DO “SUPER” CÔNJUGE AO “MINI” CÔNJUGE: A SUCESSÃO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO ANTEPROJETO DO CÓDIGO CIVIL
Ana Luiza Maia Nevares
Um dos temas mais desafiantes quando se pensa numa reforma do Direito Sucessório é aquele relativo à sucessão hereditária do cônjuge e do companheiro. Isso porque não existe mais uma única forma de constituir família, o casamento não é mais indissolúvel e desde 1962 a mulher casada deixou o rol dos relativamente incapazes e pôde trabalhar e auferir os seus rendimentos sem qualquer interferência do consorte. Assim, o casamento “estável” e “até que a morte” separe o casal, há muito deixou de existir.
Diante disso, os arranjos conjugais revelam-se das mais variadas formas: há casamentos ou uniões estáveis longevas com e sem prole comum; há segundos, terceiros e diversos casamentos ou uniões estáveis contraídos pela mesma pessoa, com filhos ou sem filhos, dando origem às famílias recompostas; há vínculos conjugais que duram pouquíssimo tempo; há aqueles em que ambos os consortes são independentes financeiramente, outros nos quais comumente a mulher adbica da sua carreira profissional ou mesmo de trabalhar por mais ou de se aperfeiçoar na profissão em prol do cuidado com a família, entre outros. Diante dessa diversidade, não é tarefa simples definir o estatuto sucessório no casamento e na união estável.
Em relação a um ponto, a Comissão nomeada para a Revisão e Atualização do Código Civil já tinha um norte: os direitos sucessórios dos cônjuges e dos companheiros não poderiam ser diversos. Com efeito, à luz da solidariedade familiar que informa os laços familiares e da inexistência de hierarquia entre as entidades familiares, já que é a Família a base da sociedade, que tem especial proteção do Estado (CF/88, art. 226, caput), sem qualquer distinção em relação à forma de constituição da entidade familiar, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que estabelecia direitos sucessórios para os companheiros em desigualdade com aqueles dos cônjuges, fixando a seguinte tese de repercussão geral: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (Tema nº 809)[1].
Desde a entrada em vigor do Código Civil de 1916, os direitos sucessórios do cônjuge passaram por profundas mudanças: do terceiro lugar na ordem de vocação hereditária (CC/16, art. 1.603, III), podendo ser afastado da sucessão (CC/16, art. 1.725), o cônjuge foi alçado a herdeiro necessário em propriedade plena no Código Civil de 2002, com cota mínima de ¼ da herança, passando pelo usufruto vidual a partir da Lei 4.121/62.
De fato, no Código Civil, o cônjuge foi elevado à centralidade da ordem de vocação hereditária, concorrendo em propriedade plena com descendentes e ascendentes, sendo-lhe, ainda, preservada a quarta parte da herança se for ascendente de todos os herdeiros com quem concorrer. Além da reserva hereditária, ao cônjuge, em qualquer regime de bens, e sem qualquer ponderação quanto à sua situação econômica na própria herança ou pessoalmente, é garantido o direito real de habitação vitalício em relação ao único imóvel residencial que integre o monte, destinado à residência da família (CC, art. 1.831). Não há dúvida que também ao companheiro são estendidas todas essas garantias.
Realmente, se pensarmos na família do início da década de 70, quando o atual Código Civil foi concebido, seria possível afirmar que havia uma clara e evidente inferioridade feminina na família, em especial em virtude da ascendência econômica do homem em relação à mulher, pelo exercício profissional. Além disso, o casamento era indissolúvel e o modelo nuclear – pai e mãe casados e filhos – era aquele almejado socialmente. Nessa perspectiva, considerava-se imperiosa a garantia de uma melhor posição sucessória ao cônjuge, uma vez que, na família nuclear, o cônjuge é o único componente estável e essencial, já que os filhos, em determinado momento, se desprenderão daquela entidade familiar, formando a sua própria[2].
