ENSAIO SOBRE OS DIREITOS MÍNIMOS NÃO-HUMANOS: UMA REFLEXÃO À PROTEÇÃO DOS ANIMAIS
Daniel Ivo Odon
SUMÁRIO: Introdução; 1 Breve nota sobre a moralidade da justiça; 2 Princípio da igual consideração de interesses; 3 Ser pessoa; 4 Da proposição progressista; 5 Da mudança de valoração; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Chamamos o presente trabalho de ensaio porque trataremos de um tema específico, a proteção dos animais não-humanos e a reivindicação de salvaguardas jurídicas. Não é propósito do presente artigo exaurir o tema, mas apenas realizar um tratado formal que aborda questões afetas ao Direito, enquanto ciência, acerca do ordenamento jurídico e o conteúdo normativo correlato.
Esquadrinhamos elementos que trazem à tona o debate sobre a expansão do pensamento sobre a dignidade de seres não-humanos, pertencentes ao reino animal. Desenvolveremos, em certa medida, uma aproximação sobre certo e errado, justo e injusto que, eventualmente, dá azo a uma cisma metodológica que tenta desmerecer o pretenso raciocínio, uma vez que somos incapazes de aplacar o sofrimento humano, quiçá o não-humano.
É bem verdade, estamos muito longe de acabar com o sofrimento humano neste planeta e isso não nos impele a reduzir ou abandonar qualquer engajamento em benefício da total felicidade humana. Contudo, não acreditamos que sirva de subterfúgio excludente para qualquer análise sobre o sofrimento animal. No campo científico-analítico, os dois campos de investigação não são mutuamente excludentes, tampouco exigem esforços compartimentados. Ao revés, podemos tratar de ambos com esforços complessivos, almejando o sucesso nos dois campos.
Com esse ideal lançado, portanto, convidamos o leitor a refletir sobre as ponderações aqui proferidas e adotar para si o sentimento, crítica e entendimento que lhe aprouver. Mas uma coisa é certa e já se encontra comprovada por outros ramos da ciência (que não o Direito): cuidarmos da proteção e bem-estar da vida, como um bem geral em harmonia e comungado por todos os seres vivos, nos torna pessoas melhores, o que, reflexamente, promove a prosperidade social e o avanço no processo civilizatório.
1 BREVE NOTA SOBRE A MORALIDADE DA JUSTIÇA
Para a ciência, “moral” representa o caráter acerca do comportamento apropriado. Aplicado ao comportamento humano, é o juízo sobre o certo e o errado de nossas atitudes. Moralidade envolve nossos pensamentos e nossas ações perante outros seres [1]. Para a ciência do Direito, a moralidade revela-se na dialética entre o justo e o injusto, contrastado perante os ditames da lei.
Michael Sandel ensina que o valor “justiça” pode ser encarado como bem-estar, liberdade ou virtude, tendo cada ordenamento jurídico moderno cuidado das três acepções. Cada um desses nortes descende de uma escola filosófica diferente. A justiça, em geral, busca a excelência do comportamento humano, é a ética do agir no momento de se escolher entre o certo e o errado, o justo e o injusto [2].
Neste ponto, a sociedade internacional e todo o arcabouço semântico dos direitos fundamentais estão sempre entrelaçados com a política, ética e psicologia [3]. Muito embora a aplicação sobre o que é ser justo varia de sociedade para sociedade [4], há um denominador comum extraído, muito das vezes, da união das ciências que, conjuntamente, formam-se a produzir o melhor resultado para a sociedade e Estado dentro do valor justiça. A moralidade inserta na densidade semântica de cada direito subjetivo descende do Iluminismo, que põe o homem como centro da razão, e se alia ao kantianismo.
A filosofia moral que atualmente prevalece no Ocidente descansa sobre os ombros de Immanuel Kant. Considerado o maior filósofo da modernidade, Kant estabeleceu que a moralidade encontra-se radicada na razão humana, e, como tal, a razão dita-nos deveres morais que não podem desviar-se de sua retidão por inclinações ou emoções [5], mas mantém-se rigidamente emparedada com a razão. Criou o chamado imperativo categórico [6].
2 PRINCÍPIO DA IGUAL CONSIDERAÇÃO DE INTERESSES
Uma das ponderações tradicionais que perpassa a filosofia moral e o estudo da ética é a regra básica da empatia, que, na singela explicação de Adam Smith, corresponde dizer: coloque-se no lugar do outro. Uma altruística preocupação com o próximo [7]. Cada cultura, cada filósofo pode nomeá-la de uma forma única, mas seu conteúdo e intento são os mesmos em todos os rincões da terra e nos mais longínquos pensamentos humanos: incutir a solidariedade humana de modo cooperativo como dever moral e dignificante. Essa acepção filosófica perpassa religiões e sistemas político-jurídicos de modo a esculpir sobre ela todo um sistema e arcabouço de regras comportamentais, razão pela qual é comumente chamada, na filosofia ocidental, de Regra de Ouro [8].
Este dever moral da empatia – muito explorado no campo da psicologia – desdobra-se em diversos princípios valorativos e intercomunica-se fortemente com o princípio da igual consideração de interesses, espécie do gênero do princípio-matriz da igualdade. Este enunciado valorativo tem sido defendido largamente por vários filósofos como um princípio moral básico, elementar. A divergência surge a partir do endereçamento principiológico: se se adstringe à nossa espécie humana ou vai além dela. Neste ponto, firmamo-nos na corrente que aponta para uma compreensão principiológica que transcende a espécie humana e alcança todos os seres vivos, ao menos em alguma medida, como buscaremos demonstrar.
