora do vínculo conjugal, ou seja, não advém de uma mera traição, tem que cumprir os requisitos, que a caracterizam como uma família, que são: afetividade, estabilidade e ostensibilidade.

O surgimento de poliamor advém das várias mudanças de paradigmas da sociedade, ou seja, em decorrência das várias mudanças na ação e nos pensamentos da sociedade, trazendo, assim, um novo conceito norteador de relação amorosa. “É a capacidade de um indivíduo amar e ser amado por mais de uma pessoa”[14].

Embora essa concepção seja norteadora para caracterização das relações, esse conceito apresenta deficiência para esclarecer o tema. Dessa forma, a autora Sandra Freire juntou várias definições trazidas por diversos outros autores e ressaltou:

Entretanto, vale ressaltar que tais definições possuem algo em comum, uma vez que o termo é geralmente usado para se referir à prática de ter um relacionamento íntimo e sexual simultâneo com mais de uma pessoa, com o consentimento e conhecimento de todos os envolvidos. Neste sentido, consideram ser possível e aceitável amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo.[15]

Em outras oportunidades, a autora ainda acrescenta outros elementos caracterizadores, a calhar:

É importante ressaltar que os adeptos do poliamor enfatizam mais o amor do que a sexualidade, por isso a preferência do termo “poliamorosos”. Apesar de dar a devida importância ao sexo, seu principal objetivo não é ter muitas relações sexuais, e sim compartilhar experiências e sentimentos. Ainda, pode-se dizer que neste tipo de relação não existe traições, pois todos os envolvidos sabem e consentem a não exclusividade do parceiro.[16]

Frente a essa nova formação, estava explícito que dela poderia vir a surgir novas famílias, apresentando, assim, os elementos da afetividade, ostensibilidade e estabilidade.

É de suma relevância que se faça o reconhecimento dessas uniões como família, pois apresentam várias formas de relacionamentos poliamorosos, entre elas as mais comuns são as tríades. Sobre as possíveis formas de constituição de um poliamor, Sandra Elisa de Assis Freire afirma:

“Weitzman, Davidson e Phillips (2009) consideram que o poliamor pode assumir várias configurações, todas adaptáveis aos desejos, às necessidades e aos acordos dos indivíduos envolvidos. Estas formas incluem:

(1) primário – casal em uma relação primária concorda em buscar outros relacionamentos, podendo desenvolver relações profundas e sérias ou terem amantes ocasionais;

(2) tríade – três pessoas desenvolvem uma relação de compromisso íntimo.

É mais frequente quando um casal já existe e inclui uma terceira pessoa; e

(3) casamento grupal ou poli família – três ou mais pessoas formam um coeso sistema de relacionamento íntimo. Eles podem ter exclusividade sexual entre os participantes do grupo (isto é chamado de polifidelidade) ou podem concordar com as condições em relação a ter parceiros fora do grupo”.[17]

Os efeitos do reconhecimento de uma relação poliamorosa se dão assim como no modelo de família paralela, haja vista que, por mais que exista concordância à simultaneidade, não havendo os elementos ciúmes e traição, o caso se refere à composição de dois núcleos distintos, podendo ser comparado à formação de uma família paralela, onde todos os envolvidos sabem um do outro.

Já a bigamia, na esfera criminal, é vista como atitude ilícita e estão amparada no art. 235 do Código Penal, que versa:

Art. 235. Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena – reclusão, de dois a seis anos.

1º Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.

