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DIREITO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À RECUSA DE TRANSFUSÕES DE SANGUE

DIREITO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ À RECUSA DE TRANSFUSÕES DE SANGUE

André Olivier

Lucca Moro Costa

 

O Supremo Tribunal Federal tomou recentemente, por unanimidade, uma decisão importante[1] para a autonomia da vontade e as liberdades individuais: reconheceu o direito à recusa de transfusão de sangue por motivos de crença religiosa.

Em um julgamento paradigmático, o STF fixou, por unanimidade — no bojo dos Recursos Extraordinários nº 979.472 [2] e 1.212.272 [3] — o entendimento de que as Testemunhas de Jeová têm direito de recusa ao tratamento de transfusão de sangue. Os recursos, de relatoria dos ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, deram ensejo à apreciação dos Temas 952 e 1.069.

Em uma apartada síntese, a corte viu-se diante da seguinte questão: é legítimo que pacientes recusem determinado tratamento médico com fundamento em convicções religiosas? Se sim, deve o Estado brasileiro, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) custear alternativa ao tratamento anteriormente recusado?

Diante dessas questões analisadas pelo Supremo Tribunal Federal, o presente artigo se debruçará sobre a primeira delas, que diz respeito — principalmente — ao caso das Testemunhas de Jeová. Afinal, temos liberdade para recusar tratamento médico decisivo para salvar nossas vidas? Em que medida a preservação da vida, em uma colisão de princípios, poderia conflitar com a liberdade religiosa e, num sentido mais amplo, com a autonomia individual? Não seria a vida o norte guiador de toda a conduta médica, razão pela deveria ser considerada um direito irrenunciável e inalienável?

Essas questões são, por certo, complexas, ainda mais quando vida de pessoas se encontra em risco e em situações de vulnerabilidades. Com efeito, a partir de uma análise jurídico-constitucional, com base em uma fundamentação ortodoxa [4]dos direitos humanos, observa-se a ausência de colisão de princípios constitucionais capaz de ensejar um legítimo hard case.

O direito de recusa ao tratamento médico deve ser visto como uma consecução do princípio da dignidade da pessoa humana, dentro de um escopo em que se enquadram o direito à autodeterminação e à liberdade religiosa.

 

Dignidade humana articulada com a autonomia individual

No emblemático julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, aduziu aquilo que considera os conteúdos jurídicos do princípio da dignidade da pessoa humana. Esses conteúdos seriam valores que tornam a dignidade humana um princípio integrado e que atua em todos os eixos de proteção da pessoa humana.

Segundo Barroso, possui um valor ético o qual seria o respeito à autonomia de cada indivíduo[5]. Portanto, como bem refletido pelo ministro em seu voto, não há como falar de dignidade da pessoa humana sem a inclusão de uma noção de autonomia individual. A perspectiva de Barroso — que é, por sinal, kantiana[6] — engloba a ideia de autonomia como a capacidade do indivíduo de se autodeterminar, “de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a sua personalidade”[7].

Dito isso, não há dúvidas de que as convicções religiosas são parte importante do desenvolvimento da personalidade do indivíduo e representa significante componente dos seus rumos de vida, moldando, em muitos casos, concepções que abrangem aspectos da vida familiar e profissional.

No mesmo sentido, o ministro Gilmar Mendes dispôs sobre como o princípio da dignidade da pessoa humana implica no reconhecimento de uma larga margem de autonomia do indivíduo, cujas escolhas devem ser respeitadas[8]. Não há, portanto, como falarmos de dignidade humana sem um aspecto de respeito à autodeterminação individual, esta capacidade de levar a sua vida em consonância com valores próprios, desde que não afetem a esfera jurídica de terceiros. Nesta senda, é salutar citarmos Daniel Sarmento, que afirma:

Desde que não lesem direitos de terceiros, os indivíduos devem poder seguir seus projetos, inclinações e preferências, por mais que estes desafiem tradições e costumes enraizados ou desagradem as maiorias sociais.”[9]

 

Liberdade religiosa e caráter dúplice do direito à vida

Neste escopo da autonomia individual se insere o direito à liberdade religiosa, consagrado no artigo 5º, VI, da Constituição[10]. Não há dúvidas, logo, de que o direito à recusa de tratamento médico com fundamento em crença religiosa se insere no contexto da protegida liberdade religiosa, a qual se justifica, em um sentido mais amplo, na própria ideia de autonomia individual.