Kant construiu sua filosofia moral no final do século XVIII em crítica ao trabalho contemporâneo do filósofo utilitarista Jeremy Bentham. Foi o livro de Kant que fomentou o ideário moralista sobre liberdade e justiça que impulsionou a Revolução Francesa de 1789 e seus conflitos humanistas [9]. Não obstante o brilhantismo de sua teoria, criou uma cisão drástica entre os seres humanos e não-humanos.
Kant estabeleceu uma filosofia sobre a dignidade que seguiu os mesmos passos da doutrina da bondade de Tomás de Aquino. Para ambos, dignidade – ou bondade – possui um valor intrínseco incondicional, incomparável e insuscetível de alienação [10].
Nesta linha, Kant extrai da humanidade que reside em todo ser humano o elemento da moralidade, que se desdobra em dignidade e autonomia. O valor primeiro humanidade, portanto, passa a ser a dignidade da pessoa humana, cabendo a um segundo momento a definição dos demais valores consectários estabelecidos por meio da autonomia do comportamento do homem. Assim, o ser humano somente tem dignidade porque a lei moral está nele corporificada, razão a qual defende a moralidade universal, o que equivalentemente implica dizer que a teoria kantiana considera como dignidade apenas a dignidade da espécie humana [11].
Tomás de Aquino, por outro lado, alinhado com o pensamento político-moral da Igreja Católica, influente em sua época, compreendia a dignidade como elemento valorativo presente em cada ser vivo da criação divina, o que recomendava uma vida em comunhão entre as espécies [12]. Na mesma senda, mas sem infusão político-religiosa, o filósofo utilitarista Jeremy Bentham, contemporâneo de Kant, também enxergava a dignidade transcendente à espécie humana.
Em sua clássica obra de 1780, Bentham recorre ao problema político da época para buscar a racionalização da sociedade em macroescala. O movimento abolicionista ganhava corpo, e Bentham visualizou no campo da argumentação filosófica a correlação entre animais e negros escravos, ambos encarados como coisas e sob o regime da propriedade absoluta. Em suas palavras que permanecem pulsantes:
[…] Lamento em dizer em todos o lugares que a crueldade humana ainda não terminou: grande parte da espécie humana, sob a denominação de escravos, tem sido tratada pela lei exatamente do mesmo modo, na Inglaterra por exemplo, das raças inferiores de animais. Há de chegar o dia em que o resto da criação animal venha a conquistar seus direitos que nunca deveriam ter sido dela retirados senão pelas mãos da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento. [13]
Bentham foi um filósofo inglês à frente de seu tempo. Suas lições filosóficas perduram até os dias atuais e sua importância para sociedade e academia inglesa é tamanha que até os dias atuais seu corpo encontra-se preservado, trajado em suas próprias roupas, dentro de uma cabine chamada “Auto-icon” (autoícone), instalada no prédio principal da University College London, como forma de inspiração às gerações a ele subsequentes [14]. Ao fim do século XVIII, Bentham já se indignava com a tirânica crueldade humana, a mesma que nos estarrece nos dias atuais.
Kant exclui do debate sobre igualdade qualquer espécie que não a humana, pois para ele somente a dignidade gera o direito à igualdade. A dignidade humana que há em todo ser humano faz surgir o dever de respeito mútuo entre nós, tornando legítima a pretensão da igualdade. Diferente via segue Bentham, que parte do princípio moral de igual consideração de interesses para estendê-los ao animais, uma vez que são, assim como nós, passíveis de sofrimento.
Em verdade, a aplicação do princípio da igualdade à imposição de sofrimentos é de fácil entendimento. A dor e o sofrimento são coisas más e, independentemente da raça, do sexo ou da espécie do ser que sofre, devem ser evitados ou mitigados. O sofrimento é um desvalor absoluto no sentido de que é igualmente mau, seja ele sentido por seres humanos ou por animais.
Todavia, quando refletimos sobre o valor da vida, não podemos dizer, tão confiantemente assim, que uma vida é uma vida e é igualmente valiosa, seja ela humana ou animal. Consoante alerta Peter Singer, o valor da vida é um problema ético de notória dificuldade. Não é fácil chegar a uma conclusão racional sobre o valor comparado das vidas humana e animal, mas uma coisa é certa e podemos ponderar: a vida de um ser consciente de si, capaz de pensamentos abstratos, de planejar o futuro, de realizar complexos atos de comunicação etc., pode ser mais valiosa do que a vida de um ser que não detenha tais aptidões e sequer tem o potencial de possuí-las [15].
3 SER PESSOA
Fábio Ulhoa Coelho esclarece, pela tecnicidade do Direito, que pessoa, na verdade, é espécie do gênero sujeito de direito. Vaticina, porém, que “nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o Direito, são seres humanos” [16]. Certamente que Ulhoa não abordou nesta temática a inclusão dos animais, o que, per se, não invalida a premissa para uma interpretação maior de raiz político-filosófica constitucional.
O que se julga especial sobre ser “pessoa” é a capacidade natural de ser consciente em si, enxergar sobre si o seu eu-contínuo – com noção de passado, presente e futuro -, abstratamente pensar e comunicar-se, além da percepção pelos sentidos. A autoconsciência, senciência, noção de tempo e aptidão deôntica são, portanto, os caracteres trazidos pela filosofia para atribuir a uma entidade o epíteto de “pessoa“[17]. Michael Shermer corrobora ao asseverar que, para a ciência, animais sencientes não-humanos são pessoas, pois são conscientes, são dotados de subjetividade, possuem interesses próprios e sofrem; inexiste característica outra para um ser senciente possuir personalidade [18].
Os avanços científicos sobre o comportamento animal revelam hoje que babuínos sabem distinguir palavras escritas, macacos são capazes de realizar operações matemáticas de multiplicação, os símios em geral reconhecem bons gestos e são capazes de manifestar gratidão, sabem planejar comportamento futuro e são seres empáticos (preocupam-se com os outros e avaliam o impacto de suas ações em relação ao outro). Os insumos para pesquisa são inesgotáveis e não param mundo afora.
