DIRIGISMO E REVISÃO CONTRATUAL: DOS CÓDIGOS PARA O CORONAVÍRUS À LUZ DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO SOLIDARISMO
Felipe Cunha de Almeida
SUMÁRIO: Introdução; 1 Direito das obrigações e o contrato como uma de suas fontes; 1.1 Dirigismo contratual e intervenção estatal; 2 Princípios contratuais: autonomia privada, pacta sunt servanda, boa-fé objetiva, função social dos contratos e cláusula rebus sic stantibus; 3 As teorias sobre a revisão contratual: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil; 3.1 Caso fortuito e força maior; 4 Coronavírus e medidas adotadas pelo País; 5 Constituição Federal: a dignidade da pessoa humana e o solidarismo em matéria contratual; 6 Princípio da conservação dos contratos; 6.1 O depósito judicial da parcela entendida como incontroversa e o Código de Processo Civil; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Quando as partes firmam determinado contrato, manifestando a sua vontade inequívoca quanto ao conteúdo e efeitos da avença, estão vinculadas ao instrumento. Direitos e obrigações para ambos os lados, via de regra, passam a existir. Portanto, veremos que tal contrato é lei entre as partes e, se descumprido, certamente consequências à parte inadimplente irão ocorrer.
Contudo, tendo em vista e em especial os contratos de longa duração ou diferidos, muitos fatos podem ocorrer na vida dos contratantes, ocasionando a mora, por exemplo, ou o cumprimento não exatamente nos moldes da avença e, dependendo, até a impossibilidade de o contrato não ser mais cumprido.
Tendo em vista esse quadro e também considerando a atualidade em que vivemos, em especial pela presença do coronavírus, o objetivo deste artigo é analisar a possibilidade de revisão dos pactos, em linhas gerais e até a excludente de responsabilidade, tendo em vista a ocorrência de fatos extraordinários, como a questão da covid-19. Em termos de números, a situação atual das consequências da pandemia é a seguinte, conforme dados extraídos do Google, que apresenta um panorama global da situação, sendo que, no Brasil, das 22.318 pessoas atingidas pela doença, há também 1.230[1] vítimas fatais[2]. Além disso, diversas medidas estão sendo editadas e, muitas delas dizem respeito diretamente às relações privadas e aos contratos[3]. Contudo, nosso objetivo neste artigo não é o de analisar medida por medida (e nem os tipos contratuais que podem ser objeto de revisão), mas alertar sobre a existência como fator incidente às relações sociais.
Não podemos perder de vista que, em situações como a atual, o bom senso, ao lado do Direito, deve destacar-se ainda mais, eis que, por exemplo, o empregado dispensado do seu trabalho, pelo fechamento de estabelecimentos comerciais por decreto, não é a única vítima. Ao lado, o empregador, justamente pelo fechamento, não vende, e não tem a possibilidade de honrar o contrato de trabalho. Por sua vez, o empregado dispensado também não consegue honrar seus compromissos, e assim por diante.
Com base na premissa acima, e considerando o panorama atual da crise sem precedentes que se estabelece, sempre mirando a Constituição Federal, em especial a solidariedade e dignidade, é que desenvolvemos o presente artigo, buscando trazer as soluções que o ordenamento prevê, e também para o momento atual, em termos de revisão dos contratos. Afinal de contas e por analogia às lições de Pietro Pierlingeri, comentando a Constituição italiana, a Carta “[…] ocupa o lugar mais alto de todas as fontes […]”[4].
Frisamos, por outro lado, que nosso objetivo também tem a perspectiva de valorização da boa-fé objetiva, no sentido de conservação dos contratos, mas de forma que siga seu curso de maneira equilibrada, mirando também o processo civil, na particular exigência prevista, em termos de valores incontroversos a título de revisão, como será visto mais adiante.
1 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E O CONTRATO COMO UMA DE SUAS FONTES
Se o foco central deste artigo é a possibilidade da revisão contratual tendo em vista também a pandemia que se instalou no final do ano de 2019, em um primeiro momento o conceito de obrigação deve ser trazido, eis que o inadimplemento contratual insere-se no campo do direito obrigacional. Caio Mário da Silva Pereira ressalta que, em que pesem as inúmeras definições acerca da obrigação, e considerando que cada autor apresenta a sua, o conceito do instituto não é de difícil elaboração[5].
O saudoso jurista supracitado menciona que o ordenamento jurídico é recheado de diversos deveres e, como exemplo, apresenta deveres do cidadão para com o Estado; deveres na família; deveres de uma pessoa para com a outra, na esfera da vida civil. Contudo, o que interessa para o direito das obrigações, ressalta o mestre, ou como aponta para a palavra obrigação, é o seu sentido técnico ou estrito[6]. E assim define a obrigação como “[…] o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável“[7]. Caio Mário ressalta, ainda, que o vínculo deve basear-se “[…] na obediência aos valores e princípios constitucionais, inclusive, na dignidade da pessoa humana e a solidariedade social“[8]. Silvio Rodrigues, por sua vez, conceitua a obrigação como “[…] o vínculo de direito pelo qual alguém (sujeito passivo) se propõe a dar, fazer ou não fazer qualquer coisa (objeto) em favor de outrem (sujeito ativo)”[9]. Arnaldo Rizzardo, a seu turno, concebe a obrigação como “[…] um vínculo de direito que liga uma pessoa a outra, ou uma relação de caráter patrimonial, que permite exigir de alguém uma prestação“[10].
Superado mesmo que brevemente o conceito de obrigação e tendo em vista que o foco do presente artigo busca apontar as hipóteses de revisão contratual, é hora de uma análise do contrato como uma das fontes das obrigações[11]. Nestes termos leciona Arnoldo Wald: “Fonte ou causa da obrigação é o elemento gerador da relação obrigacional, que tem variado na história do direito, sofrendo modificações sucessivas nas diversas legislações“[12].
Segundo a doutrina de Carlos Alberto Bittar: “As obrigações podem resultar de disposição de vontade humana (fontes voluntárias) […]“[13],como a declaração unilateral de vontade ou do contrato[14]. E justamente na questão do contrato, por envolver no mínimo duas partes, é que assim leciona Fernando Noronha:
São as partes intervenientes no negócio jurídico que especificam o respectivo conteúdo e que determinam as consequências a serem produzidas, embora sempre dentro dos limites fixados pelo ordenamento à sua liberdade de atuação. […]. De qualquer modo, quaisquer que sejam esses limites, sempre se poderá dizer que os direitos e as obrigações das partes são nalguma medida determinados por elas próprias.[15]
Portanto e considerando as lições da doutrina, o contrato insere-se no âmbito das fontes das obrigações e, via de regra, como já afirmado antes, deve ser cumprido. Mas, por outro lado, veremos que nem sempre será desta maneira tão rígida e individualista a exigência da prestação, sendo que o inadimplemento pode apresentar justificativa que faça o contrato ter certa alteração ou, ainda, vir então a ser objeto de resolução.
1.1 Dirigismo contratual e intervenção estatal
Arnoldo Wald leciona que análise do direito constitucional revelou uma profunda mudança em termos da função estatal. Diz o mestre que as Constituições francesas de 1791 e 1793 “[…] se limitavam a assegurar os direitos políticos do homem […]“[16]. Ocorre que, em especial e a partir do ano de 1848, outras pretensões foram surgindo, passando a ter a face de direitos econômicos e sociais, exigindo também a proteção do Estado. No Brasil, as Constituições de 1934, 1946, 1967, 1968 e 1988 passam então a ver e ter referências especiais em termos de atuação estatal, também em relação à ordem econômica e social[17]. Inclusive, após o final da Segunda Guerra Mundial, ocasionou uma mudança de postura, alcançando “[…] o último reduto do liberalismo tradicional”[18]. Com o passar do tempo, então, foi surgindo a necessidade de se conciliar o liberalismo político com o dirigismo econômico, com especial destaque à proteção do mais fraco e também da necessidade de intervenção nas hipóteses de conflitos entre interesses privados e públicos[19]. Não há dúvidas, portanto, de que, dessas breves explicações, os contratos passaram a ser alvo também de intervenção, conforme continuaremos a ver.
Para as relações de consumo, Bruno Miragem[20] nos direciona para o inciso II do art. 4º do Código de Defesa do Consumidor[21].
O mestre supracitado destaca o papel que tem o Estado nas relações de consumo. Para além do dever constitucional em termos de proteção do consumidor, o Código estabelece uma série de direitos subjetivos àquele, bem como outra série de deveres impostos ao fornecedor. Assim, o Código busca a realização e o respeito dos deveres para com o vulnerável[22].
