EXTENSÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NAS AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Fernando Albuquerque
Passados três anos das alterações promovidas na Lei de Improbidade Administrativa (LIA) através da Lei nº 14.230/2021, ainda chama a atenção a carga jurídica do novel § 19º, inciso I, de seu artigo 17, de acordo com o qual não se aplica às ações de improbidade administrativa “a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em caso de revelia”[1].
Conforme se demonstrará, o tal dispositivo está em estrita coerência com a natureza jurídica das ações de improbidade administrativa e com o seu núcleo principiológico, buscando-se através do presente ensaio apresentar os reflexos desta e de outras inovações da LIA acerca do ônus da prova de tais demandas.
Dentro de um contexto geral, as demandas administrativas de caráter repressivo-sancionador são manifestações do denominado direito punitivo do Estado, as quais, ainda que ramificadas em microssistemas jurídicos próprios (a exemplo da tutela penal), encontram-se interligados por suas origens advirem da tutela punitiva do Estado, os quais compartilham o mesmo núcleo principiológico [2] [3] [4].
No que se refere à natureza das ações de improbidade administrativa, o Supremo Tribunal Federal decidiu em mais de uma ocasião que estas se tratariam de ações de natureza cível [5], o que reflete a dicotomia que tradicionalmente categoriza as ações entre “cíveis” e “penais”[6], a qual é adotada na Constituição ao dispor que a responsabilidade por atos de improbidade administrativa se dará “sem prejuízo da ação penal cabível” (artigo 37, § 4º).
Tal dicotomia associa como “penal” a ação judicial capaz de resultar em privação de liberdade, percepção esta que se torna imprecisa em razão da possibilidade de aplicação exclusiva de penas “restritivas de direito” e/ou de “multa” (CP, artigo 32, incisos II e III); por outro lado, as demandas “cíveis” se classificariam como as disputas entre indivíduos com o fim de determinar o cumprimento de obrigações, definir o estado das coisas e a reparar de danos.
Com efeito, e muito embora a LIA tenha aplicação supletiva pelo Código de Processo Civil (LIA, artigo 17, caput), nota-se que a sentença condenatória proferida nas ações de improbidade administrativa (restrição de direitos, imposição de multa, obrigação de reparar o dano, perda de direitos políticos, perda de função pública, perda do proveito do ilícito) tem efeitos próprios às sentenças penais (Código Penal, artigos 91 e 92), e não às sentenças cíveis (declaratória, condenatória-obrigacional, constitutiva, desconstitutiva e mandamental).
Ação civil pública x ação popular
Ao diferenciar a ação de improbidade administrativa da ação civil pública e da ação popular, Teori Zavascki já esclarecia em obra doutrinária que, a despeito da identidade que há entre estas, aquela possui “caráter eminentemente repressivo, destinada, mais que a tutelar direitos, a aplicar penalidades” (processo coletivo. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, 2007. p. 107).
Inclusive, quando do julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 843.989, o relator indicou características relativas às ações de improbidade administrativa são próprias às ações penais, tais como a circunstância em que “não se admite responsabilidade objetiva”, bem como que tais ilícitos ensejam a responsabilização do agente “mesmo que não obtenha sucesso em suas intenções”.
No mesmo norte, muito embora o relator considere que “o ato de improbidade administrativa é um ato ilícito civil”, destacou-se que tal conduta é “qualificada pela prática ou voltada à prática de corrupção”, fazendo assim uma associação entre o ilícito improbo e os ilícitos penais, sobre o que o ministro Nunes Marques asseverou que “o ilícito que constitui improbidade administrativa está mais próximo de um crime que de um ilícito civil”.
Nisto, verifica-se que a diferença estaria apenas na existência de diversas jurisdições sancionatórias. Todavia, não se trata de mera similaridade, mas de efetiva conexão entre tais sub-ramos dos jus puniendi, anteriormente tratadas como independentes, dogmática esta que deve ser percebida de forma mitigada[7].
Improbidade administrativa
Acertadamente, a Lei nº 14.230/2021 explicitou tanto a natureza repressiva da ação de improbidade administrativa, a qual “não constitui ação civil” (LIA, artigo 17-D), como a sua inserção dentro do sub-ramo do direito administrativo sancionador (LIA, artigo 1º, §4º), o que já era de fácil percepção a partir do escopo normativo da LIA (epígrafe, descrição de infrações, previsão de penalidades e procedimento judicial para a imposição destas), através do qual a doutrina já reconhecia tal microssistema jurídico como um “autêntico subsistema penal”[8].
Esta percepção se torna de todo relevante para que se compreenda a extensão e aplicação — na ação de improbidade administrativa — de princípios processuais outrora concebidos como próprios à ação penal, cujo rigor e materialização são mais elevados do que nas ações cíveis em geral, a exemplo dos princípios do contraditório e da ampla defesa, os quais na seara penal não se contentam com a simples oportunidade de defesa[9].
O novel § 19º, inciso I, do artigo 17 da LIA tornou ainda mais clara a proximidade entre o microssistema sancionador da ação de improbidade administrativa com a da ação penal, na qual igualmente descabe a confissão ficta resultante da revelia[10].
Tal intrínseca proximidade entre a improbidade administrativa e o direito-processo penal (maior expressão da tutela punitiva do Estado) resulta na comunhão das mesmas garantias jurídicas [11] [12] [13].
Diferenças de ‘revelia’ no penal e no cível
O próprio fato processual “revelia” tem concepções diferentes nas searas cível e penal, posto que, enquanto naquela se transmite a ideia de desídia do acusado, nesta, trata-se de expressão do direito ao silêncio e do próprio princípio da presunção de inocência, percepção esta que passa a ser extensivas — com todas as suas consequências — às ações de improbidade administrativa.
