DO TESTAMENTO CERRADO E SUA REGULAMENTAÇÃO
José Fernando Simão
Julia Martins Gomes
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Origens do Testamento Cerrado. 3 O Regime do Testamento Cerrado no Código Civil de 2002. 4 O Caráter Sigiloso do Testamento Cerrado. 5 A Disciplina da Revogação do Testamento Cerrado no Código Civil de 2002, na Doutrina e na Jurisprudência. 6 A Vulnerabilidade do Testamento Cerrado. 7 Da Efetiva Necessidade de se Alterar o Código Civil em Matéria Testamentária e seus Reflexos.
1 Introdução
O Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) consulta-nos a respeito da elaboração de anteprojeto de lei tratando do testamento cerrado e da necessidade de novas regras legais sobre o tema, o qual se propõe a modificar a instrumentalização do testamento cerrado, bem como introduzir novas disposições quanto à guarda deste instrumento.
São as propostas:
– o testamento cerrado pode ser adotado, a critério do testador, por instrumento público ou por documento escrito pelo próprio testador, ou escrito por outrem a rogo do testador, o qual sempre o assinará;
– o testamento por escritura será lavrado em livro especial, de guarda sigilosa no tabelião; o testamento cerrado, por documento manuscrito, depois de aprovado e registrado, ficará guardado em cofre reservado do tabelião
– nos inventários judiciais ou extrajudiciais, o Colégio Notorial deve ser obrigatoriamente notificado pelo Juízo ou pelo tabelião sobre a existência de testamento em vigor e o cartório em que foi lavrado ou esteja depositado;
– o cartório notificado deve enviar cópia do testamento lavrado, se for o caso, ou o original do testamento manuscrito, para os procedimentos judiciais de abertura e cumprimento;
– o testamenteiro designado no testamento será intimado para o compromisso e cumprimento da sua função legal;
– aos testamentos cerrados lavrados em livros do tabelião terão o acesso exclusivamente do testador;
– os testamentos cerrados manuscritos ou lavrados em livro do tabelião serão aprovados e registrados com a presença de testemunhas, as quais não tomam conhecimento dos termos nos testamentos.
2 Origens do Testamento Cerrado
No direito romano pré-clássico, havia três formas normais de testamento, das quais o testamento calatis comitiis e o testamento in procinctu eram as mais antigas e o testamento per aes et libram era a mais recente. O primeiro deles podia ser feito, em tempo de paz, duas vezes por ano, na ocasião de reunião dos comícios por cúrias, presididos pelo Sumo Pontífice. Daí o nome comitiis. O segundo, diferentemente, era feito durante o tempo de guerra. Surge, pois, o último da “necessidade em que se encontrava alguém, às portas da morte, de, em tempo de paz, testar fora dos dois dias por ano em que se reuniam os comícios por cúrias“[1].
Entende-se, pois, que o testamento cerrado teve seu embrião originado justamente deste testamento per aes et libram[2].
Indicada a origem romana do testamento cerrado, verifica-se que, no ordenamento jurídico luso-brasileiro, a figura do testamento cerrado já estava presente nas Ordenações Afonsinas. Sobre a afirmação de que o testamento cerrado haveria chegado apenas com as Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 80, diz Pontes de Miranda: “Não é verdade. Lá está êle nas Ordenações Manuelinas e – mais – nas próprias Ordenações Afonsinas” [3]. E, nesse sentido, continua:
“Depois de falar do costume (‘que foi e he d’antigamente em estes Regnos’), as Ordenações Afonsinas, Livro IV, Título 103, § 1, foram assaz claras: ‘O qual costume declaramos em esta guisa. Primeiramente mandamos, que aja lugar em todo testamento, assy aberto feito per Tabelliam, como no caso que tever estormento pruvico nas costas, e que as testemunhas em elle contheudas sejam todos baroões, e homeens que nom sejam servos, e que sejam maiores que quatorze annos, em tal guisa que com o Tabelliam, que fizer o testamento, ou instrumento nas costas delle, sejam seis’. No § 5: ‘E se alguum quiser fazer codicillo, quer aberto feito per Tabelliam, quer çarrado com estormento nas costas, quer feito e assinado pelo testador, ou per alguma outra privada pessoa, deve-o fazer com quatro testemunhas, barooens ou molheres, livres, e maiores de quatorze annos, em tal guisa que com o Tabelliom sejam cinquo testemunhas’. E no § 6: ‘E quando o testamento, ou codicillo assy forem feitos, como dito he, mandamos que valham, assy como se tevessem sete, ou cinquo testemunhas, segundo a forma do Direito commuum’.” [4]
Seguindo a tradição romana e lusitana, o Código Civil brasileiro de 1916 trouxe a disciplina do testamento cerrado em seus arts. 1.638 até 1.644, dispondo o art. 1.749 da revogação de tal modalidade testamentária.