2º Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.[18]

 

6 Divergências jurisprudenciais

Podemos exemplificar as divergências jurisprudenciais a respeito do reconhecimento das uniões estáveis simultâneas, como entidades familiares. Dessa forma, cito o julgamento da Apelação nº 70064783335 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que não reconhece a família simultânea como entidade familiar:

APELAÇÃO CÍVEL – UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO – IMPOSSIBILIDADE – PRECEDENTES DO STJ E STF – 1. Os elementos dos autos informam que houve vida dupla pelo falecido, que se relacionava com a autora, mas preservava íntegro, no plano jurídico e fático, seu matrimônio até o dia do óbito. Tratou-se, pois, de uma relação adulterina típica, que se amolda ao conceito de concubinato (art. 1.727 do CCB), e não de união estável. 2. Nosso ordenamento jurídico, no âmbito do direito de família, é calcado no princípio da monogamia. Tanto é assim que, um segundo casamento, contraído por quem já seja casado, será inquestionavelmente nulo e, se não são admitidos como válidos dois casamentos simultâneos, não há coerência na admissão de uma união de fato (união estável) simultânea ao casamento – sob pena de se atribuir mais direitos a essa união de fato do que ao próprio casamento, pois um segundo casamento não produziria efeitos, enquanto aquela relação fática, sim.

Ademais, há regra proibitiva expressa em nosso ordenamento jurídico, qual seja o § 1º do art. 1.723 do CCB, ao dispor que “a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521”, somente excepcionando essa circunstância diante da comprovada separação de fato do casal matrimonial, o que não se verifica no caso em exame. Negaram provimento. Unânime. (TJRS, Apelação Cível nº 70064783335, 8ª Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos,J. 06.08.2015)

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – DIREITO DE FAMÍLIA – UNIÕES ESTÁVEIS PARALELAS – IMPOSSIBILIDADE –

RECONHECIMENTO DE RELACIONAMENTO EXCLUSIVO DO FALECIDO

COM A AUTORA – MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA – SÚMULA Nº 7/STJ

– AGRAVO NÃO PROVIDO – 1. Esta Corte Superior entende ser inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis paralelas. Precedentes. 2. Na hipótese dos autos, o Tribunal estadual consignou a existência de vários relacionamentos concomitantes entre o de cujus e outras mulheres, inclusive de casamento. Infirmar as conclusões do julgado, para reconhecer a existência de união estável exclusiva com a autora, demandaria o revolvimento do suporte fático-probatório dos autos, o que encontra óbice no enunciado da Súmula nº 7 desta Corte Superior. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ, AgRg-AREsp609856/SP, 2014/0269156-8, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 19.05.2015)

No entanto, a Apelação Cível nº 19048/2013 do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) reconheceu a possibilidade de união estável simultânea.

Os Desembargadores da 3ª Câmara Cível do TJMA, por unanimidade, deram provimento, nos termos do voto do Relator, o Desembargador Lourival Serejo. Segue a análise do voto:

“O presente tema é um dos mais desafiadores no cenário atual do Direito de

Família. Para ficar bem delineado o problema, passarei a apreciá-lo em partes.

Inicialmente, vale consignar que a matriz normativa da união estável reside no art. 226 da Constituição Federal, assim anunciado:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

1º O casamento é civil e gratuito a celebração.

2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

Com efeito, verifica-se que a Carta Magna, prestigiando o pluralismo democrático, concebe como entidade familiar o vínculo afetivo decorrente do casamento, da união estável e das relações monoparentais, atribuindo ao legislador ordinário o mister de conferir densidade normativa aos conceitos das normas constitucionais, como é o caso do instituto da união estável. O Código Civil optou por tratar as uniões fora do casamento com muito rigor, qualificando-as como mero concubinato (art. 1.727). Para minorar esse rigor, o § 1º do art. 1.723 admitiu a possibilidade de configurar-se a união estável desde que haja separação de fato. Portanto, na previsão legal, a separação de fato se apresenta como conditio sine qua non para o reconhecimento de união estável de pessoa casada.”

O Desembargador Relator discorre sobre a previsão legal da união estável em nosso ordenamento jurídico. Pode notar que ele traz à realidade um problema, visto que o Código Civil prevê, se não como concubinato, a possibilidade da existência de uma união estável unicamente se houver a separação de fato.

Prossegue o Relator:

“Entretanto, a força dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhidas jurídicas para não ficarem no limbo da exclusão. Dentre esses casos, estão as famílias paralelas que vicejam ao lado das famílias matrimonializadas. A família tem passado por um período de acentuada evolução, com diversos modos de constituir-se, longe dos paradigmas antigos marcados pelo patriarcalismo e pela exclusividade do casamento como forma de sua constituição. Dentre as novas formas de famílias hoje existentes, despontam-se as famílias paralelas: aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável.