Em linhas gerais, assim já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça acerca do dirigismo contratual:
Trata-se de noção consolidada em âmbito doutrinário denominada dirigismo contratual, a qual, nas palavras de Arnaldo Rizzardo, revela que “há necessidade do Estado em intervir nas disposições dos negócios e reduzir a liberdade contratual, impedindo a celebração de determinadas obrigações, adscrevendo cláusulas diretórias, negando valor a objetivos leoninos, exigindo certas contraprestações e disciplinando preferências” (Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 33).
Esta compreensão já foi incorporada em sede jurisprudencial conforme as peculiaridades dos recursos julgados no STJ (REsp 1403272/RS, 3ª T., DJe 18.03.2015; REsp 1317528/PR, 3ª T., DJe 19.09.2016; REsp 936.741/GO, 4ª T., DJe 08.03.2012; REsp 1169334/RS, 4ª T., DJe 29.09.2011).[23]
Em outro caso, a Corte, analisando caso que discutia atraso na entrega, fez menção expressa ao dirigismo contratual, que, inclusive, tem ligação direta com os princípios que iremos analisar no próximo tópico[24].
Se estamos falando da possibilidade de revisão contratual, existem situações que podem, por exemplo, vir à tona após a conclusão de determinado contrato, onerando excessivamente a prestação anteriormente assumida. Portanto, Emilio Betti pondera sobre a importantíssima questão relativa à superveniente onerosidade excessiva da prestação, no sentido de estar presente a aplicação da onerosidade excessiva seja pelo risco contratual ou não; e assim leciona, ressaltando a questão da cooperação:
Para nós, as duas hipóteses colocam-se na mesma linha: em suma – na hipótese, isto é, da superveniente impossibilidade da prestação não imputável ao devedor – ocorre que, liberado o devedor, surge o problema da imposição do risco contratual; na outra hipótese, há um evento que não produz, certamente, a liberação do devedor, mas faz surgir um problema de distribuição dos riscos que vão além da margem normal do contrato. Nesta hipótese, o evento que sobrevém é uma onerosidade excessiva da prestação, decorrente de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.[25]
Assim, os princípios abaixo analisados demonstram que estão ligados umbilicalmente aos contratos e, dependendo da ofensa, certamente influenciarão na interpretação das cláusulas contratuais.
2 PRINCÍPIOS CONTRATUAIS: AUTONOMIA PRIVADA, PACTA SUNT SERVANDA, BOA-FÉ OBJETIVA, FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS
O ordenamento é recheado de diversos princípios e, muitos deles, oriundos do próprio direito contratual, ou também àqueles aplicados. Se, via de regra, os contratos devem ser cumpridos, podem ocorrer, por outro lado, situações que impossibilitem ou dificultem a continuidade do pacto. O fato é que o negócio jurídico, segundo a doutrina de Fernando Noronha:
Em todo o direito privado, o negócio jurídico é, das cinco categorias de fatos juridicamente relevantes, a figura mais importante. E é no Direito das Obrigações que a sua importância mais se destaca: ele é bem mais frequente do que os demais fatos jurídicos e, o que ainda é mais importante, é ele o instrumento jurídico número um da vida econômica.[26]
Se dissemos que as partes vinculam-se uma a outra quando formam determinado negócio jurídico, começamos o estudo dos princípios então analisando a autonomia privada, eis que é um dos mais importantes quando se fala em contratos; afinal, em tese, sabe-se que o que se contrata, o que se pactua, deve ser cumprido. Inclusive, Arnoldo Wald apresenta-nos o Código Civil francês, cuja inspiração tem também a autonomia, especialmente no art. 1.134, quando refere o dispositivo que “as convenções têm valor de lei entre as partes“[27].
A autonomia foi uma reação marcante e profunda, especialmente devido ao liberalismo individualista do século XIX, contra as limitações que impunha o Estado no período da Idade Média. Houve a consagração de um postulado de liberdade na esfera dos contratos[28]:
Dentro do espírito dominante, admitia-se a onipotência do cidadão na administração e na disponibilidade de todos os bens, garantindo amplamente o direito de propriedade e a faculdade de contratar com todas as pessoas nas condições e de acordo com as cláusulas que as partes determinassem. Houve, na realidade, uma mística contratual, deixando-se ao arbítrio de cada um a decisão de todas as questões econômicas, sem qualquer interferência por parte da sociedade.[29]
Francisco dos Santos Amaral Neto define a autonomia privada “[…] como o princípio fundamento do direito privado“[30]. O jurista vai mais além, asseverando que o direito civil tutela os interesses e as relações jurídicas de natureza privada. Há uma esfera, portanto, individual de soberania, “[…] cujas principais manifestações são a liberdade, com referência à pessoa; a propriedade, com referência aos bens; e o contrato, com referência à atividade econômica dos indivíduos“[31]. Resumindo, é o ramo que reconhece aos indivíduos regularem os seus próprios interesses[32].
Se dentro dos limites da autonomia privada firmamos os mais diversos tipos de contrato, sempre é claro em observância ao ordenamento jurídico, como regra, devemos cumprir com o estabelecido em determinado contrato. Isso vem sendo dito. Portanto:
[…] uma vez obedecidos os requisitos legais, torna-se obrigatório entre as partes, que deles não se podem desligar, senão por outra avença, em tal sentido. Isto é, o contrato vai instituir uma espécie de lei privada entre as partes, adquirindo força vinculante igual a do preceito legislativo, pois vem munido de uma sanção que decorre da norma legal, representada pela execução patrimonial do devedor. Pacta sunt servanda![33]
Mas a pergunta que fazemos e considerando o momento atual de crise é a seguinte: devo ajuizar ação de cobrança (por exemplo) tendo em vista o inadimplemento contratual, por não estar recebendo a devida prestação? Tal fato configuraria afronta à lealdade, por exemplo? Ou tal afronta viria em sentido contrário, ou seja, de exigir um crédito em situação de quem não consegue momentaneamente exercer atividade econômica por causa das consequências do coronavírus? Passamos então ao estudo da boa-fé objetiva.
Flávio Tartuce ressalta a boa-fé objetiva quando prevista expressamente pelo Código Civil de 2002. A boa-fé contratual não constava na legislação de 1916. O que ocorria era menção à boa-fé subjetiva, já que esta era relacionada apenas com a intenção da pessoa, que ignorava certo vício, envolvendo posse, ou determinado negócio, como exemplos[34]. O mestre segue asseverando que, desde a época dos romanos, já se estudava sobre a conduta das partes, em especial sobre os negócios e contratos[35]; e mais:
Com o surgimento do jusnaturalismo, a boa-fé ganhou no direito comparado, uma nova faceta, relacionada com a conduta dos negociantes e denominada boa-fé objetiva. Da subjetivação saltou-se para a objetivação, o que é consolidado pelas legislações privadas europeias.[36]
Clóvis Beviláqua, ensinando sobre as declarações de vontade, já ressaltava que a interpretação dos atos jurídicos deve ser, ou melhor, está submetida “[…] aos princípios gerais do justo e do honesto, e devem ser interpretados como atos praticados de boa-fé“[37]. Mário Júlio de Almeida Costa, a seu turno, ensina sobre a boa-fé objetiva, de maneira brilhante:
A relação obrigacional nasce e desenvolve-se com vista ao objetivo que lhe dá vida e confere razão de ser: o cumprimento. Este processo encontra-se condicionado por certos princípios gerais, quer específicos de algum ou alguns tipos de obrigações, quer comum a todos eles.[38]
Sobre os princípios acima referidos, Mário Júlio de Almeida destaca a autonomia privada e a boa-fé, este último objeto deste tópico, caracterizando-os como “[…] alicerces ou linhas fundamentais do direito das obrigações“[39]. A boa-fé objetiva, segundo o ilustre jurista português, encontra sua sede “[…] no plano dos princípios normativos”, ou seja[40]:
Como intenção, orientação ou fundamento de efetivas soluções disciplinadoras. Aí se encontra sua verdadeira sede. Olhando a boa-fé numa perspectiva jurídico-positiva, ela se exprime através de cláusulas gerais. Estas, em si mesmas, nada acrescentam ao conteúdo do correspondente princípio normativo, traduzindo-se tão só o apelo direto que o legislador faz àquele princípio na regulamentação de certos domínios. Pela respectiva estrutura, as cláusulas gerais apenas representam a expressão gramatical dos correspondentes princípios normativos, não fornecendo ao julgador conceitos aptos à imediata subsunção lógico-formal, mas simples critérios valorativos.[41]
Continuando e agora passando ao princípio da função social dos contratos, nos termos do art. 421 do Código Civil[42], analisando o referido dispositivo, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery aduzem que nele existem três cláusulas gerais: “a) autonomia privada (liberdade de contratar); b) respeito à ordem pública; c) função social do contrato“[43].