Atualmente, o Código Civil brasileiro de 2002 cuida da matéria nos arts. 1.868 até 1.875, dispondo o art. 1.972 sobre sua revogação.
3 O Regime do Testamento Cerrado no Código Civil de 2002
O testamento cerrado constitui modalidade testamentária ordinária composta de duas partes, quais sejam a cédula testamentária, cuja natureza é particular, e o instrumento público de aprovação, cuja natureza é pública. Cédula e instrumento são produzidos em momentos diversos, submetem-se a regimes distintos, têm diferentes requisitos essenciais de validade, mas são instrumentos que se completam obrigatoriamente[5].
Coloca-se, em primeiro lugar, a análise da atividade do testador. Deve este, ou alguém a seu rogo, redigir, à mão ou mecanicamente, a cédula testamentária, que pode se apresentar em língua nacional ou estrangeira (art. 1.871). É requisito de sua validade que a cédula seja assinada e, caso seja elaborado mecanicamente, o testador deverá assinar cada página do documento como forma de autenticá-lo (art. 1.868, parágrafo único).
Em segundo lugar, procede-se à análise da fase pública, correspondente à atividade do tabelião. Nesta, a cédula testamentária deve ser entregue, necessariamente, pelo testador ao tabelião na presença de duas testemunhas (art. 1.868, I), momento em que o testador declara que aquela é sua disposição última de vontade e requer sua aprovação (art. 1.868, II). O tabelião deve lavrar o auto de aprovação na presença de duas testemunhas e, em seguida, lê-lo ao testador e às testemunhas (art. 1.868, III), para que só então possa ser assinado pelo tabelião, pelo testador e pelas testemunhas (art. 1.868, IV). Concluído o auto de aprovação, cabe ao tabelião cerrar e coser o instrumento aprovado (art. 1.869, caput) e, em seguida, entregá-lo ao testador ou à pessoa por ele indicada, lançando, em seu livro, nota do lugar, dia, mês e ano em que o instrumento foi aprovado e entregue (art. 1.874).
Assim, cédula testamentária e auto de aprovação, juntos, cerrados e cosidos no mesmo invólucro, constituem o testamento cerrado, cuja abertura se produzirá quando for apresentado em juízo (em procedimento de abertura, de registro e de cumprimento previsto nos arts. 1.125 e seguintes do CPC) à época da abertura da sucessão.
4 O Caráter Sigiloso do Testamento Cerrado
A escolha pelo testamento cerrado dentre as modalidades ordinárias testamentárias se dá essencialmente por seu caráter sigiloso, uma vez que nem o Tabelião nem as testemunhas têm ciência de seu conteúdo se assim o testador decidir. Tal caráter se apresenta, pois, como a maior vantagem do testamento cerrado.
Não há impedimento legal que impeça ao testador dar ciência do conteúdo ou mesmo fazer a leitura do testamento cerrado, mas isso se afasta da vantagem desta forma de testar, que é manter ignorada a vontade do testador, a qual só será revelada após a sua morte.
Sobre o inegável caráter sigiloso do testamento cerrado, a doutrina é pacífica. Assim preleciona Pontes de Miranda: “Havendo o testamento público e o particular, o cerrado só se justifica como a forma velada, com a qual o testador, querendo, ocultará as suas últimas vontades” [6].
Também é essa a reflexão dos principais manualistas do século XX.
De acordo, Silvio Rodrigues diz: “Em tese, trata-se de instrumento cujo conteúdo só o testador conhece e essa a vantagem que apresenta“[7]–[8].