Se a lei lhe nega proteção, a justiça não pode ficar alheia a esses clamores. As leis, diz Jacques Derrida, em sua obra Força de lei, não são justas como leis. Quer dizer, o enunciado normativo não encerra, em si, a justiça que se busca. Só a equidade pode adaptar a letra da lei ao caso concreto.”

Dessa forma, na análise do v. acórdão, Serejo é prossegue discorrendo sobre a necessidade de amparo e proteção legal ao núcleo familiar das famílias simultâneas, principalmente no que tange à existência de filhos, não existindo que se falar em ofensa ao princípio da monogamia, sendo que, na maioria das vezes, as esposas legítimas sabem da existência de outra família:

“Não se pode deixar ao desamparo uma família que se forma ao longo de muitos anos, principalmente quando há filhos do casal. Garantir a proteção a esses grupos familiares não ofende o princípio da monogamia, pois são situações peculiares, idôneas, que se constituem, muitas vezes, com o conhecimento da esposa legítima. A doutrina e a jurisprudência favorável ao reconhecimento das famílias paralelas como entidades familiares são ainda tímidas, mas suficientes para mostrarem que a força da realidade social não deve ser desconhecida quando se trata de praticar justiça. O seguinte julgado bem exemplifica essa visão:

APELAÇÃO CÍVEL – UNIÃO ESTÁVEL – RELACIONAMENTO PARALELO AO CASAMENTO – As provas carreadas aos autos dão conta de que o de cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união estável com a autora por mais de vinte anos. Assim, demonstrada a constituição, publicidade e concomitância de ambas as relações familiares, não há como deixar de reconhecer a união estável paralela ao casamento, que produz efeitos no mundo jurídico, sob pena de enriquecimento ilícito de uma das partes. O termo inicial da união estável é o período em que as partes começaram a viver como se casados fossem, isto é, com affectio maritalis.”

Ainda sobre o respeitável voto do Relator Serejo:

“Para a familiarista Giselda Hironaka, a família paralela não é uma família inventada, nem é família imoral, amoral ou aética, nem ilícita. E continua, com esta lição: Na verdade, são famílias estigmatizadas, socialmente falando. O segundo núcleo ainda hoje é concebido como estritamente adulterino, e, por isso, de certa forma perigoso, moralmente reprovável e até maligno. A concepção é generalizada e cada caso não é considerado por si só, com suas peculiaridades próprias. É como se todas as situações de simultaneidade fossem iguais, malignas e inseridas num único e exclusivo contexto. O triângulo amoroso sub-reptício, demolidor do relacionamento número um, sólido e perfeito, é o quadro que sempre está à frente do pensamento geral, quando se refere a famílias paralelas. O preconceito – ainda que amenizado nos dias atuais, sem dúvida – ainda existe na roda social, o que também dificulta o seu reconhecimento na roda judicial.[2] Em trabalho de minha autoria, publicado em obra coletiva pela Revista dos Tribunais, tive oportunidade de tecer as seguintes considerações sobre esse tema, as quais são reproduzidas aqui, em destaques soltos, na sequência que segue[3]: Apesar de não constar expressamente em nenhum dispositivo, a monogamia é a regra do nosso sistema legal. Conclusão que resulta da análise sistemática do nosso ordenamento jurídico, em que a bigamia é crime capitulado no art. 235 do Código Penal e, entre as causas de nulidade do casamento, está a comprovação de casamento anterior ainda válido (arts. 1.521, VI, e 1.548, II, ambos do Código Civil). Logo, só é permitido ao brasileiro manter um casamento em vigor, ainda que o divórcio tenha permitido a poligamia em série ou a monogamia sucessiva. Enquanto não declarado nulo ou extinto pelo divórcio, o casamento, no Brasil, é único e monogâmico. Entretanto, impõe-se que se atente para a evolução dos fatos ocorridos nos últimos anos. A poligamia em série, como se verifica hoje, relativizou o conceito rígido de monogamia, que significava um homem exclusivamente de uma mulher, por um longo período de convivência e, muitas vezes, por todo o tempo de vida.