Sobre a função social dos contratos, os mestres ensinam que a função mais destacada é a denominada função econômica, ou seja, a de “[…] propiciar a circulação da riqueza, transferindo-a de um patrimônio para o outro“[44]. Contudo, tal prática deve observar, deve cumprir a função social, esta, inclusive, “[…] tão ou mais importante do que o aspecto econômico do contrato. Por isso fala-se em fins econômico-sociais do contrato como diretriz para a sua existência, validade e eficácia”[45]. E mais:
Como a função social é cláusula geral, o juiz poderá preencher os claros do que significa essa função social, com valores jurídicos, sociais, econômicos e morais. A solução será dada diante do que se apresentar, no caso concreto, ao juiz. Poderá proclamar a inexistência do contrato por falta de objeto; declarar sua nulidade por fraude à lei imperativa (CC, art. 166, VI); porque a norma do CC 421 é de ordem pública (CC, art. 2.035, parágrafo único); convalidar o contrato anulável (CC, arts. 171 e 172); determinar a indenização pela parte que desatendeu a função social do contrato etc. São múltiplas as possibilidades que se oferecem como soluções ao problema do desatendimento à cláusula geral da função social do contrato.[46]
Álvaro Villaça Azevedo, por sua vez, é brilhante ao lecionar sobre a função social dos contratos:
Por esse princípio, os contratos desempenham relevante papel na sociedade, nacional e internacionalmente, considerada. Pelos contratos, os homens devem compreender-se e respeitar-se, para que encontrem um meio de entendimento e de negociação sadia de seus interesses e não um meio de opressão.
Para que esse espírito de fraternidade nos contratos se preserve, no âmbito do direito interno, têm os Estados modernos lançado mão de normas cogentes, interferindo nas contratações, com sua vontade soberana, para evitar lesões.[47]
Não é por menos que, por muitos anos, a também denominada força obrigatória dos contratos imperou por absoluto, como lecionam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[48]. A força de tal princípio era tão grande que caracterizava verdadeira heresia jurídica cogitar-se a possibilidade de revisão dos contratos com base em circunstância superveniente imprevisível, considerando que, à época dos séculos XVIII e XIX, vigorava o auge do liberalismo[49]. Assim, passamos à análise breve da cláusula rebus sic stantibus.
A Lei 48 do Código de Hamurábi (2.700 a.C.) previa: “Se alguém tem um débito a juros e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros esse ano“[50]. Por outro, a cláusula rebus sic stantibus, do Direito Canônico, dizia que “[…] o contrato somente seria exigível se as condições econômicas do tempo de sua execução fossem semelhantes às do tempo de sua celebração“[51]. Há de se ressaltar, portanto, que há muito o Direito já possibilitava a revisão dos contratos. Paulo Lôbo assim se pronuncia em relação à possibilidade de revisão:
Os contratos são suscetíveis de revisão, por força expressa de lei ou por decisão judicial. A revisão legal ou judicial limita a força obrigatória dos contratos, porque importa fator externo de ajustamento e reequilíbrio das prestações. Não havendo acordo, a revisão será sempre objeto de decisão judicial.[52]
É possível então, mesmo que da análise objetiva dos princípios trazidos neste tópico, vislumbrar uma preocupação da doutrina e do legislador, em uma linha de evolução, com a necessária intervenção nas relações privadas e nos contratos, com o objetivo de manter ou restaurar o equilíbrio da avença. Passamos agora então às hipóteses de intervenção com base no CDC e no Código Civil.
3 AS TEORIAS SOBRE A REVISÃO CONTRATUAL: DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AO CÓDIGO CIVIL
Vimos anteriormente a importantíssima questão dos princípios e que, agora, a partir deste tópico, que busca analisar os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil, ou seja, as respectivas normas que autorizam a revisão ou até a resolução contratual. E neste sentido a doutrina de Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto: “Atualmente, os contratos devem ser interpretados à luz das diretrizes da autonomia privada; boa-fé objetiva; função social do contrato; e justiça (ou equilíbrio contratual)“[53].
Humberto Theodoro Júnior, ressaltando a proteção do consumidor pela Constituição Federal (arts. 5º, XXXII, 170, V, art. 48 do ADCT), leciona que justamente pela fragilidade dos consumidores, em especial nas relações de massa, para com os fornecedores, e, diante de tal preocupação do legislador, é que se “[…] valoriza o aspecto ético das relações negociais de massa […]“[54], apontando então para os arts. 6º[55] e 7º[56] do CDC.
As lições de Humberto Theodoro Júnior acerca da possibilidade de revisão judicial dos contratos são importantíssimas, eis que afirma o mestre que não tem o objetivo de […] inutilizar o contrato, tornando-o simplesmente rompível unilateralmente pelo consumidor. Em nome do princípio da boa-fé, o que se visou foi, antes de tudo, aperfeiçoar o negócio jurídico, revendo suas bases para torná-lo equitativo, seja por reequacionamento das prestações, seja por eliminação das cláusulas abusivas.[57]
De sorte que o inciso V do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor prevê duas hipóteses de intervenção (e não a rescisão), ou seja: a modificação das cláusulas desproporcionais, portanto, tendo em vista a ocorrência da lesão; ou então a revisão em decorrência de fatos supervenientes à contratação que tornem as cláusulas excessivamente onerosas, através da denominada teoria da imprevisão[58]. De modo que explica Flávio Tartuce, por sua vez, que o contrato que acarrete a onerosidade excessiva, por fato superveniente (novo) em especial ao vulnerável, justamente por não cumprir seu papel sociológico, é passível de revisão judicial[59]. Contudo, o que deve ficar claro, segundo a doutrina de Flávio Tartuce, é que o Código de Defesa do Consumidor não adotou a teoria da imprevisão, mas sim a denominada “[…] teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico, de influência germânica […]”, nos mesmos termos em que ensinado por Rizzato Nunes, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Claudia Lima Marques e outros grandes nomes de nossa doutrina[60].
Bruno Miragem comenta e nos ensina sobre o inciso V do art. 6º. O mestre pondera sobre a diferença de regimes previstos no CDC e no Código Civil acerca das invalidades, com especial destaque ao interesse protegido, ou seja, o interesse do consumidor[61]. Justamente, como ocorre com frequência, pela polarização de fornecedores e consumidores, é que não há espaço para o exercício da autonomia da vontade, ou seja, da decisão de o consumidor decidir, ou não, pela realização da contratação[62]. Portanto:
A vulnerabilidade do consumidor abrange, neste sentido, também uma impossibilidade fática de decidir não contratar ou, muitas vezes, romper o contrato, em face da absoluta necessidade de obtenção do produto ou do serviço objeto da relação de consumo em curso.[63]
O que se observa, portanto, e da redação da norma em análise, é o silêncio, por exemplo, quanto às exigências relativas a eventos extraordinários e imprevisíveis, tal e qual ocorre na revisão postulada com base no Código Civil, como veremos a seguir. Ou seja, a lei trata da onerosidade excessiva, de forma objetiva.
O Código Civil, por sua vez, regula a possibilidade de revisão dos contratos entre os arts. 478 a 480, presentes na Seção IV, intitulada de Resolução por Onerosidade Excessiva. Nosso objetivo, contudo, não é, neste trabalho, enfrentar polêmicas doutrinárias e jurisprudências acerca do tema, mas sim apresentá-lo e contextualizá-lo, tendo em vista a situação extraordinária que a pandemia do coronavírus causa. O art. 480 trata, portanto, da resolução pela onerosidade excessiva[64].
Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto assim comentam o dispositivo supratranscrito: “A previsão da resolução por onerosidade excessiva na legislação brasileira atende ao princípio da justiça contratual, que impõe o equilíbrio das prestações nos contratos comutativos, buscando a manutenção do equilíbrio das prestações“[65]. Os mestres apontam então para uma grande carga de justiça contratual e que se localiza em dois momentos:
- a) ao tempo da celebração do contrato, pela preservação do sinalagma genético da relação obrigacional, adotando-se o instituto da lesão (art. 157 do CC/2002) como forma de combater a elevada desproporção entre as prestações;
- b) ao tempo da execução do contrato, assegurando-se o sinalagma funcional, que pode ser perturbado por acontecimentos extraordinários que minam a correspectividade das obrigações, conduzindo um dos contratantes à posição de onerosidade excessiva. À frente, o art. 478 trata especificamente dessa forma de intervenção pelo princípio da justiça contratual.[66]
É importante ressaltar que tanto o estado de perigo como a lesão, previstos no Código Civil, como muito bem ensinam Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, devem ser comprovados, para o pedido com base no Código Civil (de resolução ou revisão), aliados à configuração da onerosidade excessiva[67].
