DIREITO DE REUNIÃO E RESPONSABILIDADE CIVIL
Edilton Meireles
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Da Liberdade de Manifestação. 3 Da Responsabilidade; 3.1 Responsabilidade do Organizador da Reunião; 3.2 Responsabilidade do Participante; 3.3 Responsabilidade por Ato de Participante Não Identificado (Membro Indeterminado). 4 Conclusão. 5 Referências.
1 Introdução
Nos últimos anos têm crescido muito as manifestações públicas pelo Brasil afora. São manifestações de todas as espécies e com diferentes e diversas finalidades. Desde as tradicionais manifestações religiosas às passeatas políticas, passando por protestos circunstanciais, piquetes, manifestações populares espontâneos, etc.
Essas manifestações, por suas vezes, concretizam o direito fundamental à reunião pacífica sem armas. Infelizmente, no entanto, tem se difundido cada vez mais a prática de atos de vandalismo, isto é, a prática de condutas que redundam em violação ao direito alheio, em especial ao patrimônio material, quando da realização das manifestações públicas. É a partir dessa realidade que se aborda, neste trabalho, a responsabilidade civil pelos atos praticados nessas manifestações. E é essa realidade que justifica o estudo desenvolvido.
O problema a ser enfrentado se refere à responsabilidade do organizador do evento, do participante e a que decorre do ato ilícito praticado por participante não identificado (membro indeterminado).
No presente trabalho foi utilizado o método dedutivo, a partir da revisão da doutrina, interpretação dos textos legais e análise da jurisprudência, nacional e estrangeira, limitando-se à ciência dogmática do direito.
2 Da Liberdade de Manifestação
A constituição democrática de 1988, em seu art. 5º, inciso XVI (BRASIL, 1988), rompendo como regime autoritário anterior, e talvez de uma forma um tanto quanto exagerada, assegura a todos o direito fundamental a
“reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”
O trauma causado pela ditadura fez com que o constituinte assegurasse a manifestação em qualquer espaço público aberto, independentemente de autorização, ainda que ela seja convocada para local utilizado amplamente pela população em seus deslocamentos diários, o que redunda que muitos sejam prejudicados, às vezes, em face do atuar de uns poucos manifestantes.
Cabe ressaltar, porém, que o direito assegurado constitucionalmente é o de reunião pacífica sem armas. Não se trata de assegurar o direito de reunião. A partir desde dispositivo se tem assegurado a todos o amplo direito de reunião pacífica sem armas em locais abertos ao público. Cabe acrescer, ainda, que a Constituição não afirma que a reunião deve ser realizada em local público aberto ao público. Fala em local, público ou privado, aberto ao público, podendo ser até em ambiente virtual (CONTRERAS, 2016). Destaque-se, ainda, que o direito de reunião, entre outras facetas, garante a participação ativa da pessoa no processo de formação da opinião e da vontade política enquanto elemento essencial em uma comunidade democrática (ALEMANHA, 1985).
Ficou estabelecido, ainda, que essa reunião não depende de autorização do Poder Público, mas é preciso que haja o aviso de sua realização. Esse aviso prévio se justifica para que o Poder Público possa adotar providências para o bom funcionamento dos equipamentos públicos, em especial com implantação de medidas alternativas de trânsito, etc. E vale lembrar que as entidades responsáveis pela gestão do Sistema Nacional de Trânsito respondem de forma objetiva “em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito de trânsito seguro”, conforme o § 3º do art. 1º da Lei nº 9.509/97- Código de trânsito Brasileiro (BRASIL, 1997).
Obviamente, ainda, que essa comunicação prévia deve ser realizada com antecedência razoável de modo que a Administração Pública possa se planejar e adotar as medidas para não só viabilizar a reunião, como implantar ações para mitigar os impactos negativos aos demais usuários do espaço que vier a ser ocupado. A Lei nº 1.207/1950, em seu art. 3º, § 2º, por sua vez, estabelece o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a comunicação antes da realização de comício (BRASIL, 1950). Esse prazo pode, então, ser tomado como parâmetro, se observar que a manifestação será realizada em local previamente estabelecido pelo Poder Público, consoante caput do art. 3º da Lei nº 1.207/1950 (BRASIL 1950). Se for em outro local, é razoável se entender que esse prazo tão curto não seja o exigido. De qualquer forma, como já decidiu o Tribunal Constitucional da Alemanha, a ausência do aviso prévio, por si só, não justifica a proibição da reunião quando se trata de evento espontâneo, isto é, sem pré-organização, privilegiando-se, neste caso, o direito fundamental, salvo para proteger bens jurídicos com o mesmo valor com observância do princípio da proporcionalidade e apenas no caso de uma ameaça concreta a tais bens jurídicos (ALEMANHA, 1985).
Constitucionalmente, ainda, somente se nega o direito à reunião pacífica sem armas se outra já tiver sido convocada para o mesmo local. Neste caso, então, a reunião poderá até ser realizada, mas desde que em local ou horário distinto da anteriormente convocada.
Vale destacar, ainda, que se cuida de um direito individual (ao de participar da reunião), mas de índole coletivo, até porque ninguém exerce esse direito de forma isolada. É um direito fundamental, mas, por óbvio, assim como qualquer outro, ele não é absoluto. Tem, por certo, limites implícitos ou explícitos, especialmente quando em colisão com outro.
Óbvio, ainda, que ele dever ser usado nos limites da licitude. Logo, ele não pode ser exercido de forma abusiva, por exemplo, pode ser uma manifestação convocada para a porta de um hospital, criando-se obstáculo ao deslocamento de pacientes ou mesmo, o que é natural nestes eventos, produzindo barulho que venha a perturbar a tranquilidade que se exige nos locais próximos às entidades hospitalares (BRASIL, 2007).
