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EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA: UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇAS, EQUÍVOCOS E DEFENSIVIDADES

Amaury Nunes Direito

Os embargos de divergência surgiram, no Direito processual civil brasileiro, ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1939. Recorde-se que, Naquela época, não havia sido criado, ainda, o Superior Tribunal de Justiça, nem o legislador instituíra o recurso especial. Toda a matéria, constitucional e infraconstitucional era deliberada, em última instância, pelo Supremo Tribunal Federal.

O CPC/39 instituiu os seguintes recursos: (i) apelação, (ii) embargos de nulidade ou infringentes do julgado, (iii) agravo, (iv) revista, (v) embargos de declaração, e (vi) recurso extraordinário. De acordo com o art. 853, então vigente, o recurso de revista era cabível nas hipóteses em que divergissem em suas decisões finais, duas ou mais Câmaras ou Grupos de Câmaras, entre si, quanto ao modo de interpretar o direito em tese. A vocação da Revista era, assim, a pacificação da interpretação da lei no ambiente interno de cada tribunal.

O entendimento do STF, sempre restritivo no pertinente a cabimento de recursos, fixou-se no sentido de que não era possível aviar recurso de revista perante aquela corte, haja vista que, em sua divisão interna, não se cogitava de câmaras ou grupos de câmaras. Somente existiam turmas.

Uma vez fixado esse raciocínio desfavorável ao cabimento do recurso de revista, era possível que cada turma do STF tivesse seu próprio entendimento sobre certo tema de Direito, sem que houvesse possibilidade de uniformização, por provocação dos jurisdicionados, no âmbito do Pleno daquela Corte.

Para obviar esse inconveniente, o legislador ordinário promoveu por meio da lei 623/1949, uma alteração no art. 833 do CPC/39. Nesse dispositivo, fez incluir um parágrafo único (em escolha topologicamente inadequada), esclarecendo: Além de outros casos admitidos em lei, são embargáveis, no STF, as decisões das turmas, quando divirjam entre si, ou de decisão tomada pelo Tribunal Pleno.

A partir daí, o STF não teve mais argumentos para não uniformizar o entendimento de seus órgãos fracionários. Não o fazia, entretanto, por meio do recurso de revista do art. 853 e sim por meio dos embargos do parágrafo único do art.883 que, logo, passaram a ser denominados embargos de divergência.

Com o advento do CPC de 1973, os embargos de divergência vieram previstos no parágrafo único do art. 546:

Art. 546…

Parágrafo único. Além dos casos admitidos em lei, é embargável, no Supremo Tribunal Federal, a decisão da turma que, em recurso extraordinário, ou agravo de instrumento, divergir do julgamento de outra turma ou do plenário.

Com o advento da Constituição de 1988 e a criação do STJ, foi possível criar, também, o recurso especial (tão extraordinário quanto o originalmente existente). Não havia, porém, previsão legal para o cabimento de embargos de divergência para o caso de dissenso entre decisões proferidas por turmas, ou por turma e outro órgão colegiado. Sem embargo disso e, também, sem embargo do fato de que, no Direito brasileiro, recurso em matéria processual civil, somente pode ser criado por lei, o Regimento Interno do STJ de 1989 criou e regulamentou os Embargos de Divergência em Recurso Especial (arts. 266 e 267). Tivemos, assim, o tribunal da defesa da legalidade perpetrando uma absoluta ilegalidade.

Essa situação perdurou até o advento da lei 8.038, de 28/05/90, que regulou os recursos perante os tribunais superiores. De fato, o artigo 29 dessa lei veio colmatar a lacuna existente no sistema recursal, desde o advento da Constituição de 1988. Dispôs o artigo sob menção, in expressis verbis:

Art. 29. É embargável, no prazo de quinze dias, a decisão da turma que, em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial, observando-se o procedimento estabelecido no regimento interno.