Como visto, se o problema é ao tempo da formação do pacto, estamos diante do estado de perigo ou da lesão, nos termos do Código Civil. A doutrina nos ensina sobre o estado de perigo[68], conforme as lições de Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes:
A declaração de vontade emitida por pessoa que se encontre em estado de perigo configura anomalia do processo volitivo e, por isso mesmo, foi incorporada pelo CC no rol dos defeitos do negócio jurídico, de modo a autorizar a anulabilidade. Configura-se o estado de perigo quando o agente, premido por circunstância de fato que exerce forte influência sobre a sua vontade, realiza negócio jurídico em condições desvantajosas, assumindo obrigação excessivamente onerosa.[69]
O defeito na formação do negócio surge pela vontade do agente que decorre da necessidade de “[…] salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano”[70]. Mas é feito o alerta de que, para caracterizar o estado de perigo, a circunstância acima descrita deve ser conhecida pela outra parte da relação negocial, eis que, caso contrário, o negócio não será anulado pela inexistência da má-fé[71].
No tocante ao instituto da lesão, este vem previsto no art. 157[72]. Sobre o instituto acima trazido, assim ensina Paulo Nader: “No conceito legal figura um elemento subjetivo, que é a necessidade ou a inexperiência do declarante, e um outro objetivo, constituído pela manifesta desproporção entre a obrigação assumida e o valor da prestação oposta“[73].
Já o segundo requisito exigido pelo art. 478 do Código Civil, no sentido de possibilitar a intervenção judicial decorrente da onerosidade excessiva guarda relação direta com o acontecimento imprevisível[74]. E a doutrina alerta para distinção entre imprevisível (este sim como requisito) e imprevisto (este, como não requisito)[75]. Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, ao comentarem a norma referida, alertam no sentido de que uma interpretação literal pode ter como conclusão (mas equivocada) de que o Código Civil teria adotado a denominada teoria da imprevisão, ou seja: “[…] um modelo voluntarista de ênfase subjetivista, pelo qual o fundamento seria precisar se as partes previram ou não o evento extraordinário“[76]. E assim ponderam:
A previsibilidade está ligada ao tempo da contratação. Se previram, nada muda, afinal, o ordenamento não tutela o contratante desidioso que não aventou a possibilidade de configuração de acontecimentos comuns, de cunho econômico, político ou social. Se não previram a alteração superveniente, em tese caberia a intervenção judicial sobre a economia do contrato, pois as novas circunstâncias teriam escapado à vontade que forjou o contrato. O contrato se obriga para o previsível.[77]
Portanto, os mestres em referência, trazendo sua posição sobre a expressão acontecimento imprevisível, ensinam neste sentido:
[…] o legislador usou a expressão imprevisível, e não um imprevisto motivo imprevisível. Imprevisível qualifica o fato, enquanto imprevisto descreve o estado de espírito do agente. Por isso pode-se afirmar que a imprevisibilidade só pode ser objetiva, pois independe da análise da situação psíquica das partes. Resulta de uma observação feita de fora. O imprevisível corresponde ao o que é anômalo ou anormal. Assim, a imprevisibilidade se liga intimamente com a extraordinariedade do evento. O extraordinário reforça o imprevisível. Conjugando-se os dois qualificativos, conclui-se que apenas os riscos absolutamente anômalos e subtraídos da possibilidade de razoável previsão e controle dos operadores econômicos são aptos a acarretar a resolução do contrato.[78]
O alerta a ser feito na aplicação e interpretação do art. 478 do Código Civil diz respeito aos riscos mais ou menos elevados que cada contrato comporta. No sentido de que “[…] a norma visa tutelar o contratante dos riscos anormais que nenhum cálculo racional econômico permitiria considerar, mas deixa ao seu cargo os riscos tipicamente conexos com a operação, que se inserem no andamento médio daquele dado mercado”[79]. Ainda, os mestres apresentam o Enunciado nº 175 do Conselho de Justiça Federal:
A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz.[80]
O terceiro e último pressuposto deve se constituir então, para a configuração da onerosidade excessiva, que se configura na vantagem extrema para a outra parte[81]. Assim então o Enunciado nº 365 do Conselho de Justiça Federal: “A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena“[82]
Continuando, se houver alteração radical das condições econômicas, e “[…] quer se explique a resolução do contrato por considerar subentendida a cláusula rebus sic stantibus, quer pela teoria da imprevisão, ou da base do negócio […]”[83], por quebrar o sinalagma funcional dos contratos bilaterais, resta extremamente difícil o cumprimento da obrigação por uma das partes, nos moldes em que fora contratada. Daí a possibilidade de revisão com base no art. 317[84] do Código Civil[85].
Portanto, em não sendo possível, por todos os esforços dos contratantes e do magistrado, na aplicação do art. 317 do Código Civil, a resolução ocorrerá com fundamento nos arts. 478 e 479 daquela legislação[86], de modo que o desfecho da relação contratual virá no sentido de: “A extinção do contrato afirmará, então, uma peculiar espécie de inadimplemento absoluto, fundada na inexigibilidade decorrente da impossibilidade econômica da prestação“[87].
Importante, a título de reforço das lições doutrinárias, é o posicionamento do STJ acerca dos requisitos para a revisão, ou seja, quando se utiliza o Código Civil e quando se utiliza o Código de Defesa do Consumidor:
Da teoria da base objetiva ou da base do negócio jurídico
A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor – CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que determine oneração excessiva de um dos contratantes. É o que se extrai da dicção do dispositivo:
“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[…]
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; […]“.
Pela leitura do dispositivo, basta a superveniência de fato que determine desequilíbrio na relação contratual diferida ou continuada para que se postule sua revisão ou resolução, em virtude da incidência da teoria da base objetiva. O requisito de não ser previsível e extraordinário o fato não é exigido na hipótese, mas tão somente a modificação nas circunstâncias indispensáveis que existiam no momento da celebração do negócio, ensejando onerosidade ou desproporção para uma das partes.
De acordo com a doutrina, há duas vertentes da teoria da base do negócio jurídico, a saber: a teoria da base subjetiva e a teoria da base objetiva. A propósito, transcreve-se a elucidativa lição do Professor Sílvio Neves Baptista (A crise do contrato. Doutrinas essenciais: obrigações e contratos, v. 3, p. 929, jun. 2011), da Universidade Federal de Pernambuco, que, à luz da doutrina alemã de Karl Larenz, asseverou:
“[…] A expressão ‘base do negócio’ deve ser entendida num duplo sentido: primeiro, como a base subjetiva de determinação da vontade de uma ou das duas partes, numa representação mental construída por ocasião da conclusão do negócio, conhecida e aceita por ambas as partes; segundo, como base objetiva do contrato, compreendida esta como o conjunto de circunstâncias cuja existência ou persistência pressupõe devidamente o contrato. Os supostos do fato da base do negócio subjetiva são diferentes da base do negócio objetiva, posto que a primeira alude aos motivos do negócio e aos vícios da vontade, e a segunda diz respeito ao conjunto de circunstâncias necessárias a que o propósito das partes seja atingido. Se as circunstâncias inexistem ou desparecem, o contrato perde o sentido e pode ser extinto.”
Com efeito, a teoria da base objetiva tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas.
Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva.