O abuso, portanto, deve ser evitado. Daí se tem que não se revela impertinente o Poder Público, quando notificado, pretender impedir a realização da reunião em local no qual se possa estar diante de uma situação na qual o exercício do direito de reunião, de antemão, já se revela abusivo. Aqui, então, caberia a aplicação do disposto § 1º do art. 1º da Lei nº 1.207/1950 (BRASIL, 1950), com a redação dada pela Lei nº 6.071/74 (BRASIL, 1974), ao dispor que
“No caso da convocação para prática de ato proibido, a autoridade policial poderá impedi-la, e, dentro de dois dias, exporá ao Juiz competente os motivos por que a reunião foi impedida ou suspensa. O Juiz ouvirá o promotor da reunião ao qual dará o prazo de dois dias para defesa. Dentro de dois dias o Juiz preferirá sentença da qual caberá apelação que será recebida somente no efeito devolutivo.”
Sem prejuízo da importação do mandado de segurança, transcorrido o prazo para decisão do juiz, conforme ressaltado no § 2º do art. 1º da referida norma estatal. Frise-se que, aparentemente, este normativo não violenta o atual texto constitucional em qualquer aspecto. Isso porque ele, na realidade, a par de prever a possibilidade da vedação da reunião ilícita, estabelece o procedimento para questionar a proibição.
Sem se aprofundar no tema, pode-se pensar, tendo a legislação espanhola por analogia (Lei Orgânica nº 9/83, art. art. 5º) (ESPANHOLA, 1983), em proibição ou dissolução da reunião que seja considerada ilícita em face de lei penal, quando produz alterações na ordem pública com perigo a pessoas ou bens alheios, quando os participantes utilizam uniformes paramilitares (que seria um indício de reunião não pacífica ou com armas) e as organizadas por membros das Forças Armadas ou das polícias civil ou militar (com grande probabilidade de uso de armas). Na Espalha, o Tribunal Superior, em decisão de 4 de março de 2002, fixou entendimento de que a autoridade pública pode proibir a manifestação na qual se prever de modo razoável que concorrem indícios de que possa ser constitutiva de delito e, como tal, potencialmente geradora de alterações da ordem pública, com perigo para pessoas ou bens alheios (ESPANHA, 2002).
Ilícita, por sua vez, será toda reunião que não seja procedida da prévia comunicação ao Poder Público. Aqui, dada a omissão do cumprimento desde requisito formal, a reunião, se realizada, revelará a prática de um ato ilícito (ainda que na modalidade abusiva).
É certo, ainda, que a reunião não pacífica ou pacífica com porte de armas são vedadas. Logo, quando realizadas (não pacífica ou pacífica com porte de armas), estar-se-á diante de reunião pública ilícita. Óbvia, ainda, que ilícita será a reunião realizada aparentemente com fins pacíficos, mas que se degenerem em atos de pancadarias, vandalismos, depredações, etc. Também se pode ter como ilícito, pois não pacíficos, os protestos que sói ocorre pelo Brasil afora com uso de força como, por exemplo, aqueles realizados em estradas e outras vias, com ameaças às pessoas que tentem passa pelo bloqueio imposto, não mais das vezes com queima de pneus, etc. Nestes casos, pode-se estar diante de uma verdadeira reunião não pacífica, já convocada ou realizada para causar danos a outrem. Danos aqui, não só da ordem material, como também lesões imateriais, ainda que decorrentes do bloqueio proposital das vias públicas com intuito de causar incômodo.
No espaço do presente trabalho, e diante de seu objetivo, não se pretende aprofundar neste tema a antijuridicidade da reunião (GONÇALVES, 2016). Contudo, deve ficar claro que, por óbvio, o direito de reunião não pode ser exercido de forma abusiva. E, como todo direito fundamental, ele tem limite. Daí porque é pertinente o estudo da responsabilidade civil quando diante da reunião ilícita ou quando dela decorrem atos ilícitos.
3 Da Responsabilidade
É certo que, quando ilícita ou realizada de forma abusiva, da reunião se pode extrair as consequências decorrentes de eventuais danos causados em face da manifestação pública, danos tanto materiais, como de ordem imaterial (v.g., transtornos causados pela retenção excessiva do trânsito, etc).
A responsabilidade civil que decorre da reunião, seja ela lícita ou antijurídica (ilícita ou abusiva), porém, deve ser bem delineada quanto aos obrigados à indenização porventura devida. Aqui, então, cabe definir a responsabilidade da pessoa promotora ou organizadora da reunião e das pessoas que dela participam.
A maior controvérsia, porém, é aquela na qual o dano é gerado por ato de um participante que não é identificado.
3.1 Responsabilidade do Organizador da Reunião
O Brasil não possui ainda um texto legal que trata especificamente da responsabilidade civil em face do exercício do direito de reunião. Isso não impede, todavia, de que, com base nas regras gerais de responsabilidade civil, estabeleçam-se algumas lições a serem observadas. O ideal, no entanto, era sua regulamentação para evitar a insegurança jurídica. É o que já ocorre na Espanha, cuja Lei Orgânica nº 9/83 dispõe claramente sobre a responsabilidade do promotor da reunião, quando preceitua, em seu art. 3º, que “da boa ordem das reuniões e manifestações serão responsáveis seus organizadores, que deverão adotar as medidas adequadas à realização das mesmas” (ESPANHA, 1983, Tradução nossa). Mas, mesmo no Brasil, dada a regra geral de responsabilidade civil, não se tem dúvida que quem promove, convoca ou organiza a reunião responde pelos danos que causar a terceiros (participante ou não participante do evento). E aqui pouco importa a licitude ou não da reunião.