Do mesmo modo, entende Orlando Gomes:
“Sua vantagem principal é permitir que as disposições testamentárias permaneçam ignoradas até sua abertura. Tanto as pessoas estranhas como o próprio tabelião desconhecem-lhe o conteúdo, absolutamente sigiloso.”[9]
Concorda Washington de Barros Monteiro:
“(…) testamento cerrado, às vezes, chamado secreto ou místico, é o escrito pelo próprio testado, ou por alguém a seu rogo, com caráter sigiloso, completado pelo instrumento de aprovação lavrado por oficial público, presentes cinco testemunhas.”[10]
Por fim, Carlos Roberto Gonçalves:
“A vantagem de tal modalidade testamentária consiste no fato de manter em segredo a declaração de vontade do testado, pois, em regra, só este conhece o seu teor. Nem o oficial nem as testemunhas tomam conhecimento das disposições, que, em geral, só vêm a ser conhecidas quando o instrumento é aberto após o falecimento do testador.” [11]
5 A Disciplina da Revogação do Testamento Cerrado no Código Civil de 2002, na Doutrina e na Jurisprudência
Dispõe o art. 1.875 do Código Civil de 2002 sobre a revogação do testamento cerrado: “Art. 1.972. O testamento cerrado que o testador abrir ou dilacerar, ou for aberto ou dilacerado com seu consentimento, haver-se-á como revogado“.
Da leitura de tal dispositivo, entendem a doutrina e a jurisprudência que o testamento cerrado se revoga quando aberto pelo próprio testador ou por outrem, com o consentimento daquele, uma vez que se presume o propósito do testador de revogá-lo[12].
Contudo, tal presunção é afastada quando inexiste consentimento do testador, hipótese em que o testamento pode ter sido aberto inadvertidamente ou proposital e maliciosamente.
Nesses últimos casos, entende a doutrina que:
“Considerar-se-á revogado o testamento cerrado que vier a ser aberto pelo testador. Presume o legislador que, nestas condições, o seu autor pretendeu revogá-lo. No entanto, se for encontrado aberto após o falecimento de seu autor, deverá o magistrado a quem se o apresentar determinar a verificação desta situação, para que reste apurado se foi aberto inadvertidamente ou até mesmo maliciosamente por quem o encontrou, ou por qualquer outra pessoa. Se assim restar provado, e porque não foi o testador quem o abriu, o juiz o considerará válido e ordenará o seu cumprimento.”[13]
No mesmo sentido:
“A lei estabelece que a abertura ou dilaceração do testamento cerrado implica revogação, se feita pelo testador ou com sua aquiescência. A regra geral é que testamento rasgado pelo testador, ou a seu mandado, demonstra sua vontade de revogar. A vontade de revogar não é expressa, mas se manifesta pelas circunstâncias. Se a cédula foi fortuitamente aberta ou dilacerada, não opera a presunção. A questão passa ao campo probatório. Cabe aos interessados provar a eficácia ou ineficácia do testamento. Se não houver acordo entre os interessados, não estando clara a intenção do testado, só a ação, com contenciosidade, deslindará a questão. O juiz não pode determinar o cumprimento do testamento que não se apresenta intacto (art. 1.125 do CPC). Se a presunção não fosse relativa, não precisaria o Código Civil referir-se à hipótese, porque o testamento cerrado que não se apresentar intacto está nulo. A lei criou, no entanto, uma possibilidade de que valha a cédula. O exame da prova nesse caso deve ser muito rigoroso, porque a situação facilita a fraude. Entendeu a lei não ser absoluta a presunção no tocante a esse requisito de validade do testamento cerrado. Abre possibilidade ao juiz de aparar injustiças.” [14]
Ainda sobre o art. 1.972:
“O artigo menciona a hipótese de abertura ou dilaceração do testamento cerrado pelo próprio testado ou ainda por terceira pessoa, com o consentimento do testado, casos em que teremos a revogação real. Nestes casos, há presunção do legislador da intenção do testador de revogar o testamento. A doutrina denomina esse ato de revogação presumida. Esta orientação tem sido firmada por nossos tribunais, cabendo à parte interessada, ou seja, ao herdeiro ou legatário beneficiário do testamento, a prova por todos os meios admitidos em lei de que a abertura ou dilaceração foi acidental ou realizada por terceiro. O testamento cerrado apresenta riscos, porquanto qualquer pessoa poderá abri-lo ou dilacerá-lo com o objetivo de contar com a presunção de revogação ditada pelo artigo em comento.”[15]