A família do século XXI, quando finalmente o Código entrou em vigor, muito difere daquela da década de 70. Inicialmente, vale mencionar que o divórcio foi previsto em nosso ordenamento 25 anos antes. Segundo pesquisa do IBGE, em 2007, a média de duração de um casamento civil poderia ser estimada em 17 anos. Dez anos depois, o tempo médio entre a data do casamento e a data da sentença ou escritura do divórcio caiu para 14 anos, segundo as Estatísticas do Registro Civil 2017, do IBGE. A pesquisa mostrou que entre 2016 e 2017 o número de uniões registradas diminuiu 2,3% e o número de divórcios aumentou 8,3%, havendo uma proporção de três casamentos para cada divórcio[3].
O divórcio é uma das causas da recomposição das famílias, quando as pessoas constituem novos relacionamentos, com filhos anteriores exclusivos ou comuns, não sendo raro que, na sucessão hereditária, concorram o consorte do falecido e seus descendentes exclusivos, o que evidentemente é um potencial fonte de conflito. Além disso, não são infrequentes os casos em que o consorte sobrevivente teve um relacionamento curto com o autor da herança em comparação com o período no qual este último adquiriu o seu patrimônio objeto da sucessão.
Apesar de a inserção da mulher no espaço público e a sua independência seja cada vez mais acentuada, estamos longe de atingir uma plena e efetiva igualdade entre homens e mulheres. As políticas de inserção da mulher no espaço público vêm sendo exitosas, mas poucas são as políticas de inserção do homem no espaço privado, para dividir com a mulher as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos e idosos[4].
Como apontado no relatório Tempo de Cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade, da OXFAM BRASIL, (i) mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global – mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo; e (ii) 90% do trabalho de cuidado no Brasil é feito informalmente pelas famílias – e desses 90%, quase 85% é feito por mulheres[5]. Felizmente, parece haver uma tentativa de conscientização social dessa realidade, sendo exemplo do ora ponderado o fato de o tema da redação do Enem 2023 ter sido os “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
Não à toa, há uma acentuada diferença salarial entre o homem e a mulher: o rendimento das mulheres representa, em média, 77,7% do rendimento dos homens (R$ 1.985 frente a R$ 2.555) e o desemprego também as afeta mais, uma vez que a taxa de desocupação entre as mulheres é de 14,1%, enquanto a dos homens é 9,6%[6].
Além disso, não se pode olvidar a vulnerabilidade da mulher diante da violência física e moral perpetradas por homens, em especial no âmbito familiar, não importando a classe social, o que, por evidente, acentua ainda mais sua desigualdade econômica diante dos homens[7].
A desigualdade de gênero parece não ter sido bem acolhida nas propostas de reforma do Direito Sucessório no Anteprojeto do Código Civil
Com efeito, se é inegável que deve haver maior espaço de liberdade em relação ao cônjuge ou ao companheiro quanto à sua posição na sucessão hereditária do consorte falecido, não se pode descuidar que o fim de um relacionamento conjugal pela morte é evento que, além de trazer estresse psíquico, afetando a saúde física e mental do sobrevivente, pode ensejar queda brusca do padrão de vida e o surgimento de necessidades econômicas que não existiam durante a relação conjugal.
Diante disso, um caminho do meio seria mais adequado do que aquele que foi proposto pelo referido Anteprojeto. Nele, a maior liberdade quanto aos cônjuges ou companheiros na esfera conjugal restou assegurada a partir de dois mecanismos. O primeiro deles foi a exclusão do cônjuge e do companheiro do rol de herdeiros necessários, diante da nova redação do artigo 1.845, que garante a legítima apenas aos descendentes e aos ascendentes, excluindo a concorrência sucessória. O cônjuge e o companheiro, portanto, foram alçados ao terceiro lugar na ordem de vocação hereditária (nova redação do art. 1.829), só herdando na falta de descendentes e ascendentes, em simetria ao que era previsto na Lei Feliciano Pena de 1907, quando o cônjuge passou a não mais figurar na sucessão hereditária atrás dos colaterais, o que foi mantido no Código Civil de 1916.