No caso de reunião ilícita ou abusiva, por óbvio, dada a antijuridicidade da conduta, o organizador responderá pelos danos causados em face da reunião realizada em desajuste ao permitido em lei. Já na hipótese de reunião lícita, o organizador responderá por ato próprio em decorrência da sua omissão de diligência ao não adotar providências e cautelas necessárias para evitar danos a terceiros. Para ficar bem claro: a reunião pode até ser lícita, mas deste ato não se extrai a isenção de responsabilidade quando o organizador não adota as medidas de segurança necessárias para evitar o dano a outrem.
Óbvio, porém, que, no caso dos naturais desconfortos causados pela reunião pública, o organizador responderá pelos danos na medida do que dele se espera seja realizado, distinguindo-se daquilo que seria de responsabilidade do Poder Público, a quem compete adotar as medidas pertinentes quando da ocupação do espaço público. Podem surgir situações, então, em que o Poder Público é quem deve responder por eventuais danos, especialmente quando não adota as regras para o trânsito seguro.
Neste caso, então, comprovado o nexo causal entre a conduta do organizador e o dano, terceiros prejudicados podem demandar a pessoa (física ou jurídica) responsável pela convocação da reunião para haver indenização pelos danos sofridos. Danos, não só materiais, como de natureza imaterial (moral). É certo, porém, que diante de uma reunião licitamente convocada e realizada, sem qualquer abuso, dificilmente se estará diante de uma situação na qual decorra a obrigação de indenizar, isso porque os participantes estarão no exercício do direito de reunião. Deste direito, porém, não se pode tirar a obrigação de indenizar terceiros por danos eventualmente sofridos. Mas, como já dito acima, eventualmente o Poder Público pode ser responsabilizado se ele, “em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro”, der causa à lesão a terceiros, a teor do que dispõe o art. 1º, § 3º, da Lei nº 9.503/97 (BRASIL, 1997).
Mas, por óbvio que lesões podem ser geradas pela reunião em si. Por exemplo, se convocada para ser realizada num parque a este, dada a ocupação das pessoas participantes, é danificado, poderá o ente público exigir a reparação dos danos causados ao seu patrimônio. Da mesma forma, pode-se pensar na responsabilidade do organizador quando este convoca uma reunião para um delimitado espaço público e, dada a presença de pessoas em quantidade superior ao esperado, estas acabam por ocupar outras vias ou áreas públicas, prejudicando terceiros. No caso, o organizador pode responder pelos eventuais danos causados pela ocupação do espaço não reservado.
O organizador da reunião, outrossim, responde de forma solidária pelos atos praticados pelos participantes da reunião. Aqui a obrigação de indenização deriva do fato de que quem convoca a reunião assume a responsabilidade pelos atos dos seus participantes. De sua omissão, negligenciando no seu dever de segurança e proteção, responde pelo ato do participante, podendo, porém, dele ser ressarcido quando identificada a autoria do ato ofensor.
O participante, neste caso, atua como verdadeiro preposto do organizador da manifestação. Aquele, portanto, passa a ser responsável pela regra geral decorrente do mandato (according to the common-law rule of agency), como já decidiu a Suprema Corte americana (ESTADOS UNIDOS, 1979).
Assim, por exemplo, o organizador que não retira da manifestação o participante que porta arma ou que não afasta o participante que não respeita as orientações passadas para o bom desenvolvimento do ato público, responde por sua omissão e negligência. Ou seja, em casos de danos gerados pelos participantes da reunião (manifestação pública, etc.), cabe aos seus promotores ou organizadores a responsabilidade solidária pela reparação da lesão, ainda que esta decorra de um participante não identificado.
Essa responsabilidade por ato do participante também decorre quando este, no curso da reunião ou em decorrência dela, pratica ato ilícito gerando danos a terceiros. É o que ocorre quando um manifestamente ou um grupo deles causa danos ao patrimônio alheio, depredando bens móveis e imóveis, causa lesão corporal a terceiros, etc.
Na Espanha, num primeiro momento, a Lei Orgânica nº 9/83, em seu art. 4º, § 3º (ESPANHA, 1983), estabelecida essa responsabilidade do organizador independentemente de culpa. Em 1997, no entanto, procedeu-se na alteração legislativa, isentando o organizador quando este demonstra que adotou as medidas razoavelmente exigidas para evitar os danos a terceiros (ESPANHA, 1997; MÚRTULA, 2005, p. 300).
No Brasil, porém, adotou as regras gerais de responsabilidade Por ato de terceiro (mandato), o organizador responderia objetivamente pelos danos praticados pelo participante da reunião, que atuaria como preposto do promotor da manifestação, ainda que a responsabilidade do ofensor seja subjetiva.
E aqui valem as lições de Sérgio Sérvulo da Cunha (1997) quando procura apontar o conceito de preposto. No caso específico de sua definição para fins de responsabilidade, por proposto se pode ser a pessoa que foi acolhida por outrem para realizar determinado ato, atraindo-se a responsabilidade in eligendo, ou a pessoa que exerce a função/atividade sob a vigilância ou dependência do outro, atraindo a responsabilidade in vigilando. E ele adverte que
“essa fluidez do conceito, assim como a multiplicidade das teorias, decorre da necessidade de se formular o elemento compreensivo de todos os casos concretos de responsabilidade pelo fato de outrem, de se identificar a razão comum que justifique a decisão semelhante (ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio). Se a própria norma não definiu o termo expressamente – como tantas vezes acontece – e se definição uniforme não é encontrada na tradição, o elemento individualizado torna-se compreensível a partir da apreensão do respectivo contexto. Considerando-se o termo definido (no caso, ‘preposto’ como uma incógnita, seu sentido será aquele que satisfizer as proposições em que esse termo opera, no respectivo contexto ou sistema.” (CUNHA. 1977)
3.2 Responsabilidade do Participante
Em relação ao participante da reunião, algumas questões devem ser bem esclarecidas. A primeira delas é que o participante, ao lado do organizador, responde em face de terceiro, por eventuais danos geradores em decorrência de reunião ilícita ou abusiva. Aqui, aquele que participa de reunião antijurídica (ilícita ou abusiva) assume a responsabilidade por seus atos. Logo, concorre como o promotor da reunião ilícita pelos danos causados a terceiros.