O Departamento de Antropologia da Duke University conduz atualmente estudo acerca de os símios pensarem e ponderarem sobre o que seus pares estão pensando e ponderando, demonstrando seus graus de inteligência e sociabilidade [19]. A tirania dos homens por muito tempo os julgou inferiores por não falarem, mas, na realidade, estudos recentes provam que não falam por não possuírem cordas vocais para tanto, mas sabem comunicar-se perfeitamente por meio da linguagem de sinais, além de compreenderem mais de três mil palavras em inglês [20]. Joël Fagot desenvolveu, no Centro Nacional de Pesquisa da Aix-Marseille Université, na França, pesquisa com babuínos que revelam possuir memórias mais aguçadas do que a dos humanos, em geral. Em 2012, transcorridos três anos da pesquisa, os babuínos já haviam memorizado mais de dez mil figuras [21]. Golfinhos, cães, gatos, cavalos e porcos, todos, comprovadamente, possuem consciência de si, sendo capazes de se reconhecerem no espelho e de verem a si mesmos como eus-contínuos [22]. O Psicólogo Frans de Waal, da Emory University, desenvolveu pesquisa que revela que cachorros e elefantes possuem plena capacidade de pensamento em abstrato [23].
Quanto mais descobrimos sobre os animais, menos especiais parecemos [24]. Esses avanços científicos elevam os animais a um novo patamar, ao menos aqueles que demonstrem os atributos da senciência, autoconsciência, noção de tempo e aptidão deôntica. Isso nos traz segurança em afirmar que alguns animais são “pessoas“, de acordo com a definição acima referida. Pessoas não-humanas, mas pessoas. Destarte, se alguns animais também são pessoas, as suas vidas devem ter algum valor especial, ou ao menos o direito a alguns direitos minimamente básicos. Afinal, como bem destaca Michael Rosen, é curioso o ser humano ocupar-se em estabelecer um senso de dignidade e dever de respeito sobre um cadáver humano, incapaz de reciprocidade, consciência e sofrimento, e simplesmente ignorar os demais seres vivos não-humanos ao nosso derredor [25].
Inovativamente, por conseguinte, trazemos a lume a compreensão de que as três aptidões que tornam uma entidade “pessoa” relacionam-se com o ser humano naquilo que chamamos de círculos de afinidade. Imaginemos círculos concêntricos e expansivos que se afastam continuamente do epicentro, o homem. O ser humano, com toda sua excelência no reino animal, é o núcleo da racionalidade que se apresenta graficamente como o ponto central. Seguidamente a ele temos a primeira esfera de afinidade, os animais, que, apesar de não-humanos, são pessoas por possuírem a comprovada capacidade de senciência, autoconsciência, noção de tempo e poder deôntico. À medida que nos afastamos do centro – o homem -, as esferas vão sucessivamente se expandido e paulatinamente se esvaziando da afinidade com o ser humano, criando um sistema de círculos sucessivos de afinidade que vão gradualmente incluindo em seu feixe os animais que, em maior ou menor grau, dispõem das ditas aptidões.
Devemos rejeitar a doutrina que coloca as vidas e o bem-estar da espécie humana acima das vidas e do bem-estar das outras espécies. O termo animal, mesmo no sentido restrito de “animal não-humano“, abrange uma diversidade de vidas cuja multiplicidade é ampla demais para que um princípio possa aplicar-se a todas elas, como o princípio moral da igual consideração de interesses. Ao mesmo tempo, não existe uma resposta única à pergunta sobre se é errado normalmente tirar a vida de um animal.
Justamente por se vislumbrar um vasto terreno a ser explorado que adotamos a racionalidade do círculo de afinidade,em que o princípio da igual consideração de interesses deve ser aplicado para fazer nascer em prol dos animais não-humanos um conteúdo mínimo de proteção do Direito. Alguns animais não-humanos são comprovadamente racionais, sencientes e conscientes de si, concebendo-se como seres distintos que possuem um passado e futuro.
Hoje possuímos avanços científicos que nos permitem asseverar que todas as aptidões acima apontadas são compartilhadas entre humanos e não-humanos, isso sem qualquer especulação, mas com base em certeza científica. Estamos, portanto, muito próximos de uma inovação para o Direito, cultura social e pensamento humano. As razões contra a crueldade humana em desfavor dos animais são robustas. Essa argumentação pode ser fortemente invocada a favor de chimpanzés, gorilas e orangotangos, baleias, golfinhos, macacos menores, cães, gatos, porcos, focas, ursos, bois, vacas, carneiros etc., até mesmo ao ponto de incluir todos os mamíferos no primeiro círculo de afinidade. Contudo, à medida que nos afastamos do epicentro dos círculos concêntricos e chegamos aos animais que, até onde se sabe, não são seres racionais e autoconscientes, a argumentação protetiva torna-se mais fraca.
4 DA PROPOSIÇÃO PROGRESSISTA
Como vicejamos acima, “pessoa“, na visão civilista brasileira, não engloba os animais, malgrado o insight de Fábio Ulhoa Coelho [26]. Não obstante, compreensão filosófica e moral de animais como pessoas não-humanas não encontra guarida no Código Civil, mas sim na Constituição Federal, nomeadamente no art. 225, § 1º, VII, e § 3º:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
- 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
[…]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
[…]
- 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
O direito material existe e é de matiz constitucional. A compreensão moral da dignidade da pessoa não-humana há séculos permeia os debates e pensamentos filosóficos. Falta-nos o reconhecimento da dignidade dos animais e a efetiva aplicação do princípio da igual consideração dos interesses, subsumido no art. 225, § 1º, VII, da CF, para não apenas titularizar as pessoas não-humanas de direito mínimos e naturais – direito da liberdade, à vida e ao bem-estar no âmbito material e, sobretudo, de operabilidade processual [27].