Além disso, o Anteprojeto de Código Civil permite que cônjuges e companheiros renunciem à herança um do outro, podendo condicionar dita renúncia à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis, restando consignado que dita abdicação não excluirá o direito real de habitação e que será ineficaz se, no momento da morte do cônjuge ou do companheiro, o falecido não deixar parentes sucessíveis (nova redação do art. 426). Apesar de louvável a previsão legislativa em destaque, muito defendida pela doutrina, valeria ter sido nela consignado que a renúncia não abrangerá direitos conferidos ao sobrevivente por ato de última vontade, não se podendo deixar de constatar a pouca utilidade da referida previsão em um inciso com seis parágrafos diante do fato de o cônjuge ou o companheiro não figurarem mais no rol de herdeiros necessários, herdando apenas na falta de descendentes e ascendentes. Isso porque o maior desconforto da sucessão hereditária do cônjuge ou companheiro, tal como prevista no Código atual, é em relação à concorrência com os descendentes.
Por conseguinte, previsão que merece elogios, inspirada no Código Civil Francês[8], constante dos §§ 5º e 6º inseridos no artigo1.808, que determina ser ineficaz a renúncia de todos os direitos sucessórios, quando o renunciante, na data da abertura da sucessão, não possuir outros bens ou renda suficiente para a própria subsistência, devendo requerer no prazo de 180 dias que o juiz fixe os limites e a extensão de sua renúncia, de modo a assegurar a sua subsistência, em raras oportunidades será aplicada ao consorte sobrevivente.
Para o cônjuge ou companheiro sobreviventes que comprovarem insuficiência de recursos ou patrimônio, foi previsto um usufruto “sobre determinados bens da herança”, para garantir “a sua subsistência” (§ 1º, incluído no art. 1.850).
Se por um lado a referida disposição parece atender à vulnerabilidade econômica nas relações conjugais, tal atenção é insuficiente diante da desigualdade econômica da mulher. Basta pensar na limitação dos poderes conferidos ao usufrutuário. Some-se a isso o fato de que a referida previsão ensejará a litigiosidade nos inventários que se busca evitar, em razão de seu caráter extremamente aberto, já que não foi prevista qualquer baliza para o juiz interpretar o sentido e alcance da expressão “subsistência” e, ainda, quanto aos “determinados bens sobre os quais deve recair o usufruto”.
Não se olvida que a morte de um familiar, por diversas vezes, traz uma queda no padrão de vida da família, em especial para aqueles que dependiam financeiramente do falecido. Essa realidade é inexorável diante da herança deixada e nada se pode fazer: ninguém transmite mais direitos do que tem. No entanto, a toda evidência, existirão casos, em especial de mulheres, que têm recursos que supririam a sua subsistência, mas que ficam muito aquém do padrão de vida que vivenciava ao lado do consorte, havendo uma evidente dependência econômica em relação ao falecido. Assim, considerando uma discussão honesta frente ao montante do acervo hereditário e dos vínculos de solidariedade na família, melhor seria uma expressão que, ainda que aberta, daria maior concretude à previsão e estaria melhor adequada à distribuição de uma herança, não importando o seu valor, qual seja, a dependência econômica, já que esta afigura-se mais contectada ao padrão de vida, cuja queda leva, sem dúvida, a uma vulnerabilidade econômica e à necessidade de readequação do modo de vida.
Sobre o direito real de habitação, este foi mantido para o cônjuge e para o companheiro, sendo previsto que dito benefício será afastado quando o consorte sobrevivente tiver renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou quando constituir nova família. Sem dúvida, a proteção excessiva do atual artigo 1.831 deveria ser revista, porque atribui o direito real de habitação sem qualquer análise da situação patrimonial do beneficiário. No entanto, num cenário de exclusão de direitos, ao menos, o Anteprojeto deveria ter eliminado a exigência de só existir um único imóvel residencial no monte para a garantia do direito real de habitação, uma vez que, não raras vezes, esse requisito exclui a proteção à moradia, necessária em diversos casos.