Não importa se a monogamia rigorosamente está ligada à existência de um casamento. A possibilidade de três casamentos, em cinco anos, é monogamia relativa. Essa possibilidade, que atenta contra o conceito tradicional de família é legal, em nosso ordenamento jurídico. É uma decorrência da liquidez do amor de que fala Zigmunt Bauman. Essa relativização expande-se cada vez mais, paralela ao nosso ordenamento jurídico, pela força da realidade social e pela reiteração de casos. Outro exemplo dessa postura é a revogação do crime de adultério, uma raridade legal que só se mantinha por uma tradição legislativa. Nunca tomei conhecimento de alguém que tenha sido condenado pelo crime de adultério, no Brasil. Conta-se, como arquivo curioso de museu, que lá pela década de quarenta, um advogado maranhense teria sido preso por crime de adultério. […]

Se o nosso Código Civil optou por desconhecer uma realidade que se apresenta reiteradamente, a justiça precisa ter sensibilidade suficiente para encontrar uma resposta satisfatória a quem clama por sua intervenção.

Percebe-se que o princípio da monogamia é afastado, haja vista o preenchimento dos requisitos para a constituição de uma união estável paralela, que são: a constituição, a publicidade e a concomitância a outra relação, devendo-se, então, reconhecê-la, a fim de que produza efeitos jurídicos, para que haja proteção legal a relação familiar. Compreende-se a necessidade de acompanhar as mudanças que vão surgindo na sociedade, como, por exemplo, a poligamia em serie e, também, a existência de famílias simultâneas.

[…]

Apesar da polissemia do termo, para melhor objetividade deste estudo, trato aqui do concubinato segundo a terminologia do Código Civil (art. 1.727), isto é, a família paralela ao casamento, dispensando-se, portanto, o adjetivo adulterino, já contido na ideia de concubinato. Apesar da clareza da opção do Código Civil, não há uniformidade na doutrina e na jurisprudência sobre essa terminologia, o que torna mais difícil a sistematização do tema. […] A realidade formal que desponta do nosso Código Civil é de que o concubinato é uma união marginal, sem proteção legal, fora do conceito de casamento e de união estável, para cuja formação requer-se a condição de pessoas desimpedidas.

[…]

Não é possível desconhecer a existência de um concubinato que se desenvolve ao lado do casamento, principalmente quando ambos são marcados pelo afeto e pela estabilidade duradoura, pela existência de filhos, pela publicidade, pela dependência econômica e, mais ainda, pela própria conivência da esposa do concubino. É preciso pesar as circunstâncias fáticas e as de direito, com base na equidade, como já recomendou, com precisão, a jurisprudência favorável.

[…]

A realidade do concubinato não pode ser desconsiderada pelo direito, nem tratada como mera relação comercial. Não se pode desconhecer a existência de afeto sustentando essas uniões, tanto que a maioria resulta na formação de prole. […]”.

O Desembargador faz uma análise concreta do caso e explana:

“Nos autos, temos a história de Zelinda Maria Waquin Anceles e Manoel de Jesus Pontes de Carvalho. Ele, médico, na cidade de Rosário, por muitos anos, a ponto de ter sido eleito para o cargo de vereador naquele município. As testemunhas ouvidas apontam para a existência de união simultânea do falecido com sua mulher Nelcy Paixão Carvalho. O casal vivia em casa adquirida por ele, num conjunto distante do centro da cidade. A esposa do de cujus, quando ia a Rosário, ficava hospedada na casa de sua irmã, sabendo que o Dr. Manoel estava em outra casa, com a companheira. Analisa-se e comprova-se, ainda, o tempo e a visibilidade da união por 17 (dezessete) anos, conforme depoimento das testemunhas. Além do que, a companheira trabalhava com ele em sua clínica, reformada durante a convivência. E então, postas essas circunstâncias, como negar a existência dessa união que persistiu até a morte do companheiro?