Com isso, passamos a ter lei Federal dispondo sobre os embargos de divergência em REsp. As coisas ficariam bem, se o legislador tivesse se limitado a isso. Ocorre que assim não se deu. Deveras, o legislador ao arrematar a lei, estabeleceu:

Art. 44. Revogam-se as disposições em contrário, especialmente os arts. 541 a 546 do Código de Processo Civil.

Ora, ao revogar o art. 546 do Código de Processo Civil, terminou por revogar, inadvertidamente, a disposição que regulava o cabimento dos embargos de divergência em recurso extraordinário. O vício que era, antes, do recurso especial passou a ser do recurso extraordinário, regido exclusivamente por norma regimental, sem norma de lei ordinária que contivesse a previsão recursal.

Essa situação perdurou até a edição da lei 8.950, de 1994, que corrigiu a série de equívocos perpetrados. O legislador, então, fez constar os embargos de divergência do rol do artigo 596.

Art. 496. São cabíveis os seguintes recursos:

VIII – embargos de divergência em recurso especial e em recurso extraordinário.

Demais disso, regulou o cabimento do recurso tanto no âmbito do STJ quanto no âmbito do STF, em dois incisos distintos:

Art. 546. É embargável a decisão da turma que:

I – em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial;

Il – em recurso extraordinário, divergir do julgamento da outra turma ou do plenário.

Parágrafo único. Observar-se-á, no recurso de embargos, o procedimento estabelecido no regimento interno.

Agora, com o CPC/2015, o recurso passa a ter nova regência. Convém adiantar que a ideia do novo CPC era tornar atribuir ao recurso em exame uma dimensão muito maior do que aquela que lhe atribuíam, até então, a legislação de regência e a prática restritiva dos tribunais superiores. A lei 13.256, de 2016, publicada ainda no período de vacatio legis, reduziu esse escopo, mas algo há de ter ficado! Vejamos o que diz a lei:

Art. 1.043. É embargável o acórdão de órgão fracionário que:

I – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito;

II – (Revogado pela lei 13.256, de 2016)1

III – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo um acórdão de mérito e outro que não tenha conhecido do recurso, embora tenha apreciado a controvérsia;

IV – (Revogado pela lei 13.256, de 2016)2

– 1º Poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária.

– 2º A divergência que autoriza a interposição de embargos de divergência pode verificar-se na aplicação do direito material ou do direito processual.

– 3º Cabem embargos de divergência quando o acórdão paradigma for da mesma turma que proferiu a decisão embargada, desde que sua composição tenha sofrido alteração em mais da metade de seus membros.

– 4º O recorrente provará a divergência com certidão, cópia ou citação de repositório oficial ou credenciado de jurisprudência, inclusive em mídia eletrônica, onde foi publicado o acórdão divergente, ou com a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores, indicando a respectiva fonte, e mencionará as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados.

– 5º (Revogado pela lei 13.256, de 2016)3

Art. 1.044. No recurso de embargos de divergência, será observado o procedimento estabelecido no regimento interno do respectivo tribunal superior.

1º A interposição de embargos de divergência no Superior Tribunal de Justiça interrompe o prazo para interposição de recurso extraordinário por qualquer das partes.

2º Se os embargos de divergência forem desprovidos ou não alterarem a conclusão do julgamento anterior, o recurso extraordinário interposto pela outra parte antes da publicação do julgamento dos embargos de divergência será processado e julgado independentemente de ratificação.

Da leitura do texto legislativo, percebe-se que os embargos de divergência têm a finalidade de uniformização da jurisprudência intramuros, tanto no que concerne ao agir do STF como no pertinente à atuação do STJ. Afinal, é justamente o STJ um dos maiores transgressores da própria orientação jurisprudencial.