Uma leitura rápida poderia fazer parecer que o cônjuge ou o companheiro poderiam se valer do instrumento previsto na nova redação conferida ao artigo 1.832 do Anteprojeto, que em iniciativa que merece ser louvada, trouxe para o Direito Sucessório o enaltecimento ao cuidado que foi dispensado ao falecido, tal como ocorre em ordenamentos jurídicos estrangeiros como o austríaco[9], proposta que se conecta com o acolhimento do envelhecimento da população, assim previsto, a saber:
Art. 1.832. O herdeiro com quem comprovadamente o autor da herança conviveu, e que não mediu esforços para praticar atos de zelo e de cuidado em seu favor, durante os últimos tempos de sua vida, se concorrer à herança com outros herdeiros, com quem disputa o volume do acervo ou a forma de partilhá-lo:
I – terá direito de ter imediatamente, antes da partilha, destacado do montemor e disponibilizado para sua posse e uso imediato, o valor correspondente a 10% (dez por cento) de sua quota hereditária;
II – se forem mais de um os herdeiros nas condições previstas no caput deste artigo, igual direito lhes será garantido, nos termos do §1º;
III – se a herança não comportar as soluções previstas nos §§ 1º e 2º e ela consistir apenas em único imóvel de morada do autor da herança, terão as pessoas apontadas no caput deste artigo direito de ali manterem-se, com exclusividade, a título de direito real de habitação.”
De fato, salvo raríssimas exceções, o cônjuge e o companheiro sobrevivente foi o cuidador do consorte falecido e como só será herdeiro na ausência de descendentes e ascendentes, nada poderá pleitear quanto ao cuidado dispensado a ele, à luz da nova redação do artigo 1.832. Não parece haver qualquer sentido enaltecer o cuidado que foi dispensado à pessoa falecida se o consorte sobrevivente não puder ser contemplado, em especial porque, como acima exposto, é a mulher aquela que presta, na maior parte dos casos, os cuidados à família, em especial ao seu marido ou companheiro e, não raras vezes, à família do marido, sendo responsável pelo cuidado com sogros e sogras.
Em que pese o acima exposto, o Anteprojeto traz outras ferramentas que poderão ser empregadas pelo consorte sobrevivente afastado da sucessão. Com efeito, o Anteprojeto propõe a inserção no ordenamento civil de instituto que já vem sendo aplicado por nossos Tribunais, relativo aos Alimentos Compensatórios, assim previsto no artigo 1.709-A, a saber, O cônjuge ou convivente cuja dissolução do casamento ou da união estável produza um desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do seu padrão de vida, terá direito aos alimentos compensatórios que poderão ser por prazo determinado ou não, pagos em uma prestação única, ou mediante a entrega de bens particulares do devedor.
Não se diga que dito instituto, porque previsto no Direito de Família, não se aplicaria em caso de dissolução da relação conjugal por morte. O princípio é o mesmo e não há qualquer vedação à invocação dos alimentos compensatórios pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente em caso de dissolução da sociedade por morte. Restará saber se dita demanda tramitará nas Varas de Família ou em apenso ao processo de inventário e o quanto irá atrasar este último, uma vez que o valor dos alimentos compensatórios terá que ser fixado antes da divisão da herança.
Outras ferramentas possíveis de serem invocadas pelo consorte sobrevivente estão previstas nos §§ 1º e 2º do art. 1688. No § 1º, restou previsto que, no regime de separação, admite-se a divisão de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade. Tal disposição parece despicienda, na medida em que o ordenamento jurídico proíbe o enriquecimento sem causa e não contribui para a segurança das relações jurídicas patrimoniais conjugais, porque insere previsão que não se coaduna com a natureza do regime da separação total convencional, sendo dita divisão, a toda evidência, uma exceção nesses casos. Já a segunda, prevista no § 2º do referido artigo 1.688, que confere direito a uma compensação pelo trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, a ser fixada pelo juiz, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar, demonstra a preocupação do Anteprojeto na parte do Direito de Família com a invisibilidade do trabalho feminino, o que merece ser enaltecido, mas não prevê qualquer parâmetro para o julgador, o que muito preocupa diante de arranjos familiares tão díspares como já exposto e da litigiosidade das demandas familiares.
Conceitos abertos e indeterminados, uma vez previstos na legislação, demandam parâmetros bem definidos pelo legislador, que devem vir em dispositivos que se valham da técnica legislativa narrativa, quando são explicitados os objetivos da previsão legal, sob pena de causarem insegurança jurídica, sem alcançar o objetivo para os quais foram propostos.