O Supremo Tribunal Federal, em algumas oportunidades, manifestou-se sobre a inconstitucionalidade de lei estadual que considera rinhas e brigas de galo como atividades esportivas, por flagrante submissão a tratamento cruel a aves, em violação ao art. 225, § 1º, VII, da CF [28]. De igual maneira, condenou a “farra do boi“, vaticinando que as tradições culturais não têm o condão de vulnerar a vedação constitucional de crueldade a animais [29].
Movimentos semelhantes e mais contundentes, inclusive, têm se espalhado pelo mundo. Na Suíça, não se permite que galinhas sejam criadas em gaiolas. Na Inglaterra, tornou-se ilegal a criação de bezerros em estábulos individuais e há um desestímulo a chiqueiros individuais. Na Suécia, em 1988, foi aprovada lei que elimina os sistemas que confinam animais por muito tempo e não permitem que vivam conforme seu comportamento natural. O comércio de peles é muito atacado e, consequentemente, as vendas de peles são inexpressivas em países como Inglaterra, Países Baixos, Austrália e Estados Unidos. Alguns países também estão começando a eliminar por etapas as formas de confinamento mais extremas das fazendas industriais [30].
No universo acadêmico-científico, prestigiosamente veicula-se o Prêmio Ig Nobel da ciência, existente há vinte e cinco anos e que se realiza anualmente, no mês de setembro, em Harvard University[31]. Essa premiação congratula conquistas científicas que primeiramente fazem as pessoas rirem por parecer ridículo, mas depois acabam revelando-se uma grande contribuição para reflexão moral e aprimoramento do pensamento científico-social. Isto, por si só, já nos traz valioso ensinamento, pois o ridículo se mostra apenas uma questão de perspectiva.
Visando à pertinência temática, contudo, interessa-nos mencionar aqui especificamente o Prêmio Ig Nobel de 2008, na categoria Prêmio da Paz, dado ao Comitê Federal Suíço de Ética na Biotecnologia Não-Humana (ECNH) e também aos cidadãos suíços, por adotarem o princípio legal de que plantas possuem dignidade. O compromisso partiu de pesquisa científica iniciada em 2004 que concluiu pela dignidade de todo ser vivo que possua a habilidade de reprodução e adaptação independente, retirando de qualquer indivíduo o direito absoluto de propriedade sobre qualquer planta, o que desautoriza o exercício abusivo e antijurídico com as plantas [32].
No campo processual, ademais, tivemos recentemente um inestimável precedente judicial que, além de reconhecer direitos materiais básicos a pessoa não-humana, concedeu-lhe o direito processual de figurar como parte em habeas corpus, tendo sua titularidade de direitos reconhecida por um tribunal. No final do ano passado, o Judiciário Argentino – Causa nº CCC 68831/2014/CFC1 – concedeu a uma orangotango, vítima de maus-tratos, provisão de habeas corpus fundado em “direitos não-humanos“. A fundamentação jurídica empregada é dinâmica e evolutiva, reconhecendo os animais como sujeito de direitos, não como coisas, cuja liberdade e bem-estar podem doravante ser jurisdicionalmente contestadas [33].
Acreditamos que o primeiro passo tenha sido dado na evolução do comportamento moral para com os animais. Assim como registrado nas ADIns 1856 e 3776/STF, os provimentos destinam-se à coletividade de animais. Proíbe-se a farra do boi por ser cruel à espécie bovina; proíbe-se a rinha por ser cruel aos galináceos. Tudo isso se diz insculpido na lei, como a referência ao art. 225, § 1º, VII, da CF.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a rinha de cães é severamente proibida, por ser cruel à espécie canina. Figuras públicas, como o atleta de futebol americano Michael Vick, foram presas por praticar rinhas, pois é considerada uma imoralidade na sociedade norte-americana. Porém, quando levamos um único ser individualmente aos olhos do Judiciário, os entendimentos surpreendentemente têm sido inversos. A Corte de New York, por exemplo, no final de 2014, negou direito de liberdade e bem-estar a um chimpanzé mantido em severo confinamento. Seu sofrimento foi chancelado pelo Judiciário porque não viram naquela criatura uma “pessoa nos termos da lei” (“legal person“) [34]. E isso ocorre por todo o mundo.
O que torna o Direito tão paradoxalmente brilhante em ser capaz de criar sistemas e métodos de proteção de indeterminados animais, mas extremamente ineficiente para elidir um sofrimento localizado e individualizado por tecnicalidades processuais? Nossa resposta é simples: o Direito contemporâneo permite que persigamos a justiça – enquanto valor – a qualquer custo, o problema se instala no operador do Direito. Há de se mudar o pensamento do operador do Direito; a evolução cultural há de chegar à sociedade e seus membros, tal qual alcançou a sociedade suíça, por exemplo.
Segundo majestosa lição de Tércio Ferraz Júnior, no processo normativo há a produção da norma e a sua aplicação. São duas atitudes diferentes, porque, ainda que seja importante a relação entre essas duas funções, a primeira surge da técnica legislativa, dentro do processo legislativo e democrático; a segunda etapa é a da aplicação da norma pelo jurista. Este estará diante do dilema ontológico: ser receptor passivo ou integrante da elaboração do direito [35].
A celeuma instala-se, portanto, na zona grise entre ser mero receptor passivo ou parte integrante da elaboração do direito. Partindo da premissa moderna de que a moralidade é hoje componente indissociável da norma [36], o que faz um operador do direito achar que a proteção dos animais de forma abstrata e geral é mais viável do que a concreta e individual? A primeira resposta – e a mais rasa – advoga pela impossibilidade técnica processual, uma vez que o animal não-humano não pode figurar como parte no processo. A segunda, mais profunda e de análise percuciente, remete-nos à escala da moralidade de Lon Fuller.