É certo que, em determinadas situações, o participante pode alegar que desconhecia o caráter abusivo da reunião. Pode alegar, por exemplo, que desconhecia que o Poder Público não tinha sido previamente comunicado da realização a reunião, daí porque ela ser considerada abusiva, atraindo a incidência das regras de responsabilidade civil.
Contudo, mesmo diante desta hipótese, o participante que se reúne ilícita ou abusivamente com outrem responde por seu ato realizado de forma coletiva perante terceiros. Isso porque, neste caso, ao concordar em se reunir em local público, assume a responsabilidade pelos danos causados a terceiros inocentes. É certo, porém, que deve ser assegurado ao participante o direito de regresso caso a antijuricidade decorra de ato de outra pessoa (ex.: o organizador não encaminhou a comunicação prévia; alguém fez uso de armas). Neste caso, então, o participante inocente poderá ser ressarcir regressivamente perante o responsável direto pelo ato ilícito ou quem deu causa ao dano.
Daí se tem que, junto com o promotor da reunião, o participante responde perante terceiros pelos danos sofridos por este. Caso, porém, a reunião venha a ser considerada abusiva ou ilícita em face de ato (comissivo ou omissivo) de outro participante ou de organizador, os inocentes poderão ser ressarcidos regressivamente.
Óbvio, ainda, que o participante responde pelos seus próprios atos ilícitos praticados quando da reunião (ofensas morais, destruição de bens, etc.). Neste caso, tanto poderá ser demandado individualmente, como em litisconsórcio com o organizador do evento, podendo este (organizador) ser ressarcido regressivamente por ato daquele outro (participante). Aqui a pessoa que pratica o ilícito responde pelos seus atos.
Contudo, não só o organizador do evento responde solidariamente. Os demais participantes também são responsáveis perante terceiros, ainda que possam ser ressarcidos regressivamente.
A responsabilidade do participante inocente em face de ato praticado por outro manifestamente devidamente identificado decorre do fato de que os membros do grupo se identificam como integrantes de uma coletividade e afirmam seus interesses e necessidades compartilhados. E tudo isso se revela numa manifestação pública.
A responsabilidade coletiva, neste caso, teria sua razão no fato de que todos os integrantes do grupo (participantes da reunião), em suas condutas em conexão com as dos outros, dão origem à lesão. Como ensina Andreas Von Tuhr, trata-se de causalidade comum, que ocorre quando
“várias pessoa cooperam ao mesmo resultado. A cooperação pode consistir em uma conduta coletiva, seja como causante ou coagente, como indutores ou como auxiliares. E como não é necessário que a conexão causal responda a uma causa única, cada uma das pessoas é obrigada a ressarcir em todo seu alcance o dano que produza com a cooperação dos demais.” (1999, p. 66. Tradução nossa)
Cada membro do grupo, neste sentido, atua numa relação causal em prol do efeito danoso, em culpa contributiva (contributory fault) (FEINBERG, 1991, p. 69), mesmo que não tenha participado do ato mais imediatamente determinante para o resultado lesivo. A unidade da finalidade justificaria a imputação coletiva, sem prejuízo de eventual ressarcimento nos casos em que se pode apurar a responsabilidade singular.
Aqui, conforme lições de Karl Larenz, “não é necessário que a atuação perigosa de vários se baseie em um acordo entre eles; basta que, segundo o critério da prática, integre um fenômeno unitário” (1959, p. 625. Tradução nossa). É preciso que haja um laço de homogeneidade nos riscos assumidos, segundo os elementos fornecidos pela via cotidiana (“prática”). É o caso das manifestações ou reuniões públicas.
Aliás, pode-se até afirmar que quem participa de uma reunião pública assume uma consulta de risco, pois é grande a probabilidade da manifestação pública gerar danos a terceiros (DÍAZ, 1998, p. 92). O participante assume uma “atividade de risco” (no sentido de criação do risco), atraindo a responsabilidade objetiva, ainda que por analogia. E se pode ter que participar de uma reunião, em especial as públicas, na qual podem se agrupar à reunião uma generalidade de pessoas indeterminadas, de toda as matrizes e origens, com diferentes interesses pessoais, é assumir uma atividade perigosa, responsabilizando-se pelo risco de o grupo gerar danos a terceiros (CRUZ. 2005, p. 268).
E aqui se faz importante a interpretação da regra do parágrafo único do art. 927 do Código Civil (BRASIL, 2002). Dela, em verdade, deve-se extrair a interpretação que seja mais favorável a quem se destina proteger, que é a vítima do dono.
O parágrafo único do art. 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), em verdade, criou uma regra geral da responsabilidade objetiva nas atividades de risco, aplicável quando inexistente outra regra mais especial[1].
Assim é que, no capítulo que trata da responsabilidade civil, o Código Civil, no parágrafo único do art. 927, em sua parte final, (BRASIL, 2002) tratou de inserir de forma expressa e em caráter geral a responsabilidade objetiva nos casos de danos derivados da exploração de atividade que, por sua natureza, implique em maior risco para os direitos alheios. Por este dispositivo legal, fica instituída a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, afora os casos previstos em leis especiais, sempre que “a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
A lei fala em “atividade”. Por essa expressão pode-se entender que se trata de uma ação, uma conduta, um trabalho especifico, uma ocupação ou uma profissão. Atividade aqui entendida como uma ação humana. Ela não se restringe, portanto, a uma atividade empresarial, econômica, etc.