Como negar a essa companheira uma parte do espólio, como recompensa e como reconhecimento de sua posição na entidade familiar? Vejamos o que dizem as testemunhas ouvidas. A testemunha Raimundo Nonato Torres Gomes disse que:

“[…] a convivência marital da autora com o de cujus era de conhecimento público, inclusive teve início porque ela trabalhava na clínica dele como auxiliar de enfermagem e secretária; QUE a autora tinha um relacionamento com o senhor Tenório, inclusive tiveram filhos, sendo que ao conhecer o de cujus a passar a se relacionar com ele, a autora terminou o primeiro relacionamento; QUE pelo fato de residir em cidade pequena, todo mundo conhecia a autora como companheira do de cujus; QUE o de cujus saía com a autora e as solenidades que ele comparecia, sempre estava acompanhado dela; QUE ele apresentava a autora como sua companheira; QUE após o falecimento a autora não está mais residindo na casa, visto que a mesma está fechada, não sabendo explicar os motivos.” (fls. 182-183)

Por sua vez, as testemunhas Francisco de Assis Alves de Paula e Vicência Marques Cantanhede, ao serem indagadas sobre os fatos, responderam que:

“[…] QUE a autora residia na mesma casa que o de cujus, sendo de conhecimento público o relacionamento deles, inclusive afirma que por diversas vezes os encontrou em festas, em Serestas que antigamente eram realizadas nas ruas; QUE o depoente nessas festas estava acompanhado de sua esposa e o de cujus, da autora; QUE na verdade quando o conheceu já convivia com a autora; QUE na época em que o de cujus era Vereador comentou com o depoente da existência de filhos que moravam em São Luís e que alguns deles viriam durante uma sessão da Câmara Legislativa, para ajudá-lo; QUE em nenhum momento o de cujus fez referência da existência da requerida Nelcy Paixão; […] QUE conhecia a autora como esposa do de cujus e não como amante, até porque não tinha conhecimento da existência da requerida; QUE não sabia, nem por ouvir falar, que o de cujus tinha uma outra família morando em São Luís.” (fl. 185)

“[…] QUE Zelinda durante a convivência com o de cujus morou na casa da Cohab II, o qual se prolongou até o falecimento dele; QUE é do conhecimento da depoente que quando a autora passou a se relacionar amorosamente com o de cujus, este já possuía vários bens, como a clínica, a casa da Cohab II, onde moraram, outros imóveis em Itamirim, S. João do Rosário, Itaipu, etc.; QUE no período entre 1989 a 1990, a requerida com os filhos vinham com mais frequência para Rosário durante as férias; QUE a requerida Nelcy Paixão quando vinha para Rosário passou a ir para a casa do irmão porque sabia que seu marido, o de cujus estava morando com a autora.” (fl. 190)

Finalmente, João Moreira Correia, também testemunha da apelante, afirmou que:

“[…] não sabe informar se ele ia com freqüência nessa casa em São Luís e qual o vínculo que ele mantinha com a requerida Nelcy Paixão, até porque não os conhecia, passando a conhecer somente quando compareceu ao Fórum para audiência; QUE antes pegar essa carona com o de cujus e ele lhe dizer que tinha uma família morando em São Luís, não era do seu conhecimento, nem as pessoas comentavam aqui em Rosário que existia uma mulher e filhos residindo em São Luís; […]”

Os depoimentos acima transcritos formam o arco de provas suficientes para confirmar o status de companheiros entre Zelinda e Manoel.

Diante das provas colhidas, principalmente as provas testemunhais, o julgador concluiu:

O casal vivia na cidade de Rosário ostensivamente como se casados fossem.