Resta saber qual seria a melhor posição do cônjuge e do companheiro na sucessão legítima. Como já apontado, essa definição é tarefa muito árdua.
No entanto, se a sucessão hereditária do cônjuge e do companheiro tal como prevista no Código Civil precisa ser alterada, porque cria a figura do “super cônjuge”, ou seja, aquele a quem são atribuídos direitos hereditários em proteção excessiva diante da nova configuração das famílias, não poderia esta criar a figura de um “mini cônjuge”, sem direitos salvo se inexistirem descendentes e ascendentes, porque, a toda evidência, tal sistema não contribuirá para o alcance da igualdade de gênero e, por consequência, da desigualdade social, norte que deve permear toda e qualquer alteração legislativa.
Assim, propõe-se que o cônjuge e o companheiro não sejam excluídos da concorrência sucessória em propriedade plena com os descendentes e ascendentes. Se dita concorrência permanecesse, haveria um limite até onde o julgador poderia prever o quinhão do consorte sobrevivente em caso de prova da dependência econômica.
Isso porque, o cônjuge e o companheiro poderiam ser afastados do rol dos herdeiros necessários, podendo pleitear uma cota parte da herança, no limite do que receberiam se não houvesse testamento contendo a sua exclusão, se provasse a dependência econômica do falecido. Balizas para o juiz deveriam ser previstas e estas, como determina o Código de Processo Civil (CPC, art. 489), deveriam ser bem manejadas para fundamentar a decisão judicial que atribuísse cota ao cônjuge ou ao companheiro.
Propõe-se como balizas o que segue abaixo:
A quota hereditária do cônjuge e do companheiro prevista será imputada na reserva dos herdeiros necessários, sendo mantida em sua integralidade a quota disponível do autor da herança, e será paga em dinheiro ou em bens da herança, cabendo à escolha aos herdeiros concorrentes.
Na hipótese de pagamento da quota hereditária do cônjuge e do companheiro em bens da herança, aplicar-se-ão os princípios e as regras da partilha.
Na atribuição e na quantificação da quota hereditária do cônjuge e do companheiro, o juiz levará em conta os seguintes critérios: a) a meação atribuída ao consorte sobrevivente ou a existência de bens comuns com o falecido; b) dependência econômica do cônjuge e do companheiro sobreviventes em relação ao autor da herança; c) as particularidades e necessidades dos demais herdeiros concorrentes; d) a duração do vínculo conjugal ou da união estável; e) a contribuição do cônjuge e do companheiro sobreviventes para a prosperidade e para o bem-estar do falecido e de sua família e para a formação do acervo patrimonial hereditário; f) a idade do cônjuge e do companheiro sobreviventes.
Da forma acima, a nova disposição que enaltece o cuidado, prevista no artigo 1.832, poderia ser invocada pelo consorte sobrevivente. Além disso, com a possibilidade de renúncia prévia à herança no pacto antenupcial ou de união estável, restaria preservada a autonomia privada consciente dos cônjuges e dos companheiros, podendo estes invocar as novidades propostas nos §§ 5º e 6º do art. 1.808, nos casos e no prazo ali previsto.
Um caminho do meio atenderia melhor aos reclames quanto à maior liberdade no estabelecimento da sucessão hereditária do cônjuge e do companheiro, à vulnerabilidade econômica da mulher e a variedade dos arranjos conjugais.
Sem dúvida, quando é determinação do Conselho Nacional de Justiça que a atividade jurisdicional seja exercida em atenção à vulnerabilidade da mulher, com a previsão do Protocolo de Gênero, que prevê um guia para magistradas e magistrados para julgarem com perspectiva de gênero, sendo o Passo 1 a resposta à denominada questão-guia, quanto à verificação se há desigualdades estruturais que têm algum papel relevante na controvérsia e, ainda, a análise de perguntas como se existe alguma assimetria de poder entre as partes envolvidas e se existem fatores socioambientais (ex.: dependência econômica) ou aspectos culturais (ex.: cultura de não intervenção em brigas maritais) que propiciem o risco, bem como se a autonomia da mulher está sendo respeitada, a reforma do estatuto sucessório do cônjuge e do companheiro deveria melhor olhar para aqueles que ficam diante da morte de um familiar, não esquecendo que o direito de herança, previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXX, não é apenas o direito daquele que detém o patrimônio, mas também o direito daqueles que recebem o patrimônio deixado e que aqui, no mundo dos vivos, travarão relações jurídicas diante da herança deixada.