O direito à liberdade religiosa e à autonomia individual são importantes expressões da proteção dos direitos fundamentais no Brasil. Entretanto, o arcabouço constitucional pátrio também reserva uma importante proteção ao direito à vida (artigo 5º, caput da CF) e à saúde (artigo 6º, caput da CF), os quais são extremamente relevantes em um país eivado de desigualdades sociais.

Muito se discute sobre a inviolabilidade do direito à vida como um direito fundamental e humano de natureza absoluta, que não admite relativizações. Todavia, sabemos que isto não é verdade. A excludente de ilicitude da legítima defesa, bem como a possibilidade de pena de morte em um contexto de guerra declarada evidenciam a ausência deste absolutismo.

O ordenamento jurídico brasileiro, isto sim, consagra aquilo que pode ser conceituado como o caráter dúplice do direito à vida. O direito à vida, assume um caráter que vai além da mera garantia da sobrevivência e da integridade física individual.

A dignidade da pessoa humana passa a ser um aspecto fundamental deste direito, de modo que consagrar a inviolabilidade da vida humana também atua no sentido de garantir condições mínimas existências para que o sujeito desenvolva sua personalidade livremente e, logo, ao fortalecimento de sua autonomia, a qual — consequentemente — representará a garantia de uma vida com dignidade.

 

Consecução da autonomia individual

Durante o julgamento, o ministro Gilmar Mendes destacou como a submissão a tratamento forçado de um paciente que expressamente realizou uma recusa representaria uma violação do direito à vida do paciente, compreendido como o direito a uma vida digna.

Em seu voto, o ministro relata como o exercício de um direito por um adulto capaz e consciente, com base em suas convicções religiosas, representa uma consecução da autonomia individual, componente central da dignidade da pessoa humana.

Esta capacidade que o indivíduo possui de se autodeterminar, agir de acordo com a concepção do que considera ser uma boa vida, é um atributo que o sujeito considera da mais alta ordem. Neste sentido, o filósofo norte-americano James Griffin dispôs sobre como nós, humanos, colocamos alto valor em nossa capacidade de autonomia, de modo que um direito à autodeterminação deva ser tão valorizado e protegido quanto um direito à vida[11].

Um dos componentes mais importantes do julgamento ocorrido na Suprema Corte diz respeito ao consentimento informado[12] do indivíduo, um conceito fundamental no campo do Biodireito e da Bioética. O paciente assume um caráter determinante na definição não apenas do procedimento que será utilizado para manter a sua vida, mas também sobre as formas com as quais se dará, inclusive, a disposição de sua própria vida e próprio corpo.

A ideia de consentimento informado sustenta o argumento de que o direito de recusa a tratamento médico prevalece e nenhum médico ou profissional da saúde pode impor esse tratamento ao paciente. Não podem esses profissionais obrigar os pacientes a realizarem transfusão de sangue, em especial quando têm conhecimento da vontade do paciente.

O STF adotou uma posição de respeito ao livre consentimento informado. No caso em específico, tratando-se da possibilidade de recusa ao tratamento por Testemunhas de Jeová, faz-se necessária a obtenção de uma livre manifestação de vontade do indivíduo, a qual deverá ser válida, livre, inequívoca e esclarecida.

Portanto, deverá ser realizada por um indivíduo maior, capaz, discernente, sem pressões externas e dotado de espontaneidade. Esta diretiva antecipada de vontade deverá ser precedida por amplos esclarecimentos feitos pelo médico, o qual deverá relatar ao paciente as alternativas fornecidas, o estado de sua saúde e as consequências que poderão advir de uma recusa ao tratamento.

A manifestação de vontade do indivíduo poderá ser revogada a qualquer momento e será um ato personalíssimo, de modo que apenas este poderá recusar o tratamento.

Decorrente deste entendimento exarado pela Suprema Corte, vedada estaria a submissão de crianças e adolescentes à recusa de tratamento. Estes, por serem agentes desprovidos de capacidade para consentir, deverão ter seus direitos resguardados de acordo com a ética médica, levando em conta o princípio do melhor interesse do menor.

Neste sentido, destacamos manifestação do ministro Cristiano Zanin no curso do julgamento de que a proteção da saúde e da vida do infante se sobrepõe à vontade dos pais, os quais não possuem uma discricionariedade absoluta sobre seus filhos.