A moralidade no Direito apresenta-se de duas formas: moralidade de aspiração e moralidade de dever. Elas se intercalam, mas, se visualizarmos uma escala vertical tracejada em níveis, a moralidade de aspiração encontra-se na parte de cima, no topo das conquistas humanas, enquanto a moralidade de dever encontra-se na parte baixa. É o mesmo raciocínio adotado por Miguel Reale nos círculos secantes entre Direito e Moral [37], ensinado a todo estudante de Direito no primeiro ano de curso. A moralidade de dever prescreve o que é necessário para se viver em sociedade, ao passo que a moralidade de aspiração é a moralidade da excelência, da plena realização das faculdades humanas.
As duas coexistem e correlacionam-se porque todo nosso ordenamento jurídico representa um complexo legislativo designado para resgatar o indivíduo do acaso e colocá-lo com segurança no caminho da proposital e criativa atividade. Se considerarmos a amplitude da moralidade, podemos imaginar – na visão vertical – um tipo de escalonamento que inicia embaixo, com as mais óbvias demandas sociais de convivência, e se estende para cima até o mais alto ponto das aspirações humanas. Em algum lugar dessa escala, há o local onde se situa um ponteiro invisível que é o divisor entre o fim da pressão dos deveres e o começo do desafio da excelência – a linha imaginária que separa dever da aspiração. Todo campo da argumentação moral é dominado por uma grande guerra não declarada sobre a localização do ponteiro nessa escala moral. Há quem lute para colocá-lo para cima, assim como há quem trabalhe para colocá-lo para baixo [38].
Logo, quando dissemos que o problema encontra-se no operador do Direito, estamos nos referindo exatamente ao juízo que é feito sobre onde se encontra o ponteiro divisor. A lei sobre proteção animal já existe (a exemplo do art. 225, § 1º, VII, da CF), por consequência não estamos tratando de situação de vácuo legislativo ou lacunas na lei. Cabe tão somente ao operador do Direito definir, como Tércio Ferraz Júnior especificou, se será mero receptor passivo da norma ou integrante da elaboração do direito. Ou seja, se irá manter o ponteiro da moralidade abaixo ou elevá-lo acima.
A Corte de New York optou por fixar o ponteiro abaixo, considerando que a libertação e fim do sofrimento do chimpanzé Tommy não coadunavam com a moralidade de dever, sendo tão somente uma moralidade de aspiração que se encontra fora dos limites da lei. Já a Câmara Criminal de Buenos Aires optou por elevar o ponteiro da moralidade de dever e garantir à orangotanga Sandra direitos básicos não-humanos, o direito de viver livre e sem sofrimento. Numa visão comparativa das escalas da moralidade do Direito, no que diz respeito a este cenário específico, a sociedade argentina possui uma moralidade de dever coincidente com a de aspiração, ambas no topo da escala, enquanto a norte-americana mantém um hiato considerável entre dever e excelência moral.
O embate moral, por conseguinte, encontra-se além do texto da lei e se esconde verdadeiramente na raiz humana. Inexiste lei que explicitamente alcance esse grau de moralidade para imposição de um dever. O comportamento que revela o respeito pela dignidade – humana ou não-humana – simboliza a postura moral do agente e isso vai muito além da legislação. A única ponte que podemos criar entre a lei e esse grau de moralidade é a excelência do comportamento humano. Esta, na verdade, sempre foi a função da acoplagem da moralidade, enquanto valor, ao Direito, que há muito cansou de ser meros fato e norma.
Como “justiça” é o fim último do Direito que, na valoração da norma, passa a ser permeado pela moralidade que é inerente a nossa humanidade, segundo postulado kantiano, impende retratar – por capricho retórico – diálogo reproduzido por Platão, em A República, em que Glauco conversa com Sócrates sobre a essência e origem da justiça:
Dizem que uma injustiça é, por natureza, um bem e sofrê-la, um mal, mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira que, quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças uma das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento das leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem – não pagar a pena das injustiças – e o maior mal – ser incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entre estes dois extremos, deve não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça. [39]
A perpetuação da injustiça é sempre algo mal, porém o maior mal que existe é sujeitar-se a uma injustiça sem a capacidade de se vingar. Este é o maior dos males; o ápice do desvalor “injustiça” e,como pontuado por Joshua Greene, nós geralmente subestimamos o impacto do mal que causamos [40]. Enquanto a realidade não reproduzir a ficção cinematográfica, os animais que vivem sob o jugo do homem convivem diuturnamente com injustiças e são incapazes de revidar em igual medida.
5 DA MUDANÇA DE VALORAÇÃO
Temos que compreender o valor justiça de forma mais ampla, não como produto exclusivamente humano e hermeticamente fechado, falível. Em todas as passagens contadas acima, percebemos que, entre nós e os animais, há semelhanças incríveis que ascendem boa parte dos animais ao status filosófico de pessoas, definíveis em círculos de afinidade. A dignidade que todos comungamos – todos os seres vivos, como defendido por Bentham e Tomás de Aquino – igualmente descortina a verdadeira fragilidade que compartilhamos enquanto cocriaturas, o que per se impõe equivalente consideração de interesses entre as espécies – humanas e não-humanas.
Respeito à dignidade, seja humana, seja não-humana, é ainda uma das grande barreiras que temos contra as atrocidades e crueldades do homem [41]. A tradição ocidental dominante falaciosamente dita que o mundo natural existe para o benefício dos seres humanos e que os seres humanos são os únicos membros moralmente importantes desse mundo. Diz-se, ainda, que a natureza não tem nenhum valor intrínseco, e a destruição de plantas e animais não pode configurar um erro, a menos que, através dessa destruição, façam mal aos seres humanos [42].