A expressão (“atividade normalmente desenvolvida”) utilizada pela norma, todavia, dá a entender que ela se refere à atividade reiterada e sequencial (“normalmente desenvolvida”) que expõe outrem a risco. Seria um conjunto ordenado de atos que expõe outrem ao risco de sofrerem danos. Em suma, seria uma atividade que é assumida de forma não eventual. Daí, então, poder-se-ia afirmar que somente as atividades costumeiras ou repetidas é que ensejariam a responsabilidade objetiva. Ficariam de fora as atividades esporádicas, eventuais ou isoladas, ainda que de risco.
Essa, porém, não nos parece ser a melhor interpretação. Não se pode concluir que a prática de um ato isolado, por quem desenvolve uma atividade de risco, afasta a incidência da responsabilidade objetiva. Isso porque a norma visa a proteger a pessoa contra a atividade de risco. Logo, ainda que a atividade seja apenas eventual ou esporádica, mas ela, por si só, implica por sua natureza um risco acentuado a outrem, mesmo nesta situação isolada, cabe aplicar a regra da responsabilidade civil objetiva aqui mencionada. Até com maiores razões essa responsabilidade objetiva se justifica, já que, normalmente, ao executar uma atividade para a qual não está habituado a desenvolver, a pessoa expõe outros a um maior risco de dano.
A expressão “normalmente desenvolvida”, assim, não exige a reiteração ou repetição da atividade. Ela se dirige à atividade em si, que, quando executada (“normalmente desenvolvida”), por sua própria natureza, implica em maior risco para os direitos alheios. Aqui, em verdade, essa expressão quer se referir à atividade que é lícita (normalmente) de se desenvolver. A normalidade se refere ao que é lícito, ao que é permitido se executar, ainda que exponha outrem ao risco de dano. A lógica é que, a princípio, o que pode gerar danos a outrem deve ser vedado (vender drogas, dirigir em alta velocidade, etc.). Mas, dado a diversos fatores, prefere-se permitir a atividade, que passa a ser normalmente (licitamente) desenvolvida.
Daí se tem que a atividade de promover reunião pública, com participação de inúmeras pessoas, sendo que a maioria delas sem sua identificação, é considerada de risco, atraindo a responsabilidade objetiva pertinente.
Mas, ainda que não se aplique aos participantes a teoria da responsabilidade objetiva pela “atividade de risco”, pode-se afirmar que ele assume o risco da responsabilidade. Assim, ao participar de um movimento coletivo, ele não só responderia pelos seus próprios atos, como pelos dos demais membros do grupo. Assume, portanto, o risco de responder por ato de terceiro membro do grupo.
Vale ressaltar, ainda, que, por óbvio, não é preciso que o grupo tenha uma estrutura orgânica. Ele pode ser formado espontaneamente ou mesmo em caráter fortuito ou passageiro. O que se importa é a intenção comum de estabelecer um grupo, “ainda que carente de organização” (DÍAZ, 1998, p. 95). Basta um pressuposto: que a coletividade seja composta de membros que compartilhem interesses ou necessidades em comum e mostrem sinais de solidariedade de grupo.
Daí se tem que se a reunião for daquelas “espontâneas”, ou seja, não tenha um organizador individualizado, por certos que todos os participantes responderão perante terceiros, já que eles assumem o papel conjunto de protomor coletivo da manifestação. O mesmo se diga em relação às reuniões patrocinadas por coletividades inorgânicas, isto é, por agrupamento ou ente sem personalidade jurídica. Neste caso, todos os participantes da manifestação responderão também como se fossem organizadores do evento.
Deve ser esclarecido, ainda, que, por óbvio, o membro participante da reunião pode ser a vítima do dano. Neste caso, ainda que tenha consciência de sua conduta de risco ou perigosa em participar do grupo de manifestantes, uma vez demonstrada que não agiu com culpa exclusiva (da vítima), cabe a reparação pelos danos sofridos (DÍAZ, 1998, p. 94).
Para ilustrar, cabe lembrar que a responsabilidade do participante, perante o direito espanhol, está definida claramente no art. 4º, § 3º, da Lei Orgânica nº 9/83, ao dispor que
“os participantes em reunião ou manifestações, que causem danos a terceiros, responderão diretamente por ele. Subsidiariamente, as pessoas naturais ou jurídicas organizadoras ou promotoras de reuniões ou manifestações responderão pelos danos que os participantes causem a terceiros, sem prejuízo de que podem repetir contra aqueles, a menos que hajam posto todos os meios razoáveis a seu alcance para evitá-los.” (ESPANHA, 1983. Tradução nossa)
3.3 Responsabilidade por Ato de Participante Não Identificado (Membro Indeterminado)
O que se mostra mais controverso, porém, no caso da reunião pública (e em vários outras situações), é a eventual responsabilidade por ato de um membro indeterminado, isto é, quando o dano é gerado por ato de uma pessoa não identificada. Aqui, então, haveria a responsabilidade do grupo por ato de um membro indeterminado.
A doutrina tem admitido a possibilidade de se imputar ao grupo a responsabilidade pela reparação do dano causado por um membro indeterminado. E tal pode ocorrer justamente na reunião pública. Nesta hipótese cabe aplicar as regras da responsabilidade coletiva.
A configuração da responsabilidade coletiva, porém, depende da presença de alguns elementos. Eles seriam: a existência de um grupo (coletivo ou pluralidade de sujeitos), relação de causalidade entre o dano e a atividade do grupo, a existência de uma unidade espaço-temporal na atuação dos membros do grupo (durante uma manifestação pública, por exemplo) e a impossibilidade de se identificar o autor singular do dano (sem excluir a responsabilidade solidária) (BARRÍA DÍAZ, 2011, p. 80-93).