[1] A equiparação da união estável ao casamento em relação aos regimes sucessórios foi considerada por parte da doutrina como o “fim” da união estável, ao argumento de que, com o julgamento em referência do STF, todos os direitos foram equiparados entre a união estável e o casamento, restando poucas diversidades entre as referidas relações familiares, relativas às formalidades de suas respectivas constituições. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Ainda existem diferenças entre casamento e união estável? São Paulo, maio 2019, in http://www.rodrigodacunha.adv.br/ainda-existem-diferencas-entre-casamento-e-uniao-estavel/. Acesso em 19.09.2019. Deve-se indagar, com apoio em Maria Celina Bodin de Moraes e Renata Vilela Multedo: “estaria mesmo a jurisprudência “sepultando” a união estável, como normalmente se pensa? Não seria o caso de pesquisar se o que vem sendo atingido é o casamento?”. Isso porque, realmente, as pessoas praticamente obtêm os mesmos efeitos com o casamento e a união estável, mas o primeiro é repleto de regras para “o casar e o descasar”, havendo a completa ausência destas para a união estável. MULTEDO, Renata Vilela; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A privatização do casamento. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 2, dez. 2016. Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2016/12/Multedo-e-Bodin-de-Moraes-civilistica.com-a.5.n.2.2016.pdf. Acesso em 19.09.2019, p. 4.
[2] Mezzanote, Luisa. La sucessione anomala del coniuge; Napoli: ESI, 1989, p. 16. Marini, Annibale, “Transformazioni sociale e successione del coniuge”, discurso proferido na inauguração do ano acadêmico 1884-1985 na Universidade de Macerata, in Inaugurazione anno accademico 1984-1985, Macerata, 1985, pp. 39-52, p. 49.
[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/22866-casamentos-que-terminam-em-divorcio-duram-em-media-14-anos-no-pais, acesso em 23.04.2024.
[4] A guarda compartilhada é um exemplo de tal política que paulatinamente vem produzindo importantes e desejáveis efeitos de inserção do homem no espaço doméstico.
[5] https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar/#:~:text=A%20desigualdade%20econ%C3%B4mica%20est%C3%A1%20fora,a%20crise%20global%20da%20desigualdade. Acesso em 23.04.2024.
[6] https://tst.jus.br/-/desigualdade-salarial-entre-homens-e-mulheres-evidencia-discrimina%C3%A7%C3%A3o-de-g%C3%AAnero-no-mercado-de-trabalho acesso em 20.04.2024. “No Brasil, estudos com base na Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio12,13 anteciparam o que foi abordado no Fórum de Davos, dizendo que o trabalho informal de cuidar, exercido majoritariamente por mulheres, se fosse remunerado, aumentaria em 10,3% o PIB nacional. Vasconcelo e Küchemann consideram que a responsabilização das mulheres pelo cuidado informal contribui para alimentar a compreensão de que a reprodução social é uma responsabilidade delas e não da sociedade. Além de minar uma divisão equitativa de atribuições entre homens e mulheres, influi também para a ausência de prioridades nas políticas públicas, resultando no silêncio por parte do Estado, no déficit dos serviços públicos endereçados à cobertura dessas tarefas e, consequentemente, no aprofundamento das desigualdades e da pobreza” (…). “Costuma acontecer que, nas famílias, uma mulher é escolhida como cuidadora pela pessoa de quem cuida, ou é autoescolhida, ou ainda, exerce sua função por falta de outra opção. No Brasil, o espectro de idade delas vai de 26 a 86 anos. São mulheres que abrem mão da vida pessoal, profissional social e afetiva. E mesmo quando seu trabalho é banhado de amor e reconhecimento, ela se empobrece do ponto de vista econômico e social e passa a ter, desde então, uma existência restrita e confinada, unicamente dedicada ao familiar em situação de dependência. As que são apoiadas por algum tipo de renda consideram esse aporte insuficiente. E as que vivem com pouca renda, reduzem as