Em que pese sua relevante inovação, tal teoria, ao dispensar, em especial, o requisito de imprevisibilidade, foi acolhida em nosso ordenamento apenas para as relações de consumo, que demandam especial proteção. Não se admite a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo direito das obrigações regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor. De outro modo, a teoria da quebra da base objetiva poderia ser invocada para revisão ou resolução de qualquer contrato no qual haja modificação das circunstâncias iniciais, ainda que previsíveis, comprometendo em especial o princípio pacta sunt servanda e, por conseguinte, a segurança jurídica.[88]
Ainda:
No entanto, sobre a tese da onerosidade excessiva, a jurisprudência desta Corte entende que:
“Os requisitos para caracterização da onerosidade excessiva são: o contrato de execução continuada ou diferida, vantagem extrema de outra parte e acontecimento extraordinário e imprevisível, cabendo ao juiz, nas instâncias ordinárias, e diante do caso concreto, a averiguação da existência de prejuízo que exceda a álea normal do contrato, com a consequente resolução do contrato diante do reconhecimento de cláusulas abusivas e excessivamente onerosas para a prestação do devedor. O reexame dessa matéria na instância especial enseja a aplicação das Súmulas nºs 5 e 7 do STJ. (REsp 1034702/ES, 4ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, J. 15.04.2008, DJe 05.05.2008, REPDJe 19.05.2008)“
Já sobre a teoria da quebra da base contratual ou da base objetiva do negócio jurídico, a jurisprudência do STJ é no sentido de que essa teoria tem sua aplicação restrita às relações jurídicas de consumo, porém “[…] o requisito de o fato não ser previsível nem extraordinário não é exigido para a teoria da base objetiva, mas tão somente a modificação nas circunstâncias indispensáveis que existiam no momento da celebração do negócio, ensejando onerosidade ou desproporção para uma das partes. Com efeito, a teoria da base objetiva tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva […]” (REsp 1.321.614/SP, Rel. originário Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/o Ac. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, J. 16.12.2014, DJe 03.03.2015).[89]
Mas tanto a onerosidade excessiva quanto a imprevisão devem caracterizar fato novo, superveniente, ainda extraordinário e alterando a base objetiva do contrato.[90]
3.1 Caso fortuito e força maior
Mas há outros fatos que podem interferir decisivamente em determinada obrigação, ocasionando a exclusão da responsabilidade pelo não cumprimento daquela. Contudo, o tema merece cuidado na análise. Inclusive, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho ressaltam que: “Dentre as causas excludentes de responsabilidade civil, poucas podem ser elencadas como tão polêmicas quanto a alegação de caso fortuito ou força maior“[91]. Assim, os mestres em referência aduzem que, da leitura do Código Civil, o art. 393[92] conceituou unicamente o caso fortuito e a força maior[93].
Em que pese tal dispositivo venha previsto na disciplina das obrigações, Sergio Cavalieri Filho observa que, “[…] por consagrar um princípio geral de direito, é aplicável não só à responsabilidade contratual como também à responsabilidade extracontratual“[94]. Indo um pouco mais além, o mestre ressalta que há muito existe discussão sobre diferença entre caso fortuito e força maior, mas sem a verificação de unanimidade quanto ao tema[95]. E assevera:
O que um autor diz que é força maior o outro diz que é caso fortuito e vice-versa. Outros chegam a concluir que não há diferença substancial entre ambos. O que é indiscutível é que tanto um como outro estão fora dos limites da culpa. Fala-se em caso fortuito ou de força maior quando se trata de acontecimento que escapa a toda a diligência, inteiramente estranho à vontade do devedor da obrigação. É circunstância irresistível, externa, que impede o agente de ter a conduta devida para cumprir a obrigação a que estava obrigado. Ocorrendo o fortuito ou a força maior, a conduta devida fica impedida em razão de um fato não controlável pelo agente.[96]
Sergio Cavalieri Filho então assim conceitua o caso fortuito e a força maior:
[…] estaremos em face do caso fortuito quando se tratar de evento imprevisível e, por isso, inevitável; se o evento for inevitável, ainda que previsível, por se tratar de fato superior às forças do agente, como normalmente são os fatos da Natureza, como as tempestades, enchentes etc., estaremos em face da força maior, como o próprio nome diz. É o act of God, no dizer dos ingleses, em relação ao qual o agente nada pode fazer para evitá-lo, ainda que previsível.[97]
Conclui o mestre, portanto, que a inevitabilidade é o traço comum entre o caso fortuito e a força maior. Na primeira hipótese, a inevitabilidade ocorre pela falta de previsão; na segunda, a inevitabilidade decorre irresistibilidade. Certo é que tanto o caso fortuito como a força maior excluem o nexo de causalidade[98].
A doutrina de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a seu tuno, vem no seguinte sentido:
[…] a característica básica da força maior é a sua inevitabilidade, mesmo sendo a sua causa desconhecida (um terremoto, por exemplo, que pode ser previsto pelos cientistas); ao passo que o caso fortuito, por sua vez, tem a sua nota distintiva na sua imprevisibilidade, segundo os parâmetros do homem médio. Nessa última hipótese, portanto, a ocorrência repentina e até então desconhecida do evento atinge a parte incauta, impossibilitando o cumprimento de uma obrigação (um atropelamento, um roubo).[99]
4 CORONAVÍRUS E MEDIDAS ADOTADAS PELO PAÍS
Pois bem. Quando do envio deste artigo para a publicação, havia diversas medidas provisórias, portarias, resoluções, instruções normativas, decretos, lei e projeto de lei, em diversas áreas, envolvendo a pandemia do coronavírus[100]. Inclusive o Banco Central, dentre uma séria de medidas e orientações justamente com base no impacto das consequências causadas pela pandemia, possui orientações sobre renegociação de créditos familiares e de empresas[101].
Tal fato demonstra que a situação tem cunho externo, inevitável para as relações diárias e, evidentemente, para os contratos, o que, já podemos adiantar, influenciará certamente nos destinos e desfechos de muitos contratos. Trata-se, evidentemente, de um fato externo, imprevisível e extraordinário, sendo certo que, tanto com fundamento no CDC como no Código Civil, é potencial causador da onerosidade excessiva superveniente ou até da ocorrência da lesão ou do estado de perigo, já na gênese do contrato, a depender da causa do pacto, circunstância que tem nexo à revisão ou até a resolução do contrato.
5 CONSTITUIÇÃO FEDERAL: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O SOLIDARISMO EM MATÉRIA CONTRATUAL
Já ensinava Sílvio Rodrigues, quanto ao direito das obrigações, que: “O homem, vivendo em sociedade, necessita de cooperação, pois, por si só, não pode prover a todas as suas necessidades“[102]. Portanto, o momento atual por que passa o País e, em especial, o Direito, em termos de sua interpretação e aplicação, esta deve, mais do que nunca, vir de encontro à Constituição Federal[103].
Ainda, a leitura da deve ser feita em conjunto com: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; […]”. O momento atual, portanto, é o de fazer valer ainda mais a força normativa da Constituição. Inclusive, Konrad Hesse há muito já alertava:
Se o direito e, sobretudo, a Constituição têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.
Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição.[104]
A seu turno, as lições do Ministro Luis Roberto Barroso sobre o tema:
Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares.[105]
Anderson Schreiber também destaca a importância da Constituição:
O Código Civil de 2002 não afastou a necessidade de aplicação das normas constitucionais às relações privadas, nem poderia, já que se trata de um processo contínuo e necessário. A codificação de 2002, ao contrário, reforçou essa necessidade, pois, sob o disfarce da novidade legislativa, oculta largas porções de ideologia do passado. O patrimonialismo, o individualismo, e o liberalismo exacerbado continuam vivamente presentes no texto do “novo” Código Civil, em franca oposição ao solidarismo humanista consagrado no texto constitucional. A aparência da novidade não deve, portanto, iludir o leitor. Mais do que nunca, impõe-se a releitura do direito civil à luz da Constituição.[106]
Não há dúvidas de que o solidarismo deve fazer valer sua força, e não só considerando o momento atual (pandemia), mas sim também as circunstâncias do caso concreto. Se é preciso olhar o contrato em termos de pretensão do credor, há, também e em conjunto, a necessidade de se ponderar crédito e débito em face da dignidade da pessoa humana. Formalmente, tem-se um contrato; contudo, circunstâncias supervenientes podem fazer, ocasionar um distanciamento e desequilíbrio econômico que foge aos olhos do bom senso e da equivalência das prestações.
Finalizando este tópico, trazemos caso paradigmático julgado pelo Superior Tribunal de Justiça quando, no ano de 1999, houve desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar, o que acabou por acarretar a onerosidade excessiva. As razões de decidir são trazidas, em parte, eis que, por analogia, amoldam-se aos contratos que venha a onerar o consumidor de forma excessiva, pela impossibilidade de cumprimento das avenças em decorrência do corona vírus:
A aplicabilidade do art. 6º, V, do CDC dependerá apenas da ocorrência de fato posterior que cause, objetivamente, excessiva onerosidade ao consumidor.
Por fim, o ponto nodal, ou seja, determinar se a variação cambial ocorrida, fato superveniente que é, acarretou, ou não, excessiva onerosidade ao consumidor.
O Plano Real esteve lastreado em sistema de variação cambial do dólar por bandas, fixando-se os valores mínimo e máximo de cotação da moeda estrangeira, de acordo com a política econômica da União, por intermédio do Banco Central.