Presentes todos esses elementos, imputa-se ao conjunto dos participantes e ao promotor da reunião/manifestação a responsabilidade pelo ato do membro participante (ex.: depredou um imóvel, incendiou um veículo, etc.). Mas, ressalte-se, mesmo que identificado o autor singular do dano, pelas regras do sistema jurídico brasileiro, se pode extrair a conclusão de que cabe a responsabilidade solidária do participante inocente, assegurado o direito de regresso. Outrossim, não identificado o autor singular, o grupo e organizador responderão solidariamente pelo ato do membro indeterminado.
Ou seja, ao participar de um movimento coletivo, a pessoa não só responde pelos seus próprios atos, como pelos dos demais membros do grupo, ainda que não seja identificado o autor individual da lesão. O participante, assim, assume o risco de responder por ato de terceiro indeterminado, membro do grupo. O membro identificado responde pelo ato do outro não identificado, já que àquele cabia prever a possibilidade de se causar danos a outrem em manifestações coletivas ainda que por ato ilícito de um participante. O participante, assim, responde por sua ação perigosa ou culpa conjunta.
Infelizmente, no Brasil, não se tem uma regra clara a respeito dessa responsabilidade coletiva quando não identificado o ofensor participante de um grupo. Quando muito, tem-se a regra do art. 938 do Código Civil (BRASIL, 2002) que imputa aos moradores do imóvel a responsabilidade pelos danos causados pelas coisas que dele caírem ou forem lançadas. Neste caso, todos os moradores respondem pelos danos, não se identifique o responsável individual.
O ideal, para maior segurança jurídica, sem prejuízo do que se extrai das regras gerais, era a edição de norma como a do § 830 do BGB alemão que dispõe que
“1. Se várias pessoas, por um ato ilícito cometido em comum, causa dano, cada um é responsável pelo dano. O mesmo ocorre quando não se puder identificar quem, entre os vários participantes, tenha causado o dano mediante sua ação. 2 Os instigadores e participantes equiparam-se aos coautores.” (ALEMANHA, 1990. Tradução nossa)
Semelhante regra se encontra no Código Civil de Québec, em seu art. 1.480, que estabelece que quando várias pessoas participaram de um fato coletivo e dele decorra dano a outrem, não sendo possível definir o responsável individual pela lesão, todos respondem solidariamente pela reparação dos prejuízos (CANADÁ, 1991)[2].
Aqui se aplicaria a regra da causalidade alternativa, da responsabilidade coletiva ou da culpa anônima (MULHOLLAND, 2009, p. 216), que ocorre quando o dano pode ter sido causado por ato de uma ou outra pessoa, sem se ter a certeza de quem foi. Ou seja, como qualquer um deles poderia ser o causado, todos responderiam pelo dano gerado, daí porque a expressão utilizada como sendo de causalidade alternativa[3]. Há, porém, doutrinadores que discordam dessa opinião (GOMES, 2011, p. 81; DIAS, 2011, p. 909)[4]. Estes apoiam-se na ideia de que a responsabilidade é sempre individual, não se podendo imputar a outrem a obrigação de indenizar quando apenas um membro do grupo causou o dano a este sequer é conhecido (CRUZ, 2005, p. 270-271).
A responsabilidade coletiva, porém, parte do pressuposto de que aquele que participa do ato coletivo assume a responsabilidade pela conduta individual dos demais membros do grupo, bem como dos atos coletivamente praticados. Assim, para tanto, não se exige, por certo, a identificação de todas as pessoas “que cooperam mediante atividade que produza o resultado danoso” (ENNECCERUS, KIPP, WOFF, 1996, p. 1.142, tradução nossa). Na hipótese de ser conhecida a pessoa causadora do dano, ela responderia conforme a primeira parte do item 1 do § 830 do BGB (aquele que comete ato ilícito por ato voluntário) (ALEMANHA, 1990), que coincide com a regra do art. 186 do Código Civil brasileiro (BRASIL, 2002). Já no caso da responsabilidade por ato de outro membro do grupo, o fato a atrair a responsabilidade da pessoa participante é a sua “cooperação em uma atividade que no momento só determina um perigo, mas que em seu desenvolvimento ulterior conduz ao ato causador imediato do dano” (PLANIOL; RIPERT; BOULANGER, 1965, p. 109. Tradução nossa). Como dito acima, a responsabilidade decorre do ato de participar de um evento potencialmente danoso (MULHOLLAND, 2009, p. 235).
A regra do direito alemão, no entanto, não tem sido repetida nas legislações que nos são mais próprias (de origem romano-germânica). A França, por exemplo, sempre resistiu a adotá-la (faute collective). Sua doutrina, não de hoje, rechaça essa possibilidade (PLANIOL; RIPERT; BOULANGER, 1965, p. 109). Contudo, mesmo na França se tem regra especial neste sentido. É o caso do artigo L211- 2 do Código Rural e da Pesca Marítima francês, que prevê a responsabilidade solidária dos proprietários de cabras conduzidas em comum quando não se tem como identificar a propriedade do animal causador do dano (FRANÇA, 2010)[5]. Aqui, ainda que não identificado o dono do animal, os proprietários das cabras conduzidas em conjunto respondem solidariamente pelos danos causados a terceiros. Um deles, portanto, pode vir a responder por ato do animal pertencente a outra pessoa.
Da mesma forma, o art. 1.734 do Código Civil francês (FRANÇA, 1804) dispõe que, em caso de incêndio de prédio locado a vários inquilinos, todos respondem pelos danos sofridos pelo proprietário do imóvel, salvo se demonstrada a responsabilidade de um deles ou alguma provar que ele não poderia ser o responsável pelo dano.