É extremamente arbitrário defender o ponto de vista de que só os seres humanos têm dignidade, valor intrínseco. Se encontrarmos valor nas experiências humanas conscientes, não podemos negar que existe valor em pelo menos algumas experiências de seres não-humanos. O cuidado com animal, na verdade, revela a máxima natureza do bem que há no homem. Num mundo onde a crueldade humana se sobressai, gestos como a proteção de animais indefesos – superando a tradição ocidental da coisificação dos animais para poder enxergar neles algo mais – mostram a natureza humana sublime pela qual vale lutar por um mundo melhor. É a moralidade imanente.
Para o homem de bem, o homem virtuoso, inexiste distinção ontológica entre a moralidade que respeita a dignidade humana e a que respeita a dignidade não-humana. As duas são equiparadamente nobres e harmoniosamente coexistentes. Toda entidade viva está em busca do seu próprio bem, de uma maneira que lhe é única. Se conseguirmos entender isso, passaremos a ver todas as coisas vivas da mesma maneira que vemos a nós mesmos; assim, estaremos aptos a atribuir à sua existência o mesmo valor que atribuímos à nossa [43].
Este grau de bondade – na doutrina de Aquino – ou de dignidade – na doutrina de Bentham – é natural ao ser humano, lhe é imanente, seja convertida em lei ou não. É um elemento nitidamente social, quer o Judiciário a incentive ou não. Esta empatia social com os demais seres não-humanos é muito bem retratada no episódio acontecido em 2010, na Inglaterra. Determinado dono de um gato doméstico sentiu sua falta por alguns dias dentro de casa e imaginou que o felino havia fugido. No terceiro dia de desaparecimento, ao sair de sua casa para o trabalho, foi jogar o lixo na lixeira que fica na entrada de sua casa quando, ao abrir a tampa, viu lá dentro seu gato. Curioso para saber como ele entrou na lixeira, consultou a câmera de segurança residencial e surpreendeu-se quando viu que, na verdade, uma senhora que passava na rua viu o gato na entrada e, por um ato inexplicável, lançou-o na lixeira.
Consternado com a atitude reprovável daquela senhora, o dono do felino pôs o vídeo na internet e a filmagem gerou uma indignação social generalizada [44]. Até a mídia local exibiu a filmagem nos telejornais e a prefeitura foi cobrada pela sociedade para agir em repreensão. Identificada a agressora, Mary Bale, 45 anos de idade, foi multada pela Corte municipal em US$395,00 (aproximadamente) por “ofensa cruel” e submissão de sofrimento desnecessário ao gato, mais a condenação indenizatória de US$1.850,00, fora a proibição de ter ou possuir qualquer animal por cinco anos. Notemos que, além do envolvimento judicial na questão, a população inquietou-se com tamanha e gratuita crueldade perpetrada pela mulher que basicamente foi hostilizada por onde passava e recebeu diversas ameaças de morte [45].
Para o Direito, a moralidade segue a dialética da justiça/injustiça, segundo sua origem. Todavia, nas tecnicalidades processuais e no comportamento meramente receptivo de alguns órgãos jurisdicionais, o pior de todos os resultados se apresenta: ser incapaz de se vingar de uma injustiça.E a injustiça é proferida com a chancela do Estado, sobre um juízo particular do ponteiro que separa a moralidade de dever da moralidade de aspiração. Muito embora a sabedoria que remonta Platão recomenda que, estando a justiça colocada entre estes dois extremos, deve não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça, a honradez da justiça nem sempre vem pelas mãos do Judiciário.
Como a moralidade não é um produto do direito, mas um produto social, cada indivíduo, isolada ou coletivamente, é capaz de realizar seu próprio juízo moral sobre certo ou errado. É a moralidade imanente em cada ser humano que o torna apto a realizar esse juízo, seja justo ou injusto, segundo termos providos pelo Judiciário. Quando as moralidades se encontram, como no caso da Corte municipal inglesa e da Corte argentina, o sentimento de justiça atinge sua inteireza. Quando há o descompasso entre as moralidades, como no caso da Corte nova-iorquina, a inquietação pelo sentimento de injustiça perene faz nascer o ímpeto para a mudança. A luta para uma mudança de valoração toma marcha e atinge todos os meios lícita e democraticamente permitidos, tais quais este presente trabalho acadêmico e a criação de ONGs que buscam a proteção e o cuidado animal.
Se a excelência moral não vem pelo Judiciário, vem pelas ondas e movimentos dentro da própria sociedade. A erupção do moralismo já perdura há décadas e ramos de ciências sociais, há algum tempo, vêm curando a dignidade dos animais. A filosofia, antropologia e psicologia já possuem o consenso sobre a pessoa não-humana e a necessidade inadiável de se reconhecer a dignidade e o direito aos animais não-humanos. Somente o Direito parece não acompanhar a evolução das ciências sociais que lhe são irmãs.
Steven Pinker, Professor de Psicologia de Harvard University, curiosamente mostra que, na verdade, a sociedade e o indivíduo em si, em termos gerais, aprimoraram-se moralmente, tornaram-se mais virtuosos, no sentido de que as crueldades contra os animais diminuíram e cada vez mais setores da sociedade se levantam e se unem contra maus-tratos, na luta pela defesa e reconhecimento de suas dignidades, içando-os a um patamar superior a “coisa” e bem próximo de nós, como “pessoa“. Segundo Pinker, este infusivo levante compreende o “melhor anjo de nossa natureza“, nossa moralidade imanente, que, em detrimento das tecnicalidades jurídicas reducionistas, mostra-se bem mais evolutiva, humanista e civilizatória [46].