Esta situação vigorou até o dia 19-01-1999, quando ainda estava em vigor o Comunicado nº 6.560, de 13.01.1999 (DOU de 15.01.1999, Seção 3, p. 15), o qual definia a flutuação para a compra e venda de dólares americanos com limite mínimo de R$ 1,20 e o máximo de R$ 1,32.
A partir desta data (Comunicado nº 6.563, de 15.01.1999, DOU 19.01.1999, Seção 3, p. 8), o Banco Central cessou sua intervenção perene no mercado de câmbio, ressalvando sua intervenção eventual, em casos de movimentos desordenados das taxas cambiárias.
Em decorrência, passou a ser livre a flutuação da cotação do dólar, a qual estabilizou-se dias após, atingindo o preço de equilíbrio valor entre R$ 1,65 e R$ 1,70,
Como dito alhures, em referência ã lição de Cláudia Lima Marques, com o advento do CDC, por seu art. 6º, V, não mais se exige a “imprevisibilidade” do evento prejudicial, quando a relação jurídica material for relação de consumo.
É inegável a excessiva onerosidade superveniente, capaz de desequilibrar as relações contratuais entre fornecedor e consumidor, e o próprio adimplemento das obrigações contraídas pelo hipossuficiente.
Também é inafastável a conclusão de que a estabilidade contratual ficou comprometida com a liberação da cotação da moeda estrangeira, fato que, ademais, era imprevisível, ante os compromissos públicos do Estado em assegurar a contenção da inflação.
Foi atingida a boa-fé objetiva do consumidor e seu direito de informação, porque não há qualquer advertência quanto ao risco da operação financeira (arts. 6º, III, e 10, caput, 31 e 52, do CDC), e sua assunção pelo consumidor.
[…]
Se é certo que ambas as partes contratantes sofreram os efeitos de fato superveniente, a modificação da situação fática se fez determinante em relação ao consumidor, em geral de parcos recursos para gerir o orçamento doméstico e que não detém meios de compensar a majoração ocorrida a partir do mês de janeiro de 1999 na prestação de arrendamento mercantil com outra receita própria.
O interesse da instituição financeira em captar recursos monetários no exterior, para financiamento de aquisição de bens, comporta riscos que devem ser distribuídos equitativamente, e, no caso do consumidor, somente se transferiria este ônus se o tivesse assumido, expressamente, e ciente das vicissitudes incidentes. No caso em tela, apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, porque o capital que dispensará, para resgatar as obrigações contraídas no exterior, está garantido pela correspondente majoração da prestação do consumidor, que, por sua vez, está desamparado por qualquer mecanismo de prevenção ou defesa. Evidente o tratamento sem paridade contratual.[107]
6 PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS CONTRATOS
Antes de nos aproximarmos da conclusão deste artigo, devemos analisar o denominado princípio da conservação dos contratos, eis que fecha com o que aqui trouxemos, em especial considerando (via de regra) a manutenção do contrato, e não a resolução.
As hipóteses trazidas sobre a revisão dos contratos são exceções, mas parece possível, aos olhos do julgador, quando provocado pela parte interessada, manter a contratação, não nos moldes iniciais, mas favorecendo a continuidade do contrato, de forma contextualizada com a impossibilidade de continuar a ser cumprido, nos moldes originariamente contratado, afastando ou relativizando o pacta sunt servanda.
Tanto é verdade que o próprio CDC prevê que, mesmo nula determinada cláusula contratual por abusividade, esta, por si só, não invalida todo o contrato, a não ser que:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[…]
- 2º A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.
[…]
Se estamos tratando da possibilidade de revisão ou até da resolução dos contratos e voltando o foco à boa-fé objetiva, em atenção agora às relações de consumo, aquela é situada em caráter geral, conforme ensina Judith Martins-Costa, funcionando como “[…] critério de aferição da validade das cláusulas contratuais (art. 51, IV)“[108]. E ainda:
Nesse caso, pela extremada amplitude do texto legal, a boa-fé acaba por desempenhar função corretora do conteúdo contratual, promovendo o reequilíbrio de uma relação presumidamente assimétrica, por meio da revisão ou pela invalidação de cláusulas que venham a acentuar ou consagrar o desequilíbrio entre as respectivas posições jurídicas.[109]
Não temos dúvida, portanto, de que o Magistrado deve, via de regra, buscar a conservação do contrato, sejam as relações regidas pelo CDC ou pelo Código Civil. A utilidade e o equilíbrio das prestações, aliadas ao princípio da boa-fé objetiva, é o rumo a ser direcionado e a finalidade a ser alcançada.
6.1 O depósito judicial da parcela entendida como incontroversa e o Código de Processo Civil
Por último, devemos alertar para importantíssima questão processual. A inicial, e aqui vale o alerta, deve apresentar o valor entendido como incontroverso, pelo autor, no sentido de estar apta (além dos demais requisitos estabelecidos pelo CPC) a seguir o seu regular curso[110].
Entendemos que, em especial, se o pedido de revisão contratual for regido pelo Código de Defesa do Consumidor, haverá franca aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes, sendo o Código de Processo Civil, em especial a norma acima transcrita, o sistema subsidiário para se quantificar o valor e não cair no perigo da inépcia da inicial.
A boa-fé objetiva do autor da ação, devedor na relação jurídica de direito material, é ressaltada ainda mais quando cumpre a norma ora em comento. Deve (seja em relação regida pelo CDC ou pelo Código Civil) vir o valor que foi atingido pelas consequências do evento externo, apontado então na peça vestibular. Caso não o venha e privilegiando o julgamento de mérito, que o juiz determine a emenda no sentido de cumprimento da norma processual.
CONCLUSÃO
Claudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Bruno Miragem destacam que o Código de Defesa do Consumidor vem a tratar da realização de um direito fundamental (positivo) de proteção do Estado para o consumidor, nos termos do art. 5º, XXXII, da Constituição Federal – de tal sorte que foi identificado o consumidor e elevado a nível constitucional, como agente a ser protegido de forma especial, nos termos do art. 48 do ADCT[111].
Entre a autonomia privada e a lei, ou o papel da lei, como ensinam Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, há de se considerar e analisar a questão do equilíbrio. Os mestres ressaltam que existem normas supletivas cuja característica é a inderrogabilidade. Tais normas, portanto, tutelam interesses superiores justamente destinadas ao equilíbrio contratual, “[…] tendo como desiderato elidir o aprisionamento da parte mais frágil à discricionariedade do poder unilateral do contratante mais forte“[112]. Anderson Schreiber, inclusive, ressalta que:
A ordem jurídica atribuiu efeitos jurídicos ao contrato, mas não o faz simplesmente porque se trata de um exercício de liberdade individual dos contratantes. A ordem jurídica avalia o fim perseguido pelas partes no exercício da sua liberdade de contratar, exigindo que exprima alguma utilidade social.[113]
Como vimos anteriormente, o Estado tem o papel fundamental de intervenção nas relações privadas, e também quando o desequilíbrio ocorrer. Não por menos que Bruno Miragem, e voltando aos ensinamentos do Mestre, aduz que: “Essa situação da nova concepção de Estado vigente, afastando-se da concepção originária do Estado Liberal, no qual este se limitava ao papel de arbítrio dos conflitos interindividuais“[114].
Parece-nos, neste momento, tendo em vista a situação excepcional que o coronavírus vem causando na sociedade, e em especial para o direito privado, objeto deste artigo, que a revisão contratual deverá ocorrer com fundamento na quebra da base objetiva do negócio. Explica-se. A pandemia (fato superveniente à contratação), quando veio à tona, espalhou seus nefastos reflexos sobre um sem-número de contratações, alterando faticamente as bases negociais inicialmente ajustadas (configurando então a onerosidade excessiva). Portanto, mesmo que se exija a imprevisibilidade e extraordinariedade do evento, mais não se pode exigir de quem postula a revisão, sob pena, inclusive, de ofensa ao acesso à Justiça.
Assim e tendo em vista a proteção do consumidor, nos termos do inciso III do art. 4º do CDC[115], tal hipótese vai se amoldar com a própria Constituição Federal[116], mas agora em relação aos princípios em que se funda a ordem pública, como ensina Humberto Theodoro Júnior[117].
Como brilhantemente ensina Flávio Tartuce, interpretar o “[…] contrato de acordo com a realidade social representa uma das manifestações da ideia de função social do contrato“[118]. Portanto, considerar situações como as que estamos vivendo (pandemia, por exemplo), no sentido de revitalizar e continuar determinado contrato, é, inclusive e como ensina a doutrina, privilegiar o paradigma da operabilidade, este que, como leciona Carlos Roberto Gonçalves, diz “[…] que o direito é para ser efetivado, para ser executado“[119]. Afinal, em franca aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes entre o CDC e o Código Civil, aquele paradigma fortalece a interpretação constitucional do contrato em termos da necessária revisão.