A jurisprudência francesa, de qualquer modo, ultimamente tem evoluído para aceitar a responsabilidade coletiva em determinadas circunstâncias (QUÉZEL-AMBRUNAZ, 2010, p. 1.162; MARION, FONTENILLE, 2014), a exemplo de incêndio causado por brincadeiras de várias crianças ou morte decorrente de rixa envolvendo vários agressores (ROUSSEAU, 2011, p. 1.983).
Na Espanha, mais recentemente, ainda que sem uma lei prevendo expressamente essa responsabilidade, o Tribunal Constitucional reconheceu responsabilidade do dirigente sindical participante de movimento grevista em face de danos causados por uma grevista não identificado quando da realização de piquetes (ESPANHA, 2002). No caso, a vítima sofreu lesões corporais e danos por lucros cessantes em face da conduta de trabalhadores não identificados quando da realização de uma greve que veio a ser reconhecida como abusiva. O Tribunal Constitucional espanhol conclui que o membro participante responde por culpa direta pelos danos causados pelo membro indeterminado.
Na Espanha, de qualquer forma, a Lei de Caça, nº 01/70, de 4 de abril (ESPANHA, 1970), em seu art. 33, número 5, estabelece expressamente a solidariedade de todos os caçadores com uso de arma pelos danos que causarem quando da caça se causa dono a outrem e não se tem como identificar o autor individual da lesão.
Essa possibilidade de responsabilidade do grupo, por sua vez, acabou sendo admitida nos Princípios de Direito Europeu da Responsabilidade Civil (EUROPEAN, 2005), que, em seu art. 3:103, prevê a possibilidade de definir a responsabilidade quando diante de causa alternativa. Por tais princípios, definiu-se que caso haja uma pluralidade de causas, sendo que cada uma delas, por si só, tivesse sido suficiente para produzir o dano, mas persistindo a incerteza sobre qual efetivamente o causou, cada uma será considerada como causa do dano até o limite correspondente à probabilidade de tê-lo causado (n. 1 do art. 3:103).
Outrossim, conforme os princípios europeus, se, havendo vários lesionados, persistir a incerteza sobre se o dano de um deles foi causado por uma atividade/causa, mas sendo provável que esta não tenha causado danos a todos, a atividade/causa será considerada como gerador a do dano sofrido por todos na proporção da probabilidade de ter causado lesão a um deles (n. 2 do art. 3:103) (EUROPEAN, 2005)[6].
Em suma, “para fundamentar-se a responsabilidade basta a possibilidade de que uma das pessoas tenha podido causar o dano, ou seja, uma pessoa participou com outras em uma ação susceptível de ocasionar um dano, ignorando-se, todavia, qual seu verdadeiro autor” (GIUSTINA, 1991, p. 38). Logo, a responsabilidade do membro decorre também do fato de que ele pode ter sido o ofensor. Essa situação, aliás, assemelha-se com a responsabilidade pela queda de coisa de apartamento em edifício condominial quando não se identifica o autor do dano. Neste caso, então, todos condôminos respondem pela ofensa, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Brasil (BRASIL, 1998).
Da mesma forma, essa responsabilidade hoje já é expressamente agasalhada por nossa legislação em relação aos eventos esportivos. Conforme a Lei nº 10.671/03, a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes (art. 14), bem como as entidades responsáveis pela organização da competição e seus dirigentes (art. 19), respondem objetivamente pelos danos sofridos por todos aqueles afetados com o evento esportivo, ainda que não identificado o causador da lesão (BRASIL, 2003).
Deve-se, porém, traçar algumas distinções. Isso porque existe a situação na qual em consequência da reunião ilícita ou abusiva decorrem danos a outrem e aquela na qual, em face de ato de um membro do grupo, gera-se prejuízo injustamente.
No caso de danos gerados pela reunião antijurídica (ilícita ou abusiva) em si, é certo que a entidade promotora e os membros do grupo respondem pelos seus atos, seja ou não identificado o causador da lesão ou ilicitude. Os danos decorrem dos atos coletivos dos membros do grupo, em coautoria com o promotor da reunião, conforme tratado anteriormente.
A outra situação é aquela na qual o dano é gerado por ato de um participante da reunião (lícita ou ilícita), mas este não é identificado. Neste caso, estão, os demais membros do grupo também respondem pelos danos causados a terceiros, mesmo que o dano decorra de ato de participante não identificado (indeterminado). Neste caso, todos que participam da reunião assumem o risco pelo ato de todos os membros do grupo reunido.
A responsabilidade, aqui, deriva do fato de que ao participar de determinado agrupamento a pessoa se torna responsável pelo ato do membro indeterminado, assumido, assim, o risco pela não identificação da autoria (HEDEMANN, 1958, p. 545). Mas também assume a responsabilidade em face da circunstância de ser um possível autor da lesão. Por participar do grupo e por ser um possível autor da lesão é que responde pelo dano causado por membro não identificado da coletividade.
Aqui, então, o participante da reunião, juntamente com o organizador, responderá pelo ato do outro participante (indeterminado), não podendo se ressarcir regressivamente, salvo se vier a ser identificada a pessoa responsável pelo dano.
Óbvio, porém, que, se identificada a pessoa, ela deverá responder pelos seus próprios atos, direta ou de forma regressiva. E aqui deve ficar claro que o promotor da reunião e os demais participantes respondem solidariamente pelo ato individual de um membro identificado. Aqueles, porém, podem se ressarcir regressivamente pela eventual indenização paga por ato ilícito da pessoa identificada (MULHOLLAND, 2009, p. 235). Não identificado, no entanto, o membro causador da lesão, tanto o organizador com os participantes identificados respondem de forma solidária. E aqui descabe a ação regressiva do participante em face do organizador, já que o participante identificado pode ter sido o causador da lesão infringida a terceiro quando não se identifica o ofensor.