E Silvio Rodrigues, em seu livro:
“Tal é a orientação certa. Aparecendo dilacerado ou aberto o testamento cerrado, deve o juiz julgá-lo revogado, a menos que os interessados, de maneira veemente, comprovem que a abertura foi feita contra a vontade do testado, possivelmente por terceiros, a qual ela aproveitava.” [16]
Por sua vez, Orlando Gomes:
“Cabendo ao juiz, e somente a ele, abri-lo, evidente se torna que, se lhe for apresentado testamento já aberto, deve de logo decretar sua nulidade, denegando a ordem de cumprimento, não sob o entendimento, meramente conjectural, de que foi inutilizado pelo testador com o propósito de inutilizá-lo, mas porque, quebrado o sigilo, não subsiste o testamento, a menos que se prove ter sido intencionalmente violado por pessoa interessada em dar causa à nulidade.” [17]
E Washington de Barros Monteiro:
“(…) mas não se inutiliza o testamento se é terceira pessoa que o abre, por descuido ou inadvertência. Justificado cabalmente o fato, com citação de todos os interessados, cabe ao juiz determinar-lhe o cumprimento oportuno.” [18]
Também Pontes de Miranda:
“Se alguém abriu o testamento, em vez do juiz, ou houve êrro, ou dolo, ou simples inadvertência de terceiro, ou foi o próprio testado que o quis destruir. Não se pode considerar revogado o testamento cerrado que não foi aberto pelo testador, intencionalmente. Se foi outrem que o abriu, tem de ser feita, perante o juiz, que o teria de abrir, a justificação do que ocorreu, citados os interessados.” [19]
Carlos Roberto Gonçalves assim entende também:
“Entretanto, não se tem por revogado o testamento se foi aberto por terceiro em razão de mero descuido. Em princípio, estando aberto ou dilacerado o testamento cerrado, o juiz deve considerá-lo revogado, salvo se os interessados demonstrarem, de forma convincente, que a abertura ou dilaceração foi feita contra a vontade do testador, ou por terceiro, acidental ou dolosamente.” [20]
A jurisprudência segue a orientação da doutrina. Três exemplos são analisados. Na Apelação Cível 231.965-4/8-00 [21], pedia-se a abertura e o registro de testamento cerrado, bem como a determinação judicial de seu cumprimento. Ordenada a exibição do testamento cerrado, este foi apresentado já aberto, motivo pelo qual seu registro foi negado e sua nulidade foi decretada. No julgamento da Apelação, manteve-se a decisão do juízo de Primeiro Grau. Com fundamento nos arts. 1.125 do Código de Processo Civil e 1.644 do Código Civil de 1916 – ao qual corresponde o atual art. 1.875 do Código Civil de 2002 -, entendeu-se que:
“Sendo assim, se o testamento levado ao juiz não estava cerrado e se o invólucro em que esteve cerrado não foi exibido ao juiz, impossível se tornou o seu registro e, por via de consequência, o seu cumprimento, pois que inegável a existência de vício externo capaz de torná-lo suspeito de nulidade, ou de falsidade, sem que os apresentantes houvessem justificado que a sua abertura tenha se dado por acidente, por inadvertência de que o encontrou ou por malícia de algum interessado ou outro motivo qualquer e provada a veracidade de sua alegação, de modo a afastar a possibilidade de que a sua abertura foi realizada pelo testador.” (grifos nossos)
Na Apelação 0029997-39.2011.8.26.0100[22], requeria-se a cassação de sentença que extinguiu, sem julgamento de mérito, o processo de abertura, registro e cumprimento de testamento cerrado, pois este havia sido apresentado já aberto, o que violaria o art. 1.875 do Código Civil de 2002. Diferentemente, entendeu-se, no grau de apelação, que o fato de o testamento se encontrar aberto não o invalida necessariamente, desde que a parte interessada prove que o documento foi aberto inadvertidamente, sem o conhecimento ou a autorização do testador. Nesse sentido, disse o magistrado:
“É dizer, a legislação de regência outorgou ao juiz a prerrogativa de abrir o testamento cerrado. Todavia, o fato de o testamento encontrar-se aberto, como sucedeu na espécie dos autos, não o invalida necessariamente, como pareceu ao MM. Juiz de 1º grau, desde que o interessado (ou interessados) prove que o documento foi aberto inadvertidamente, sem o conhecimento ou a autorização do testador.” (grifos nossos)
Por fim, o Agravo de Instrumento 381.364-4/5-00 [23] foi interposto em face de decisão que indeferiu o pedido de registro, arquivamento e cumprimento de dois testamentos cerrados por padecerem de vício externo, uma vez que seus conteúdos haveriam sido revelados aos herdeiros. Ao contrário, entendeu-se que:
“Na hipótese em tela, o equívoco da agravante, ao abrir os testamentos cerrados, não desnaturou a essência dos documentos, pois não se teve qualquer evidência de desvirtuamento do seu conteúdo – ou da vontade dos testadores -, seja porque quando da abertura os testadores já haviam falecido, seja porque não ficou caracterizado outro vício externo – pelo que se sabe, não foi arguido pelos outros herdeiros ou interessados – capaz de gerar a nulidade dos documentos por vício de falsidade ou por suspeição.”
Conclui-se, assim, que a jurisprudência e a doutrina já se mostram sensíveis à questão da revogação do testamento cerrado por fatos que ocorrem durante sua guarda, momento em que está mais vulnerável e sujeito a ações de terceiros que, sem o consentimento do testador, possam macular sua validade.
6 A Vulnerabilidade do Testamento Cerrado
A vulnerabilidade fática é característica essencial e própria da natureza do testamento cerrado e se revela pela problemática da revogação do testamento cerrado sem o consentimento do testador quanto ao campo probatório.
Silvio Rodrigues assim fala sobre tal vulnerabilidade:
“Apresenta, entretanto, o inconveniente de facilmente se extraviar. Não são raros os casos em que, embora se saiba que o de cujus faleceu com testamento cerrado, não se consegue encontrá-lo, principalmente quando fica em mãos de herdeiros legítimos.”[24]
Do mesmo modo, Orlando Gomes:
“Tem, entretanto, o inconveniente de poder ser facilmente extraviado, ou inutilizado, que poderia ser obviado, porém com a instituição de um arquivo testamentário. A intervenção por este modo do notário, ou de quem lhe exerça as funções, retira-lhe o caráter de testamento particular, inserindo-o entre as formas testamentárias públicas ou notariais. Não se lavra, todavia, no livro de notas, tal como o testamento público, intervindo o tabelião unicamente para lhe dar autenticidade exterior.” [25]
7 Da Efetiva Necessidade de se Alterar o Código Civil em Matéria Testamentária e seus Reflexos
A questão que se coloca é, então, saber se a matéria tal como prevista no Código Civil merece reforma para permitir que a forma cerrada seja utilizada de maneira mais ampla pelos cidadãos.
De início, na opinião do subscritor da presente consulta, um Anteprojeto de Lei em matéria testamentária é muito útil para aperfeiçoar eventuais arcaísmos do Código Civil e difundir a prática de testar que se afasta das tradições brasileiras.
Talvez pelo fato de o Brasil ser um país jovem, se comparado ao Velho Mundo, e em países jovens a morte ser verdadeiro tabu, talvez pela desinformação do povo brasileiro quanto a instrumentos jurídicos, ou mesmo pelo fato de muitos brasileiros falecerem com poucos ou sem bens, a sucessão testamentária no Brasil ainda é pouca.
A reforma, então, para facilitar a elaboração do testamento, parece útil e bem-vinda. Contudo, a simples alteração dos dispositivos referentes ao testamento cerrado parece-me pouco relevante e, por sim, de nenhum impacto perante os eventuais testadores.
Sua utilidade era discutível já na vigência do antigo Código Civil, quando a doutrina o utilizava como exemplo para a hipótese de reconhecimento de um filho adulterino (na linguagem vetusta e inconveniente do século XIX) em que o testador só queria que fosse conhecido após a sua morte.