Moravam e trabalhavam juntos. Unia-os, além dessas circunstâncias, o afeto que dedicavam um ao outro. Por que, então, não reconhecer uma união estável que vicejou sadia em substituição a um casamento moribundo? Pela sua pertinência ao tema e ao instante final deste voto, invoco mais uma vez a doutrina especializada, nas palavras de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk:

Enfatize-se, por derradeiro, que a possibilidade de se refletir a respeito da eficácia da simultaneidade familiar é sintomática da consolidação de um novo olhar do direito sobre o fenômeno familiar, e, mesmo, de uma gradual superação dialética das concepções enclausuradas no dogmatismo positivista.”

À luz das considerações acima expostas, contra o parecer ministerial, dou provimento ao recurso, reformando a sentença impugnada, para o fim de julgar procedente o pedido formulado na petição inicial de fls. 2-7, declarando a existência de união estável entre Zelinda Maria Waquin Anceles e Manoel de Jesus Pontes de Carvalho, falecido, com todas as repercussões de direito. É como voto.

Sala das Sessões da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do

Maranhão, em São Luís, 10 de julho de 2014.”

Então, julgou cabível o reconhecimento de existência da união estável paralela, por que estava evidente o afeto de um para com o outro.

Ficou comprovado, por meio de provas produzidas, que a relação criou uma proporção tão séria e comprometido a ponto de se tornar um núcleo familiar com todas as ênfases do direito. No estudo deste caso é notória a atenção do julgador no que se refere ao fato vivido pelo “bígamo” que mantém um nível de afetividade e formalidade em seu casamento a ponto de não se separar de fato.

 

7 Reconhecimento Jurídico da Família Simultânea

Inicialmente, as uniões simultâneas eram consideradas concubinato, passando, assim, a entrar na esfera jurídica em busca do reconhecimento de direitos e igualdades. Com a finalidade de comprovações, se fez necessário que provasse o convívio e a constituição de patrimônio conjunto para que não houvesse considerações de uma possível obtenção ilícita de lucros.

Com a aceitação pelo ordenamento jurídico da união estável, o concubinato foi visto com outros olhos pela legislação, assegurando e possibilitando os mesmos direitos sem possíveis descriminações. Dessa forma, os tribunais estão sendo obrigados a se reorganizarem a uma nova realidade social e fazer análises fáticas, buscando uma aplicabilidade do Direito mais sensato, não causando a desigualdade entre as partes.

Com base no princípio da monogamia, a doutrina e a jurisprudência não possibilitam que seja reconhecida a simultaneidade familiar, ou seja, a poliafetividade seria considerada um obstáculo matrimonial. Entretanto, o relacionamento simultâneo originado da má-fé não dá essa possibilidade de reconhecimento diante o Judiciário, vez que a boa-fé é um dos principais requisitos entre os cônjuges.

Há divergência jurisprudencial em torno do reconhecimento das uniões estáveis simultâneas como entidade familiar, como retratam diversos julgados no nosso ordenamento jurídico.

Via de regra, não dá para prever as limitações jurídicas das famílias paralelas, e, sendo assim, devem-se buscar exemplos de demandas que podem aflorar os arranjos familiares.

Dessa forma, negar que existam novas uniões é não querer ver a realidade e, como consequência, não proteger essas famílias por causa de um preconceito, ferindo, assim, o direito de liberdade.

Ao se deparar com essa explícita realidade, o STF reconheceu o direito à partilha e o direito de reconhecimento da união. Entretanto, no que diz respeito aos vínculos jurídicos de filiação, a adoção pode ocorrer em 2 hipóteses: pela monoparentalidade ou por meio de pessoas casadas ou em união estável. O que é de suma relevância é o princípio do melhor interesse para a criança, com vínculo ao princípio da dignidade da pessoa humana, permitindo, assim, que seja oferecida uma ética psicológica adequada a ela. Portanto, os filhos adotados têm os mesmos amparos legais que os filhos consanguíneos.

Podemos assemelhar essa situação a uma guarda compartilhada, embasada e com ênfase aos laços reais de afeto, e não apenas aos laços biológicos que submetem aos filhos uma convivência em duas famílias diversas, quando os genitores passam a se relacionar com um terceiro.