O posicionamento da Suprema Corte está em consonância com recentes julgados da Corte Europeia de Direitos Humanos[13], bem como posicionamentos adotados pelo Conselho da Justiça Federal na 1ª Jornada de Direito à Saúde (Enunciado 40)[14] e na V Jornada de Direito Civil (Enunciado 403)[15].

 

Direito de dispor sobre próprio corpo

Ante todo o exposto, entendemos que o Supremo tomou uma posição adequada diante de um caso cuja complexidade não se pretende negar. Trata-se, todavia, de um caso em que pacientes, com base na perspectiva liberal dos direitos e garantias individuais, buscam exercer a propriedade sobre seus próprios corpos, exercendo direitos subjetivos, desde que não atinjam a esfera subjetiva de direitos de terceiros.

Por meio deste julgamento, a Suprema Corte dá um importante passo na consolidação dos direitos que os indivíduos possuem de dispor sobre seu próprio corpo, um direito humano que o indivíduo possui para agir de acordo com sua autonomia e buscar aquilo que considera os melhores caminhos para uma vida boa. Esperamos que, ao se deparar com casos semelhantes como o direito ao aborto e à morte assistida, estes mesmos argumentos sejam utilizados a fim de que efetivamente cumpramos os direitos constantes em nossa Lei Maior.

[1] STF permite que Testemunhas de Jeová recusem transfusão de sangue em tratamentos médicos. In: G1. Brasília, 25 setembro 2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/09/25/stf-forma-maioria-para-permitir-que-testemunhas-de-jeova-recusem-transfusao-de-sangue-em-tratamentos-medicos.ghtml>.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 979742/AM. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5006128>

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 1212272/AL. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5703626>

[4] Chama-se fundamentação ortodoxa dos direitos humanos àquela que deu sustentação à primeira geração dos direitos humanos. Esta possui como base a teoria dos direitos naturais de John Locke e da ética deontológica kantiana, com o reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito de direitos dotados de autonomia pública e privada. Este modo de fundamentação dos direitos humanos também é conceituado como fundamentação tradicional e/ou moral.

[5] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2023. E-book. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553624788/.

[6] Diz-se que o ministro Luís Roberto Barroso adota uma concepção de autonomia kantiana, na medida em que o filósofo prussiano Immanuel Kant, tão influente no pensamento ocidental contemporâneo, possui como uma de suas grandes contribuições ao Direito a ideia de que a dignidade humana, intrínseca a todos nós, tem a autonomia individual como seu componente. Para mais, ver KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

[7]  Idem item V

[8] Para assistir ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, ver: https://www.youtube.com/watch?v=RXtNbEX_B2o

[9] SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 146.

[10] SOUZA, Carlos Eduardo; MARTINS, Júlia. Os direitos do paciente e a liberdade religiosa. Consultor Jurídico. 2 ago. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-02/direitos-do-paciente-e-a-liberdade-religiosa-dilemas-e-reflexoes/

[11] GRIFFIN, James. On Human Rights. 1. ed. New York: Oxford University Press, inc..2008.

[12] Pesquisas científicas experimentais, assim como procedimentos médicos, dependem do consentimento e da manifestação expressa da vontade das pessoas envolvidas. Os horrores realizados em campos de concentração nazistas com o intuito de promoção de avanços científico-tecnológicos trouxeram à tona as diversas violações de direitos cometidas por meio de uma ética de pesquisa que colocava, no centro de seu procedimento, apenas o ímpeto do progresso científico. Diante deste contexto, importantes documentos internacionais como o Código de Nuremberg (1945), a Declaração de Helsinque (1964) e a Declaração Internacional de Direitos Humanos e Bioética (2005), buscam reposicionar o avanço científico com a colocação do sujeito de pesquisa no centro de qualquer relação sujeito-pesquisador e, na ética médica, paciente-médico.

[13] ESPANHA é condenada por forçar transfusão de sangue em mulher testemunha de Jeová. In: Consultor Jurídico. São Paulo, 25 set. 2024. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-set-25/espanha-e-condenada-por-forcar-transfusao-de-sague-em-mulher-testemunha-de-jeova/>

[14] IOTTI, César Rodrigo. Jornada de Direito à Saúde reafirma autonomia do paciente adulto e capaz. Consultor Jurídico. São Paulo, 4 set. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-04/autodeterminacao-do-paciente-no-brasil-avancos-no-cenario-nacional/

[15] BRASIL. Enunciado n. 403 da V Jornada de Direito Civil. Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/207>