Civilizações como a suíça, onde o Poder Público e a sociedade conjuntamente firmam regras que eliminam o sofrimento animal e declaram como princípio do Estado a dignidade de todo ser vivo, inclusive planta, parece-nos o ápice da moralidade de dever e aspiração. Precedentes judiciais como os obtidos na Argentina e Inglaterra inspiram-nos a caçar a recalcitrância do Judiciário em reconhecer direitos básicos para pessoa não-humana, de modo que a teleologia protetiva obtida nas demandas coletivas (proibição de rinhas e farra do boi, por exemplo) serve com igual eficácia e legitimidade para animais individuais ou determináveis.
O direito não é um regalo dos deuses, mas um produto da experiência humana e, nessa condição, um objeto cultural [47]. Se a experiência humana atual reconhece a dignidade não-humana ao ponto de libertar os melhores anjos de nossa natureza em sua defesa, o Direito tem o dever existencial de acompanhar esse dinamismo, abandonando sua exegese primitiva. Há a necessidade de o Direito se reinventar, iniciar o processo de reelaboração e atualização de linguagem.
A interpretação constitucional é ferramenta peculiar ao Direito como um todo. Não há direito sem interpretação; não há norma sem que haja interpretação. Ao pretender determinar o alcance da prescritividade valorativa da norma, o direito revela-se àqueles a quem se dirigem no presente. Embora o legislador histórico tenha usado as leis a partir do contexto linguístico do tempo em que as editou, o seu sentido literal só poderá ser determinado segundo a compreensão semântica das pessoas a quem elas falam agora, tornando a interpretação constitucional em parte retrospectiva e em parte prospectiva; retrospectivo de fontes e prospectivo de modelos.
CONCLUSÃO
O mecanismo hermenêutico de atualização de linguagem – que significa a mudança de valoração – há de emergir conotações sociológicas e denotações políticas angariadas no curso do tempo e na mudança da realidade fática social. Sob os auspícios do texto constitucional vertido no art. 225, § 1º, VII e § 3º, da CF, convidamos não apenas os operadores do Direito, mas a sociedade como um todo a refletir sobre o reconhecimento da dignidade de seres não-humanos que, potencialmente como nós, possuem a capacidade de senciência, autoconsciência, aptidão deôntica e compreensão do tempo.
Não estamos tratando de elevá-lo à plena igualdade com o ser humano, tampouco advogamos a adesão a um regime complexo e dúplice de direitos e deveres ou o abandono da alimentação da carne animal pelos humanos – em que pesem milhares de pessoas adotarem dieta vegetariana. Não. O que buscamos incutir é bem menos radical, até porque acreditamos que a evolução sobre este tema há de ser gradual.
Concentramos nossos esforços persuasivos em demonstrar que a empatia e a razão humana nos permitem realizar juízo moral em defesa dos animais não-humanos que sofrem desnecessário sofrimento e desprezo por meio da crueldade humana. Partindo de um senso moral de certo ou errado, balizado pelo critério jurídico de justo ou injusto, o postulado filosófico da igual consideração de interesses requer que enxerguemos, em determinados animais, as atribuições existenciais de uma pessoa, cujos círculos de afinidades os aproximam demasiadamente do homem, revelando incontestes injustiças experimentadas por espécies não-humanas.
O valor justiça é universal e há de ser visto de maneira transcendental. Na moralidade que se esconde por detrás da norma, temos a moralidade de dever e a de aspiração, em que o divisor entre elas se encontra detido mais nas mãos do operador do Direito do que na própria lei. Num impulso retórico, cremos que nosso papel como integrantes do progresso jurídico deve seguir a simbologia motivacional liderada pelo Professor John Keating – interpretado pelo saudoso Robin Williams – no filme Sociedade dos Poetas Mortos,para quem a coragem do simples gesto de subir sobre uma mesa demonstra o espírito humano de superar a estagnação e a indolência mental. É o limiar que os profissionais do direito enfrentam entre receptor passivo da norma ou integrante na elaboração do direito.
Nosso ímpeto reflexivo, tal qual na dramaturgia, inquieta-se com o desprogresso, sobretudo quando nele se encontram vestígios indeléveis da injustiça. Se o maior dos males está na injustiça que não pode ser vingada, segundo escólio platônico, que haja ao menos um movimento de mudança que traga a esperança de mudança de modo a não se perpetuar a injustiça.
O Direito, enquanto ciência social, há de dialogar com os demais ramos coirmão – como antropologia, psicologia e filosofia – para aperfeiçoar seu alcance em nome da justiça. O direito material existe e é de estatura constitucional, mas a aplicação semântica do direito carece de maior efetividade no campo do direito substancial e, sobremaneira, no processual.
Por fim, não se advoga aqui a criação de deveres obrigacionais de animais não-humanos, revivendo os esdrúxulos casos da antiguidade onde vacas eram julgadas e sentenciadas por seus atos contra propriedades e humanos. Estamos tratando aqui, em primeiro lugar, do reconhecimento da dignidade não-humana para, em segundo lugar, dar-lhe garantias e direito minimamente básico e naturais, como o direito à vida, liberdade e bem-estar – ainda que não de forma absoluta. Adicionalmente, havendo transgressões ilícitas a esses direitos, comportamentos imorais, errados e injustos, denotativos da crueldade humana que submetam o animal a desnecessário sofrimento, que ao menos abra-se a ele, individual ou coletivamente, a possibilidade de ver seu direito defendido perante a sociedade e Judiciário pelos mesmos meios materiais e processuais de um ser absolutamente incapaz de fazer por si próprio.
REFERÊNCIAS
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[1] SHERMER, Michael. The Moral Arc: how science and reason lead humanity toward truth, justice and freedom.New York: Henry Holt, 2015. p. 11.