Se é verdade que, para evitar briga atual entre os futuros herdeiros, essa forma pode ser adequada, já que o conteúdo do instrumento não será conhecido, atualmente, o testador pode deixar “oculto” o conteúdo, utilizando a forma pública, desde que faça o testamento em Tabelião de cidade próxima e não informe aos herdeiros, mas apenas às testemunhas.
Na prática, é essa forma de “ocultar” a existência e o conteúdo de um testamento público que é adotada.
Assim, a simples mudança do texto de lei quanto ao testamento cerrado parece-me esforço demasiadamente grande com pouco ou nenhum resultado prático.
Assim, apesar do acima exposto, analisam-se então as ponderações do IASP por meio de seu Conselheiro Dr. Elias Farah a respeito do tema.
“a) o testamento cerrado pode ser adotado, a critério do testador, por instrumento público ou por documento escrito pelo próprio testador, ou escrito por outrem a rogo do testador, o qual sempre o assinará.”
Testamento cerrado por instrumento público não revela necessariamente uma contraditio in terminis. Público é o testamento feito pelo Tabelião e lavrado em seu livro de notas. Isso não significa que o testamento tenha publicidade que, no Direito brasileiro, se dá por meio do registro, seja no Registro de Imóveis, seja no de Títulos e Documentos; mas a questão que se coloca é outra.
Indaga-se qual a vantagem de o testador optar por um testamento cerrado lavrado no livro pelo Tabelião se sua única vantagem é o sigilo? O Tabelião teria conhecimento do conteúdo e poderia orientar o testador corrigindo eventuais vícios?
Essa, s.m.j., é a função do advogado que deve ser contratado para esclarecer seu cliente antes de este elaborar o instrumento. Assim, a lavratura em livro pode ter outra função: evitar o extravio do instrumento, e isto analisaremos oportunamente.
Ademais, surgiria uma outra questão: o Tabelião daria ciência às testemunhas do teor do testamento? Pelas afirmações do Dr. Elias Farah, a resposta é negativa. Logo, há um documento no livro que não será conhecido pelas próprias testemunhas que assinaram o livro. Assim, há necessidade de o projeto estabelecer que a assinatura não se dará no próprio instrumento público, mas em outro instrumento, que será o auto de aprovação.
“b) o testamento por escritura será lavrado em livro especial, de guarda sigilosa no tabelião; o testamento cerrado, por documento manuscrito, depois de aprovado e registrado, ficará guardado em cofre reservado do tabelião.”
A questão que se coloca é a possibilidade de extravio do instrumento, razão pela qual, se lavrado em livro ou guardado em cofre pelo Tabelião, esse risco diminui.
Em qual dos livros do Tabelionato de Notas esse testamento cerrado de conteúdo sigiloso seria lavrado? Livro Especial? Se assim for, é necessária a reforma das regras vigentes quanto aos livros existentes no Tabelionato.
É contra a natureza do próprio livro a noção de sigilo. Livro se manuseia, folheia. Seriam necessários cofres, então, para se guardarem os livros especiais e os instrumentos particulares.
Ademais, há possibilidade de todos os tabelionatos do Brasil contarem com cofres? Os Tabelionatos são inúmeros e existem em pequenas cidades do país. Qual a responsabilidade civil do Tabelionato se houver ciência do conteúdo destes livros sigilosos?
“c) nos inventários judiciais ou extrajudiciais, o Colégio Notorial deve ser obrigatoriamente notificado pelo Juízo ou pelo tabelião sobre a existência de testamento em vigor e o cartório em que foi lavrado ou esteja depositado;”
O Código de Normas do TJSP já prevê o seguinte:
“Subseção XI
Da Solicitação de Informações sobre a Existência de Testamentos ao Colégio Notarial do Brasil.
Art. 218. Requerido o inventário, os juízes requisitarão ao Colégio Notarial do Brasil, Conselho Federal, informação sobre a existência de testamento.”