opções de suporte frente à carga das necessidades. A maioria afirma que não recebe ajuda de ninguém e nenhuma recompensa econômica por sua dedicação. Cuidar sempre afeta a vida da cuidadora. Em estudos que as comparam com a população em geral, são representadas com pior saúde física, mais frequente uso de medicamentos, taxas elevadas de depressão e ansiedade, estresse, distresse, menor satisfação com a vida e sensação de sobrecarga. Existem evidências de que o comprometimento cognitivo e a doença mental do idoso são mais onerosos para quem cuida deles, do que os problemas físicos. Os agravos da própria saúde mental da pessoa que acompanha o idoso, frequentemente aumentam à medida do tempo gasto no cuidado. Além desses problemas, quem cuida passa por um aumento nos gastos com conta de luz, de suprimentos geriátricos e médicos, de transporte e para realizar adaptações na casa. Como menciona o Ministério da Saúde da Espanha no Libro Blanco de la Dependencia essa realidade “situa as mulheres frente aos sistemas de proteção numa situação discriminatória, pois, sendo elas as que produzem mais bem estar, são as que menos se beneficiam da vida social”. MINAYO, Maria Cecília de Souza, https://www.researchgate.net/publication/348773736_Cuidar_de_quem_cuida_de_idosos_dependentes_por_uma_politica_necessaria_e_urgente. Acesso em 24.04.2024.
[7] O Brasil registrou 1.463 casos de mulheres que foram vítimas de feminicídio no ano passado – ou seja, cerca de 1 caso a cada 6 horas. Esse é o maior número registrado desde que a lei contra feminicídio foi criada, em 2015. O número também é 1,6% maior que o de 2022, segundo o relatório publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) nesta quinta-feira (7). A pesquisa apontou que 18 estados apresentaram uma taxa de feminicídio acima da média nacional, de 1,4 mortes para cada 100 mil mulheres. https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/07/brasil-feminicidios-em-2023.ghtml. Acesso em 24.04.2024.
[8] Nos artigos 930-3 e 930-4 do Code Civil, resta previsto que aquele que renunciou previamente à ação de redução de doação poderá requerer a revogação da renúncia, no prazo de 01 ano a contar da abertura da sucessão, nos seguintes casos: 1° A pessoa de quem se pretende herdar não cumpre as obrigações alimentares para com ele; 2° No dia da abertura da sucessão, encontra-se num estado de necessidade que desapareceria se não tivesse renunciado aos direitos reservados; 3° O beneficiário da renúncia é culpado de crime ou contravenção contra a sua pessoa.
[9] §§ 677 ff ABGB 8. Legado de cuidado
(1)Uma pessoa próxima do falecido que cuidou dele, não apenas em pequena medida, durante pelo menos seis meses nos últimos três anos antes da sua morte, tem direito a um legado legal, a menos que uma doação tenha sido concedida ou um pagamento tenha sido acordado sobre.
(2)Cuidado é qualquer atividade que serve para fornecer a uma pessoa que necessita de cuidados os cuidados e a ajuda necessários, tanto quanto possível, e para melhorar a oportunidade de levar uma vida autodeterminada e orientada para as necessidades.
(3) Parentes próximos são as pessoas do círculo de herdeiros legais do falecido, o seu cônjuge, companheiro registado ou companheiro e os seus filhos, bem como o companheiro do falecido e os seus filhos.
Como registra Alexandra Braun, “ o legado de cuidado não resolve os casos realmente difíceis em que os membros da família sacrificam as suas vidas por um período significativamente superior a três anos (…). No entanto, um pedido de enriquecimento sem causa pode ser apresentado para todos os serviços que excedam os três anos, embora a restituição seja devida apenas para aqueles serviços que excedam o dever familiar”. BRAUN, Alexandra. Claiming a Promised Inheritance: a Comparative Study. Oxford. Oxford University Press, 2022, p. 347.
Publiação oficial: https://www.migalhas.com.br/depeso/406048/do-super-conjuge-ao-mini-conjuge-a-sucessao-do-conjuge