Outra questão, porém, que deve ficar clara, é definir se quando, em não havendo a identificação do membro causador da lesão e tendo a prova de que determinado membro não teria sido o ofensor, este estaria isento de responsabilidade.
Cabe, porém, concluir que, neste caso, se o membro do grupo demonstrar que ele não poderia ser o causador do dano, o mesmo deve ser isento da obrigação de pagar a indenização, ainda que indeterminado o ofensor (LARENZ, 1959, p. 625; ENNECCERUS; KIPP; WOFF, 1966, p, 1.142; GIUSTINA, 1991, p 108; DÍAZ, 1998, p. 119-121). Isso porque não é só o fato de participar de determinado agrupamento que o torna responsável final pelo ato do membro indeterminado, mas também a circunstância de ser um possível autor da lesão. Por participar do grupo e por ser um possível autor da lesão é que responde pelo dano em responsabilidade coletiva.
Assim, não identificado o ofensor da lesão, mas comprovado que determinado membro do grupo não é o autor da ofensa, este fica isento de responsabilidade. Mas que fique claro: essa isenção se dá perante o organizador da reunião e perante os demais participantes. Perante terceiros, porém, o participante continua a responder pelo ato do membro não identificado de forma solidária. Comprovando, porém, que não poderia ser o autor da lesão, o participante inocente tem o direito de regresso em face do organizador da reunião ou dos demais participantes, já que algum desse outros pode ter sido o causador da ofensa.
4 Conclusão
Para finalizar, em apertada síntese, pode-se, no essencial, concluir que o direito de reunião pacífica sem armas não é um direito absoluto.
Outrossim, quando a reunião (manifestação pública) é realizada de forma abusiva ou ilícita, seu organizador e participantes respondem pelos danos causados a terceiros, danos estes que podem ser de ordem material, como de natureza moral. Aqui a antijuridicidade da conduta (reunião ilícita ou abusiva) atrai a responsabilidade pelos danos causados a terceiros.
Ainda que lícita a reunião, no entanto, o organizador responde solidariamente com o participante pelos atos ilícitos praticados por este no curso da reunião ou em decorrência dela (depredações de imóveis, danos em bens móveis, lesões corporais, danos morais pelos transtornos causados, etc.). Isso porque o organizador, ao convocar a reunião pública, assume o devedor de zelar pela segurança, saúde e patrimônio de terceiros que podem ser afetados em face dos atos participantes.
A responsabilidade do organizador e do participante perante terceiro, por sua vez, é objetiva, já que é decorrente do desenvolvimento de uma atividade de risco licitamente desenvolvida.
No mesmo sentido, tanto o organizador como os participantes identificados respondem pelos danos causados por membro indeterminado (não identificado) do agrupamento da reunião. Neste caso, o organizador responde perante terceiros pelo ato do membro não identificado em face das suas obrigações de segurança e preservação à saúde e ao patrimônio de terceiros em face da conduta do participante, seja ele identificado ou não.
Já o participante nominado responde pelos atos da pessoa não identificada causadora do dano, já que aquele pode ser o ofensor, bem como por assumir, ao participar do grupo, o risco pelos danos causados a terceiros.
Por fim, quando a reunião não é promovida/organizada por um ente despersonalizado ou por uma determinada pessoa (física ou jurídica), os participantes da reunião respondem pelos danos causados a terceiros, seja por ato individual próprio ou por ato do outro membro do grupo, ainda que este não seja identificado.
5 Referências
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[1] “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
[2] “Art. 1480, Lorsque plusieurs personnes ont participé à un fait collectif fautif aqui entrîne un préjudice ou qu’e elles ont commis des fautes distinctes dont chacune est susceptible d’avoir cause le préjudice, sans qu’il soit possible, dans l’un ou l’autre cas, de déterminer laquelle l’a effectivement cause, elles sont tênues solidairement à la réparation Du préjudice.”
[3] A rigor não se trata de causalidade alternativa, isso porque, na causalidade alternativa não se tem a certeza da causa do dano. Já na responsabilidade coletiva não se tem a certeza quanto à autoria do ato causador do dano.
[4] Orlando Gomes sempre se posicionou em sentido contrário a essa solução. Entendia que, “sendo impossível provar a autoridade do dano, que tanto pode ter sido produzido por um ou por outro, não se concretiza a responsabilidade” (2011, p. 81). José Dias Aguiar mantém posição idêntica, porém, admite a solidariedade quando o membro do grupo tem conhecimento de quem foi o causador da lesão, mas se mantém em silêncio. Entende que, neste caso, o causador e terceiro sabedor da autoridade do dano estariam firmando um pacto de modo a atrair a solidariedade (2011, p. 909).
[5] O Code Rural et de la Pêche Maritime, de 2010, é novo nome dado ao antigo Code Rural frânces, cuja data de publicação é imprecisa (FRANÇA, 2010).
[6] Conforme tradução oficial para o português europeu: “Art. 3:103. Causa alternativas
(1) No caso de existirem várias actividades, sendo que cada uma delas, por si só, teria sido suficiente para produzir o dano, mas sem que persiste incerteza sobre qual efectivamente o causou, cada uma será considerada como causa do dano até ao limite correspondente à probabilidade de o ter causado.
(2) Se, havendo vários lesados, persistir a incerteza sobre se o dano de um deles foi causado por uma actividade e sendo provável que esta não tenha causado danos a todos, a actividade será considerada como a causa do dano sofrido por todos na proporção da probabilidade de ter causado dano a um deles”.