Se os tribunais superiores, cada qual no seu escaninho, são os grandes responsáveis pelo exercício da função nomofilácica, não há como admitir a absoluta pendularidade e sem-cerimônia com que os precedentes são tratados no Direito brasileiro. Esse papel de uniformizar a jurisprudência no âmbito interno de cada tribunal já podia ser realizado por meio do instituto da assunção de competência, inserido no CPC/1973 pela lei 10.352, de 2001, e pela afetação, já prevista nos regimentos internos dos tribunais superiores. Não obstante a existência desses dois mecanismos, movimentáveis pelo próprio aparelho judiciário, os embargos de divergência (que são de movimentação das partes) continuarão a permitir o exercício de relevante papel na busca pela certeza possível do Direito, na luta pela segurança jurídica do cidadão frente às perturbadoras oscilações jurisprudenciais.

Relativamente à nova regência dos embargos de divergência, a primeira boa anotação deve ser pertinente ao fato de que, agora, esses embargos (que somente são cabíveis no âmbito dos tribunais superiores) são cabíveis de acórdãos proferidos por órgãos fracionários (turmas do STF e STJ, ou seções do STJ), haja vista que, sob a égide da legislação anterior, não cabiam embargos de divergência contra acórdão proferido pelas seções do STJ.

A segunda é a que decorre do inciso III do art. 1043, cuja redação é, inicialmente, igual à do inciso primeiro, mas que, na parte final diverge (sem trocadilho) de forma eloquente, ao dispor: “ … em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo um acórdão de mérito e outro que não tenha conhecido do recurso, embora tenha apreciado a controvérsia”.

Quem milita nesses tribunais já deve ter perdido a conta de quantas vezes viu e leu uma turma de tribunal dizer que não conheceu do recurso, mas a leitura do acórdão permitiu deduzir exatamente o contrário: conhecimento do recurso, exame do mérito, desprovimento da irresignação. O não-conhecimento era apenas e tão somente uma forma de inviabilizar, desde logo, o aviamento dos embargos de divergência. Agora, o texto da lei dá alguma esperança ao jurisdicionado, ressalvada ao tribunal a possibilidade de criação de alguma outra “jurisprudência defensiva”.

A terceira boa anotação revela-se no § 1º do art. 1.043 que permite fundar a divergência em paradigma obtido em julgamento de recursos (que não sejam extraordinário e especial) e ações de competência originária. Ocioso dizer que esse preceito veio a lume justamente para afrontar a “jurisprudência defensiva” do STJ que, há pouco tempo, havia sido estabelecida no sentido de só admitir o exame de divergência entre tese fixada no julgamento de Resp (acórdão recorrido X acórdão paradigma). Se o paradigma fosse obtido no julgamento de um recurso ordinário ou no julgamento de um mandado de segurança, os embargos de divergência não seriam admitidos (!), ainda que a tese jurídica debatida fosse exatamente a mesma!

A quarta anotação tem pertinência com a possibilidade de trazer como prova da divergência um acórdão paradigma que haja sido lavrado na mesma turma que proferiu o acórdão embargado, desde que a composição do colegiado tenha sofrido alteração em mais da metade de seus membros. É bem de ver que esse dispositivo da lei (§ 3º do art. 1.043) já foi placitado, por muito tempo, no século passado, pela jurisprudência do STF. Com o nascimento do STJ e com sua necessidade de afirmação como órgão julgador independente, passou-se a um entendimento restritivo, no sentido de que se o entendimento da turma modificada passou a ser X e se, em outra turma, não há entendimento Y, não há divergência a ser apaziguada.

Agora, por força de lei, devemos voltar ao entendimento anterior. Não podemos nos animar tão cedo e pensar que o STJ vai entregar de mão beijada o que havia sido fixado com a súmula 168: Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado. Vai que ele encontra outra redação para a súmula, mas chega ao mesmo resultado…

A quinta boa alteração tem pertinência com o fato de que o legislador estabeleceu que o aviamento dos embargos de divergência interrompe o prazo para interposição de recurso extraordinário por qualquer das partes (trazendo regra que existia somente em relação aos embargos de declaração) e que, se tiver ocorrido a prematura interposição de recurso extraordinário, este será processado e julgado, independentemente de ratificação, se os embargos de divergência forem desprovidos ou não alterarem a conclusão do julgamento anterior.

 

 

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