[2] Quando falamos de “moral” e “ética”, basicamente estamos nos referindo à mesma coisa: o dever e juízo sobre o agir certo/errado. A distinção de vocábulo existe porque “moral” descende do latim “moralis”, enquanto “ética” origina-se da filosofia grega, do “êthikos”. Embora tecnicamente “ética” tenha uma compreensão mais restrita que “moral” (ética sugere o dever cívico aristotélico da boa vida, é algo mais individualista, ao turno que moral possui um espectro mais amplo, interferido na individualidade, coletividade e política), usamos a abordagem das duas terminologias para tornar mais compreensível o alcance da “justiça”. Vide MACINTYRE, Alasdair. After virtue.3rd edition. Indiana: University of Notre Dame Press, 2007. p. 38.
[3] GLOVER, Jonathan. Humanity: a moral history of the 20th century. 2nd edition. London: Yale University Press, 2012. p. 401-402.
[4] BINMORE, Ken. Natural justice.New York: Oxford University Press, 2005. p. 15.
[5] Kant elaborou sua teoria em 1785 e assim o fez para rebater, na época, a teoria lançada por outros dois prestigiosos filósofos, Jeremy Bentham e David Hume. Ao estabelecer que o dever moral de agir corretamente não deve se desviar por inclinações e emoções, na verdade, estava criticando a obra contemporânea de David Hume, que, ao contrário de radicar a moral na razão, preconizou que “a razão é e sempre será escrava da emoção”, alterando a centralidade da moral para a emoção humana. Vide MACINTYRE, Alasdair. After Virtue.3rd edition. Indiana: University of Notre Dame Press, 2007. p. 49.
[6] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2006.
[7] PINKER, Steven. The better angels of our nature: why violence has declined.New York: Penguin Books, 2011. p. 574.
[8] GREENE, Joshua. Moral tribes: emotion, reason, and the gap between us and them. New York: The Penguin Press, 2013. p. 31.
[9] SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 137.
[10] ROSEN, Michael. Dignity: its history and meaning. Cambridge: Harvard Press University, 2012. p. 22-23.
[11] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2006.
[12] ROSEN, Michael. Dignity: its history and meaning. Cambridge: Harvard Press University, 2012. p. 101.
[13] BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of morals and legislation. New York: Dover, 2007. p. 311.
[14] Disponível em: <http://www.ucl.ac.uk/Bentham-Project/who/autoicon>.
[15] SINGER, Peter. Ética prática.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 85.
[16] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil – Parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 205.
[17] SINGER, Peter. Ética prática.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 119-126.
[18] SHERMER, Michael. The Moral Arc: how science and reason lead humanity toward truth, justice and freedom. New York: Henry Holt, 2015. p. 282.
[19] Disponível em: <http://evolutionaryanthropology.duke.edu>.
[20] Demonstrações sobre os avanços neste sentido são exibidos no documentário Ape Genius, de 2008, dirigido por John Rubin.
[21] Disponível em: <http://gsite.univ-provence.fr/gsite/document.php?pagendx=1031&-
-project=lpc>.
[22] Reproduzido no documentário Speciesism: The Movie, de 2013, dirigido por Mark Devries.
[23] Disponível em: <http://www.psychology.emory.edu/nab/dewaal/>.
[24] BORENSTEIN, Seth. Animal intelligence: apes, monkeys, other creatures show complex cognition, scientists say.Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/2012/06/24/ape-intellect-monkey-cognition-primate_n_1623107.html>.
[25] ROSEN, Michael. Dignity: its history and meaning. Cambridge: Harvard Press University, 2012. p. 142.
[26] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil – Parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 204-206.
[27] SANDEL, Michael. Justice: a reader.New York: Oxford University Press, 2007. p. 84-87.
[28] STF, ADIn 3.776, Plenário, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ29.06.2007.
[29] STF, RE 153.531, 2ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, DJ13.03.1998; e STF, ADIn 1.856, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello, DJE14.10.2011.
[30] SINGER, Peter. Ética prática.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 74-79.
[31] Disponível em: <http://www.improbable.com/ig/>.
[32] Federal Ethics Committee on Non-Human Biotechnology (ECNH). The dignity of living beings with regard to plants: moral consideration of plants for their own sake. Berne: ECNH c/o FOEN, 2008. p. 20.
[33] Veja nota de ODON, Daniel Ivo. The Acknowledgment of non-human rights in Argentinian Legal System.Disponível em: <http://lcbackerblog.blogspot.com/2014/12/daniel-ivo-
-odon-on-emerging-rights-of.html#more>.
[34] Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-us-canada-30338231>.
[35] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 68.
[36] Buscar sobre “teoria tridimensional” de REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito.
- ed. São Paulo: Saraiva, 1994; “normas-princípios” de ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2007; e moralidade inerente à norma de DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[37] Confira em REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva.
[38] FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven: Yale University Press, 1969, primeiro capítulo.
[39] PLATÃO. A República.São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 45.
[40] GREENE, Joshua. Moral tribes: emotion, reason, and the gap between us and them. New York: The Penguin Press, 2013. p. 97.
[41] GLOVER, Jonathan. Humanity: a moral history of the 20th century. 2nd edition. London: Yale University Press, 2012. p. 150.
[42] SINGER, Peter. Ética prática.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 283.
[43] TAYLOR, Paul W. Respect for nature: a theory of environmental ethics. New Jersey: Princeton University Press, 2011. p. 90-98.
[44] Vídeo disponível no youtube: <www.youtube.com/watch?v=V-7XFMgIH68>.
[45] Disponível em: <http://newsfeed.time.com/2010/10/19/woman-who-threw-cat-in-trash-
-can-gets-paltry-fine/>.
[46] PINKER, Steven. The better angels of our nature: why violence has declined.New York: Penguin Books, 2011. p. 455-474.
[47] BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição.Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 209.