Note-se que tal circunstância dá elevada ênfase ao ônus probatório do Ministério Público de provar em Juízo a materialidade e a autoria dos fatos imputados contra o acusado, preceito este que, embora seja comum à jurisdição cível (CPC, artigo 373, inciso I) e à jurisdição penal (CPP, artigo 156), tem mais rigor nesta seara, sendo de todo inaplicável a inversão do ônus da prova (CPC, artigo 373, §1º).
Neste contexto, em não sendo aplicável às ações de improbidade administrativa a presunção de veracidade dos “fatos” narrados na inicial, temos que, por extensão a este preceito, descabe igualmente impor ao acusado o dever de manifestação específica (CPC, artigo 341, caput), aplicando-se à situação o brocado “a maiori, ad minus”.
Da mesma sorte, estando o acusado isento de consequência processual decorrente da ausência da apresentação de defesa escrita, o mesmo também deve se imune a pena de confesso que se recuse a depor (CPC, artigo 385, §1º).
Direito sancionador
Face toda esta explanação, temos por incompatível com o sistema do direito sancionador e incoerente com o § 19º, inciso I, do artigo 17 da LIA a preclusão consumativa da matéria de defesa (CPC. artigo 342).
Descabe igualmente o imediato julgamento antecipado do mérito em decorrência da revelia, uma vez que tanto o inciso II do artigo 355 do CPC limita a sua aplicação quando ocorrer a presunção dos fatos, destacando-se mais que a produção o inciso I do referido dispositivo é matéria que demanda análise pontual.
Ao que se verifica, algumas das inovações legislativas advindas da Lei nº 14.230/2021 tem o condão de explicitar questões já reconhecidas em parte pela doutrina e pela jurisprudência quanto às ações repressoras, mas que se revelam de fundamental importância para compreender o direcionamento que o legislador buscou atribuir às ações de improbidade administrativa, notadamente quanto às implicações processuais decorrentes do princípio da presunção de inocência.
[1] Desta sorte, nas Ações de Improbidade Administrativa, os únicos efeitos decorrentes da Revelia do demandado residem na fluência dos prazos a partir da data de publicação do ato decisório no órgão oficial, caso não tenha patrono (CPC, Art. 346, caput), e na impossibilidade de renovação de atos processuais já praticados (CPC, Art. 346, Parágrafo único).
[2] Neste sentido: Marçal Justem Filho (Curso de Direito Administrativo, 2012, p. 571). Fábio Medina Osório (Natureza da ação de improbidade administrativa, em “Revista de Direito da Procuradoria Geral, Edição Especial: Administração Pública, Risco e Segurança Jurídica”, 2014, p. 456). Gustavo Binenbojm (O direito administrativo sancionador e o estatuto constitucional do poder punitivo estatal, op cit, p. 469).
[3] Igualmente, no âmbito do STF, vide Mandado de Segurança nº 32.201 (Voto do Min. Luís Roberto Barroso, j. 21.03.2017).
[4] Em julgamento memorável realizado no âmbito do Corte Europeia de Direitos Humanos (Öztürk vs. Alemanha, Application no. 8544/79: 1984), decidiu-se pela aplicação da Convenção Europeia de Direitos Humanos às infrações administrativas em comparação com as infrações penais (“AS TO THE LAW”, parágrafo 46 à 54).
[5] No julgamento da ADI 2.797-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, em 15.09.2005), quando se atribuiu tal natureza para fins de afastar a prerrogativa de foro) e no julgamento do ARE 843.989-PR (Rel. Min. Alexandre de Moraes, em 18.08.2022), quando se fixou o Tema de Repercussão Geral nº 1.199, especialmente ao definir a irretroatividade das alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021.
[6] No julgamento do ARE 843.989-PR, o Min. Luiz Fux faz um aparte no Voto do Relator para acercar que “O Professor Frederico Marques, em suas Instituições sempre relembradas, afirmava exatamente isto: as lides, ou são lides penais ou são lides civis, assim compreendidas as tributárias, as administrativas, as comerciais, etc”.
[7] “A ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal” (Gilmar Ferreira Mendes, Voto na Reclamação nº 41.557, j. 15.12.2020).
[8] “o direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal” (Ana Carolina Oliveira, em “Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador”, 2012. p. 190)
[9] “o grau de ampla defesa varia de acordo com a consequência jurídica dos fatos imputados (…) a extensão da amplitude da defesa guarda íntima pertinência com a intensidade de interferência na esfera jurídica do sujeito processual” (Edson Fachin, Voto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378 – Medida Cautelar – Distrito Federal, j. 17.12.2015).
[10] A teor do Art. 261 do CPP, tem-se que “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”, sendo certo ainda que até mesmo a confissão expressa carece de caráter absoluto (CPP, Art. 197), sendo esta ainda é passível de retratação (CPP, Art. 200).
[11] “A natureza destas sanções revela aplicação dos princípios de Direito Penal, com matizes e por força de analogia, ao campo destas ações de improbidade” (Fábio Medina Osório, em “Natureza da ação de improbidade administrativa”. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Edição Especial: Administração Pública, Risco e Segurança Jurídica, 2014, p. 456).
[12] “A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias constitucionais e penais para o direito administrativo sancionador. As mínimas garantias devem ser: legalidade, proporcionalidade, presunção de inocência e ne bis in idem” (Ana Carolina Oliveira, em “Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador”, 2012. p. 241).
[13] “Por todas essas razoes parece-me adequado estender o quanto possível, para o campo da improbidade, as garantias próprias dos direitos penal e processual penal, sobretudo quando o legislador assim o determinar” (Nunes Marques, Voto divergente na ARE 843.989-PR).