A mudança deve ocorrer no CPC para que tal norma prevaleça em todo o país, e não no Código Civil. Aliás, com a grande reforma do CPC e o novo diploma projetando a mudança, neste momento, seria precipitada a proposta de novo projeto de lei.
“d) o cartório notificado deve enviar cópia do testamento lavrado, se for o caso, ou o original do testamento manuscrito, para os procedimentos judiciais de abertura e cumprimento;”
Não há interesse público em questão testamentária. O procedimento de abertura e registro ex officio também depende das regras do CPC. Atualmente, todo o procedimento depende do interessado, seja herdeiro ou legatário. A mudança se daria naquele diploma, e não no Código Civil.
“e) o testamenteiro designado no testamento será intimado para o compromisso e cumprimento da sua função legal;”
Novamente a questão de intimação do testamenteiro precisa de alteração das regras do Código Civil e do CPC. E, se for alterado para o testamento cerrado, que a alteração prevaleça também para o testamento público.
Por fim, creio que qualquer modificação em matéria testamentária deva ser feita em pareceria com os Tabeliães ou suas entidades de classe, tal como a ANOREG, pois a experiência prática de quem lida com a questão é essencial para o aprimoramento da lei.
Diante do exposto, entendo que não deve o IASP pensar, isoladamente, sem a ANOREG, em um projeto de lei de reforma apenas do testamento cerrado, mas deve, sim, com as entidades próprias, pensar em uma grande reforma da disciplina do testamento no Brasil.
Esse era meu parecer, s.m.j.
[1] ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano: instituições de direito romano: B) Parte especial: direito das obrigações; direito de família; direito das sucessões. 4. ed. rev. e acresc. Rio de Janeiro: Forense, 1986. v. 2. p. 436.
[2] É o que diz Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: “A carência de uma fórmula de testamento que viesse atender a circunstâncias de urgência, distintamente da excepcionalidade dos tempos de guerra, levou os romanos à criação do testamento per aes et libram.
Esta nova forma é modalidade embrionária do atual testamento cerrado, cujas disposições se revestem de caráter sigiloso, se assim preferir o testador, sendo esta a grande vantagem que este instrumento apresenta” (CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2007. p. 229).
[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973. t. LIX. p. 69.
[4] Ibidem, p. 69-70.
[5] CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2007. p. 233.
[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973. t. LIX. p. 83-84.
[7] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 19. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 7. p. 108.
[8] E continua: “Esse testamento, velharia que é, só apresenta a vantagem de ser secreto, de modo que o testador, e só ele, conhece o seu conteúdo, o que poupa da inimizade dos herdeiros afastados e do assédio dos que gostariam de o ver dispor de seus bens de modo diverso” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 19. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 7. p. 109).
[9] GOMES, Orlando. Sucessões. 13. ed. rev. atual. e aum. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 115.
[10] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1979. v. 6. p. 115.
[11] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das sucessões. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 7. p. 268.
[12] Nesse sentido: “O testamento cerrado que o testador abrir ou dilacerar perde a eficácia, pois o legislador presume-lhe o propósito de revogá-lo. O mesmo se dá se a abertura ou dilaceração foi levada a efeito por terceiro com consentimento do testador” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 19. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 7. p. 220).
[13] Ibidem, p. 233-234.
[14] VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 2.040-2.041.
[15] MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (Org.). CHINELLATO, Silmara Juny (Coord.). Código Civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 4. ed. São Paulo: Manole, 2011.
[16] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 19. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 7. p. 221.
[17] GOMES, Orlando. Sucessões. 13. ed. rev., atual. e aum. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 121.
[18] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 197. v. 6. p. 25
[19] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973. t. LIX. p. 124.
[20] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das sucessões. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 7. p. 452.
[21] TJSP, Apelação Cível 231.965-4/8-00, Rel. Ary José Bauer Junior, DJ 11.10.05.
[22] TJSP, Apelação 0029997-39.2011.8.26.0100, Rel. J. L. Mônaco da Silva, DJ 06.03.2013.
[23] TJSP, Agravo de Instrumento 381.364-4/5-00, Rel. João Carlos Garcia, DJ 30.08.05.
[24] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 19. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 7. p. 109.
[25] GOMES, Orlando. Sucessões. 13. ed. rev., atual. e aum. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 115.