 

 

CONCLUSÃO

Ante o estudo apresentado, podemos concluir que as regras regulamentadoras ao direito de liberdade de sociedade são produzidas pelo Estado, impondo, assim, limitações que são diretamente conectadas a aspectos sociológicos, que, por sua vez, deveriam ter uma legislação capaz de reunir valores sociais e adaptar o conteúdo da norma ao caso, encaixando em suas peculiaridades.

As novas formações familiares são frutos de uma mudança social que a legislação não pode desprezar; no entanto, deve buscar a aplicação e interpretação mais cabível, sendo mais flexível com o intuito de minimizar ou até mesmo sanar as delimitações no qual as normas padrões impuseram, concernindo a hermenêutica cível a ajudar os tribunais em suas interpretações.

A prática da democracia está conectada ao cidadão inserido no plano social, pelo simples fato de ser sujeito que transforma a sociedade. Sendo assim, a autonomia de vontade e capacidade de adaptar por meio do que se entende como correto, permitindo que o ser humano exprima no cenário político, buscando a criação de conceito familiar inovador, baseado na solidariedade e afetividade. O que comprova esse novo formato de modelo familiar é a dependência de estabilidade e ostensividade, que são os principais elementos desse negócio jurídico e que dão garantia de sua validade e sustentam a garantia no plano judicial.

Diante disso, o trabalho da hermenêutica é se adaptar a essa inovadora proposta e não levar no sentido literal as leis que regem o País, versando seus dispositivos como um rol de meros exemplos. Sobre o valor social entende-se que é suscetível a variante; no entanto, no que tange à infidelidade nos relacionamentos, está se tornando um assunto mais pautado e sendo cada vez mais presente nas relações paralelas, tendo uma aceitação e a constatação dessa vontade dos sujeitos. Sendo assim, a monogamia perde espaço e se torna mais flexível, dando possibilidade a efeitos sociais e jurídicos a essa nova formação familiar.

Partindo dessa ideia, a monogamia não pode ser tratada como um princípio constitucional. Galgar a este nível é tirar de inúmeras famílias o direito de serem reconhecidas como tal. É impedir direitos e impossibilitar o direito à liberdade.

A esfera jurídica não pode desprezar a sua existência, pois corresponde a uma parcela significativa do povo. A família recebe ampla proteção, pois é um instituto basilar da sociedade, e, a partir daí, reconhecer essa união dúplice é de suma relevância para o cumprimento interino da lei.

Ante os fatos, o Estado tem a obrigação de disciplinar e não de intervir, tendo como objetivo analisar a aplicabilidade permeável da lei nas relações de pessoas, considerando, entretanto, o interesse dos sujeitos que almejam apenas igualdade e respeito.

 

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[1] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 160-161

[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das família. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2015. p. 282.

[3] COUTO, Cléber. Famílias paralelas e poliafetivas. Jusbrasil, jul. 2015.

[4] FIUZA, César; POLI, Luciana. Núcleos familiares concomitantes: (im)possibilidade de proteção jurídica. Pensar, Fortaleza, v. 21, n. 2, p. 631, maio/ago. 2016.

[5] KRAPF, Alessandra Heineck. Famílias simultâneas: reflexos jurídicos a partir de uma perspectiva constitucional e jurisprudencial, 2013.

[6] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson Rodrigues. Direito civil – Famílias. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2010.

[7] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília/DF: Presidência da República, [2019]

[8] TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. XV.

[9] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral das constituições escritas. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 60/61, 1985.

[10] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 47.

[11] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991.

[12] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 153.

[13] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das família. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 282.

[14] FREIRE, Sandra Elisa de Assis. Poliamor, uma forma não exclusiva de amar: correlatos valorativos e afetivos. Tese de Doutorado. UFPB/CCHL. João Pessoa, 2013. 258 f. p. 36.

[15] Ibidem, p. 37-38.

[16] Ibidem, p. 39

[17] Ibidem, p. 42.

[18] BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília/DF: Presidência da República, [2019].

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