Contudo, vale o alerta de que não se aplica a possibilidade de revisão ou resolução dos contratos pela ocorrência da onerosidade excessiva quando a parte interessada agiu com culpa em momento anterior à ocorrência do evento extraordinário e imprevisível como, por exemplo, se o devedor já se encontrava em mora antes dos acontecimentos[120].
Não temos dúvida de que os ensinamentos doutrinários aqui trazidos e o momento atual, em termos de revisão contratual ou até eventual extinção da responsabilidade pelo inadimplemento cujas causas são absolutamente externas e por isso inevitáveis, guardam relação direta com a interpretação constitucional do direito privado. Interpretação frente à qual já nos posicionamos outras vezes[121] e que, considerando o foco deste artigo, vem em sintonia com a Carta, conforme analisado em tópico anterior.
Portanto, valorizar a dignidade da pessoa humana e o solidarismo, analisando a proporcionalidade do exercício de direitos subjetivos (posições jurídicas de credor e devedor), é, sem sombra de dúvidas, respirar constitucionalmente o contrato em termos da pandemia que assola o mundo.
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[1] Mapa do coronavírus. Disponível em: <https://google.com/covid19-map/?hl=pt-BR>. Acesso em: 13 abr. 2020.
[2] Dados atualizados até o envio deste artigo para publicação, ocorrida em 13.04.2020.
[3] Legislação Covid-19. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-covid-19>. Acesso em: 13 abr. 2020.
[4] PIERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil constitucional: introdução ao direito civil constitucional. 3 ed. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 04.
[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 26. ed. Atual. Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Rio de Janeiro: Forense, v. II, 2014. p. 03.
[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 03.
[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 07.
[8] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 03.
[9] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral das obrigações. 30. ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, 2002. p. 03-04.
[10] RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 04.
[11] Nossa intenção não é a de enfrentar polêmicas e discussões doutrinárias acerca das fontes das obrigações segundo o entendimento de cada autor, mas sim trazer o contrato como uma de suas fontes.
[12] WALD, Arnoldo. Direito civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos. 19. ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, 2010. p. 71.
[13] BITTAR, Carlos Alberto. Direito das obrigações. 2. ed. Atual. Carlos Alberto Bittar Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 15.
[14] BITTAR, Carlos Alberto. Op. cit., p. 15.
[15] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 409.
[16] WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 216.
[17] WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 216.
[18] WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 216.
[19] WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 217.
[20] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 114.
[21] MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 114.
[22] “Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: […] II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: a) por iniciativa direta; b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas; c) pela presença do Estado no mercado de consumo; d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho. […].”
[23] “Direito privado. Recurso especial. Ação de obrigação de fazer c/c compensação por danos morais. Planos de saúde. Regime de contratação. Coletivo. População vinculada à pessoa jurídica. Empresário individual. Dois beneficiários. Rescisão unilateral e imotivada. Dirigismo contratual. Confronto entre problemas. Analogia. Dissídio jurisprudencial. Similitude fática. Ausência. Honorários de sucumbência recursal. Majoração. 1. Ação ajuizada em 22.05.2015. Recurso especial interposto em 29.07.2016 e autos conclusos ao gabinete da relatora em 04.10.017. Julgamento: CPC/2015. 2. O propósito recursal é definir se é válida a rescisão unilateral imotivada de plano de saúde coletivo empresarial por parte da operadora de plano de saúde em face de microempresa com apenas dois beneficiários. 3. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por meio da Resolução Normativa nº 195/2009, definiu que: i) o plano de saúde individual ou familiar é aquele que oferece cobertura da atenção prestada para a livre adesão de beneficiários, pessoas naturais, com ou sem grupo familiar; ii) o plano coletivo empresarial é delimitado à população vinculada à pessoa jurídica por relação empregatícia ou estatutária; e iii) o plano coletivo por adesão é aquele que oferece cobertura à população que mantenha vínculo com pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial. 4. A contratação por uma microempresa de plano de saúde em favor de dois únicos beneficiários não atinge o escopo da norma que regula os contratos coletivos, justamente por faltar o elemento essencial de uma população de beneficiários. 5. Não se verifica a violação do art. 13, parágrafo único, II, da Lei nº 9.656/1998 pelo Tribunal de origem, pois a hipótese sob exame revela um atípico contrato coletivo que, em verdade, reclama o excepcional tratamento como individual/familiar. 6. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração de honorários recursais.” (BRASIL. STJ, REsp 1701600/SP, 3ª T., Relª Min. Nancy Andrighi, J. 06.03.2018. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1684093&num_registro=201702544167&data=20180309&formato=HTML>. Acesso em: 31 mar. 2020)
[24] “Agravo interno no agravo em recurso especial. Pacta sunt servanda. Possibilidade de mitigação. Precedentes. Descumprimento contratual. Culpa exclusiva da construtora. Súmulas nºs 5 e 7/STJ. Direito à restituição integral das parcelas. Entendimento consolidado no STJ. Dano moral. Ocorrência. Súmula nº 7/STJ. Agravo desprovido. 1. A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que o princípio do pacta sunt servanda pode ser relativizado, principalmente diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do dirigismo contratual. 2. Tendo a Corte de origem concluído que o descumprimento contratual decorreria de culpa exclusiva da construtora, eventual conclusão no sentido de afastar a sua responsabilidade esbarraria no óbice dos Enunciados nºs 5 e 7/STJ. 3. Formada a convicção de que a rescisão contratual decorreu de culpa exclusiva da recorrente, a restituição das parcelas pagas pela promissária compradora deve se dar de forma integral, conforme entendimento consolidado nesta Corte Superior. 4. A alteração das conclusões adotadas pela Corte de origem acerca da ocorrência do dano moral demandaria, necessariamente, reexame do acervo fático-probatório, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto no Enunciado nº 7 deste Tribunal Superior. 5. Agravo interno desprovido.” (BRASIL. STJ, AgInt-AREsp 1214641/AM, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, J. 13.03.2018. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1684966&num_registro=201703096405&data=20180326&formato=HTML>. Acesso em: 31 mar. 2020)
[25] BETTI, Emílio. Teoria geral das obrigações. 1. ed. Trad. Francisco José Galvão Bueno. Campinas: Bookseller, 2006. p. 205-206.
[26] NORONHA, Fernando. Op. cit., p. 421.
[27] WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 209.
[28] WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 209.
[29] WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 209.
[30] AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Autonomia privada. Revista CEJ: Conselho da Justiça Federal – Centro de Estudos Judiciários, Brasília: CJF, n. 1, p. 26, 1997.
[31] AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Op. cit., p. 26.
[32] AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Op. cit., p. 26.
[33] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 29. ed. São Paulo: Saraiva, v. 3, 2003. p. 17-18.
[34] TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Rio de Janeiro: Forense, v. 3, 2019. p. 98.
[35] TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 98.
[36] TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 98.
[37] BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 2. ed. Campinas: Servanda, 2005. p. 271.
[38] COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 92.
[39] COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op. cit., p. 92.
[40] COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op. cit., p. 98.
[41] COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op. cit., p. 98.
[42] A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
[43] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 793.
[44] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 793.
[45] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 795.
[46] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 795.
[47] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 18.
[48] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: contratos. 1. ed. unificada. São Paulo: Saraiva Educação, v. 4, 2018. p. 252.
[49] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: contratos. Op. cit., p. 252.
[50] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: contratos. Op. cit., p. 252.
[51] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: contratos. Op. cit., p. 252.
[52] LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, v. 3, 2018. p. 188.
[53] ROSENVALD, Nelson; NETTO BRAGA, Felipe. Código Civil comentado: artigo por artigo. 1. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 584.
[54] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do CDC e os princípios gerais de direito civil e do direito processual civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 30.
[55] “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: […] V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; […].”
[56] “Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.”
[57] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 30.
[58] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 30.
[59] TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 3. ed. São Paulo: Método, volume único, 2014. p. 256.
[60] TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. Op. cit., p. 257-258.
[61] MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 176.
[62] MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 176.
[63] MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 176.
[64] “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”
[65] ROSENVALD, Nelson; NETTO BRAGA, Felipe. Código Civil comentado: artigo por artigo. 1. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 584.
[66] ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Op. cit., p. 584.
[67] ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Op. cit., p. 585.
[68] “Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.”
[69] TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA; Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República: parte geral das obrigações (arts. 1º a 420). 3. ed. São Paulo: Renovar, v. I, 2014. p. 295.
[70] TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA; Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 295.
[71] TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA; Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 295.
[72] “Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. § 1º Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico. § 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.”
[73] NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 40. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 336.
[74] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 585.
[75] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 584.
[76] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 585.
[77] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 585.
[78] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 585.
[79] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 586.
[80] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 586.
[81] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 586
[82] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 586.
[83] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 584.
[84] “Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”
[85] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 584.
[86] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 585.
[87] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 585.
[88] “Recurso especial. Civil. Ação revisional de contrato de compra e venda. Dólar americano. Maxidesvalorização do real. Aquisição de equipamento para atividade profissional. Ausência de relação de consumo. Teorias da imprevisão. Teoria da onerosidade excessiva. Teoria da base objetiva. Inaplicabilidade. 1. Ação proposta com a finalidade de, após a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, modificar cláusula de contrato de compra e venda, com reserva de domínio, de equipamento médico (ultrassom), utilizado pelo autor no exercício da sua atividade profissional de médico, para que, afastada a indexação prevista, fosse observada a moeda nacional. 2. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza, como destinatário final, produto ou serviço oriundo de um fornecedor. Por sua vez, destinatário final, segundo a teoria subjetiva ou finalista, adotada pela Segunda Seção desta Corte Superior, é aquele que ultima a atividade econômica, ou seja, que retira de circulação do mercado o bem ou o serviço para consumi-lo, suprindo uma necessidade ou satisfação própria, não havendo, portanto, a reutilização ou o reingresso dele no processo produtivo. Logo, a relação de consumo (consumidor final) não pode ser confundida com relação de insumo (consumidor intermediário). Inaplicabilidade das regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor. 3. A intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) e de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometa o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica. 4. O histórico inflacionário e as sucessivas modificações no padrão monetário experimentados pelo país desde longa data até julho de 1994, quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de relativa estabilidade até a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, não autorizam concluir pela imprevisibilidade desse fato nos contratos firmados com base na cotação da moeda norte-americana, em se tratando de relação contratual paritária. 5. A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor – CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que determine oneração excessiva de um dos contratantes. Tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva. 6. Em que pese sua relevante inovação, tal teoria, ao dispensar, em especial, o requisito de imprevisibilidade, foi acolhida em nosso ordenamento apenas para as relações de consumo, que demandam especial proteção. Não se admite a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo direito das obrigações regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor, mormente com a finalidade de conferir amparo à revisão de contrato livremente pactuado com observância da cotação de moeda estrangeira. 7. Recurso especial não provido.” (BRASIL. STJ, REsp 1321614/SP, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/o Ac. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, J. 16.12.2014. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1366618&num_registro=201200888764&data=20150303&formato=HTML>. Acesso em: 31 mar. 2020)
[89] “Agravo interno no recurso especial. Ação revisional de contrato de financiamento habitacional por alegada diminuição da renda familiar. Decisão monocrática que negou provimento ao reclamo, insurgência dos autores. 1. Correta aplicação das Súmulas nºs 5 e 7 do STJ. A alteração da conclusão adotada pelo acórdão recorrido a respeito da inexistência de situação anômala que tenha onerado excessivamente o mútuo, demandaria novo exame do acervo fático-probatório dos autos e das cláusulas do contrato de financiamento, o que é vedado em sede de recurso especial. 2. A teoria da imprevisão – corolário dos princípios da boa-fé e da função social do contrato -, a qual autoriza a revisão das obrigações contratuais, apenas se configura quando há onerosidade excessiva decorrente da superveniência de um evento imprevisível, alterador da base econômica objetiva do contrato, hipótese inocorrente no caso. 3. A teoria da base objetiva difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade, no entanto, ambas as teorias demandam fato novo superveniente que seja extraordinário e afete diretamente a base objetiva do contrato, circunstâncias não verificadas nesta demanda. 4. Agravo interno desprovido.” (BRASIL. STJ, AgInt-REsp 1514093/CE, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, J. 25.10.2016. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1550790&num_registro=201500162096&data=20161107&formato=HTML>. Acesso em: 31 mar. 2020)
[90] “Agravo interno no agravo em recurso especial. Ação revisional. Contrato de Financiamento Habitacional – SFH. Revisão das parcelas. Redução da renda. Agravo não provido. 1. Ação de revisão de contrato de financiamento imobiliário firmado pelo SFH, visando à renegociação do valor das prestações mensais e o alongamento do prazo de liquidação, com fundamento no Código de Defesa do Consumidor. 2. O Tribunal de origem, examinando as condições contratuais, concluiu que o recálculo da parcela estabelecida contratualmente não está vinculado ao comprometimento de renda do mutuário, mas sim à readequação da parcela ao valor do saldo devedor atualizado. Nesse contexto, entendeu que, para justificar a revisão contratual, seria necessário fato imprevisível ou extraordinário, que tornasse excessivamente oneroso o contrato, não se configurando como tal eventual desemprego ou redução da renda do contratante. 3. Efetivamente, a caracterização da onerosidade excessiva pressupõe a existência de vantagem extrema da outra parte e acontecimento extraordinário e imprevisível. Esta Corte já decidiu que tanto a teoria da base objetiva quanto a teoria da imprevisão ‘demandam fato novo superveniente que seja extraordinário e afete diretamente a base objetiva do contrato’ (AgInt-REsp 1.514.093/CE, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, DJe 07.11.2016), não sendo este o caso dos autos. 4. Agravo interno não provido.” (BRASIL. STJ, AgInt-AREsp 1340589/SE, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, J. 23.04.2019. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1816230&num_registro=201801971460&data=20190527&formato=HTML>. Acesso em: 31 mar. 2020)
[91] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 166.
[92] “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
[93] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 166.
[94] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 88.
[95] CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit., p. 88.
[96] CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit., p. 88.
[97] CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit., p. 89.
[98] CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit., p. 89-90.
[99] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 167.
[100] Legislação Covid-19. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-covid-19>. Acesso em: 14 abr. 2020.
[101] Coletiva de imprensa medidas de combate aos efeitos da covid-19. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/Apresenta{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} C3{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}A7{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}C3{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}A3o_RCN_Coletiva{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}2023.3.2020.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2020.
[102] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral das obrigações. Op. cit., p. 03.
[103] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana; […].”
[104] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana; […].”
[105] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 390-391.
[106] SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 57.
[107] “Revisão de contrato. Arrendamento mercantil (leasing). Relação de consumo. Indexação em moeda estrangeira (dólar). Crise cambial de janeiro de 1999. Plano real. Aplicabilidade do art. 6º, V, do CDC. Onerosidade excessiva caracterizada. Boa-fé objetiva do consumidor e direito de informação. Necessidade de prova da captação de recurso financeiro proveniente do exterior. O preceito insculpido no inciso V do art. 6º do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor. A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas. A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, pela prestação do consumidor indexada em dólar americano. É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado de capitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu direito de informação (arts. 6º, III, e 10, caput, 31 e 52 do CDC). Incumbe à arrendadora se desincumbir do ônus da prova de captação de recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade da cláusula de correção pela variação cambial. Esta prova deve acompanhar a contestação (arts. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela, sob pena de violar o art. 6º da Lei nº 8.880/1994.” (BRASIL. STJ, REsp 268.661/RJ, 3ª T., Relª Min. Nancy Andrighi, J. 16.08.2001. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=IMG&sequencial=41522&num_registro=200000745049&data=20010924&formato=HTML>. Acesso em: 30 mar. 2020)
[108] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 45.
[109] MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 45.
[110] “Art. 330. A petição inicial será indeferida quando: […] § 2º Nas ações que tenham por objeto a revisão de obrigação decorrente de empréstimo, de financiamento ou de alienação de bens, o autor terá de, sob pena de inépcia, discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso do débito. § 3º Na hipótese do § 2º, o valor incontroverso deverá continuar a ser pago no tempo e modo contratados.”
[111] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 66.
[112] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos: teoria geral e contratos em espécie. 9. ed. Salvador: JusPodivm, v. 4, 2019. p. 174.
[113] SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO; Mário Luz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 243.
[114] MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 114.
[115] “Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: […] III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; […].”
[116] “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] V – defesa do consumidor; […].”
[117] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 30-31.
[118] TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op. cit., p. 246.
[119] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2013. p. 44.
[120] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Op. cit., p. 586.
[121] ALMEIDA, Felipe Cunha de. Ensaios sobre direito civil constitucional aplicado ao direito das obrigações, contratos, responsabilidade civil, propriedade e direito de família: doutrina e jurisprudência. Revista Síntese – Direito Civil e Processual Civil, v. 111, p. 61-86, 2018