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DIP FINANCING – INOVAÇÕES NO FINANCIAMENTO ÀS EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI 14.112/20)

DIP FINANCING – INOVAÇÕES NO FINANCIAMENTO ÀS EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI 14.112/20)

Melhim Namem Chalhub

Marcio Calil de Assumpção

 

Está em vigor a partir de 23 de janeiro de 2021 a lei 14.122/20, que incorpora à lei 11.101/05 (Lei de Falências e Recuperação de Empresas – LFRE) importantes alterações, visando conferir maior efetividade à recuperação judicial, entre as quais ressalta a disciplina do financiamento DIP Financing (debtor-in-possession), mediante incentivos à concessão de crédito a empresas em situação de crise, cuja atividade ainda se mostre viável.

Ainda pouco explorado, o DIP Financing é um grande desafio no Brasil em razão do modelo previsto no artigo 67 (sem alteração legislativa) da lei 11.101/05. A positivação do tema na reforma da lei de insolvência (novo art. 69-A) preenche duas grandes lacunas até então existentes no direito brasileiro, quais sejam, (i) a proteção à prioridade (absolute priority rule) do repagamento desses financiamentos, matéria ainda não amplamente testada na lei brasileira, e (ii) a segurança jurídica para as garantias vinculadas aos financiamentos a empresas em crise.

A Seção IV-A da “nova lei 11.101/05” é toda destinada ao “Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial” e contempla as novas regras para o tema DIP Financing, circunscrito aos financiamentos celebrados pelo devedor após o pedido de recuperação judicial.  Essa interpretação decorre da leitura articulada de dois dispositivos da LFRE: o artigo 49 (que informa estarem sujeitos à RJ os créditos existentes até a data do pedido – créditos concursais) e o artigo 67 (que tratam dos créditos decorrentes de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial – créditos extraconcursais).

Assim, os financiamentos concedidos ao devedor a partir do pedido de recuperação não estarão sujeitos ao plano de recuperação e, por consequência, não poderão ser novados, justificando-se a extraconcursalidade, obviamente, em razão da publicidade da situação de crise econômico-financeira do devedor, que potencializa o risco de inadimplemento.

É de se notar, desde logo, que a inovação legislativa vai além da definição dos requisitos da operação de crédito a empresas em recuperação judicial, estendendo-se aos efeitos das garantias da operação financeira de alto risco nesse contexto.

A simples classificação desses créditos como extraconcursais, no cenário de futura e eventual falência, não chega a mitigar o risco de forma suficiente a incentivar os agentes financeiros (integrantes do Sistema Financeiro Nacional) à concessão desses financiamentos, pois, em razão do seu elevado risco operacional, pela sistemática até então vigente da lei 11.101/05 (antes da reforma) o provisionamento exigido pelas normas do sistema financeiro correspondia, em regra, a 100{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do valor do crédito.

É exatamente neste ponto que a inovação legislativa no empréstimo – DIP Financig merece aplausos.

Com efeito, as inovações constantes dos artigos 66-A[1] e 69-A[2] da lei 11.101/05 (com a redação da lei 14.112/20) contemplam a exigência de autorização judicial ou mesmo previsão no plano de recuperação judicial e ampla publicidade, tanto para o financiamento concedido (valor, prazo, taxa de juros) como para a garantia a ele atrelada, deixando claro que a segurança jurídica do DIP Financing, doravante, não poderá ser comprometida por disposições dos planos de recuperação judicial.

A lei 11.101/05 não exigia e continua sem exigir, em seu art. 67 (sem alteração legislativa), autorização dos credores ou autorização judicial para a celebração de contratos de financiamento durante a recuperação judicial. Em contrapartida, as disposições da mesma Lei 11.101/2005 (antes da reforma) também não conferiam segurança jurídica às garantias constituídas para obtenção desse tipo de financiamento. Aqui repousa a relevância das novas disposições dos artigos 66-A e 69-A da “nova” lei 11.101/05.

Não existia no modelo anterior (vigente até 25/1/21) segurança jurídica para o mutuante sobre os bens e direitos que receberia em garantia, o que retirava a segurança e a certeza quanto à recuperação dos valores mutuados. Na hipótese de não pagamento desse financiamento, o credor financiador tinha fundada dúvida se conseguiria exercer seus direitos sobre os bens e direitos que havia recebido em garantia diante da ampliação irrestrita do conceito de “bem essencial” e da aplicação indiscriminada do “princípio da preservação da empresa“, preceitos que passaram a atuar dentro do processo de insolvência como se fossem dogmas e que, exatamente por isso, acabaram atuando em desfavor das empresas em recuperação.

Essas alterações legislativas sinalizam, doravante, no sentido de que uma operação de financiamento concedida a empresa em recuperação – (i) dotada de publicidade tanto sobre suas condições como em relação à garantia e (ii) coberta pela autorização judicial ou pelo caráter contratual do plano de recuperação – conferirá ao credor a segura expectativa de que em caso de inadimplemento, seja no curso da recuperação judicial ou mesmo em caso de convolação de recuperação em falência, exercerá seu poder jurídico sobre as garantias, aumentando sobremaneira suas chances de recuperação do crédito.

Em uma visão de análise do risco de crédito, existem empresas que vistas isoladamente não “valeriam o crédito tomado“, mas quando analisadas em concurso com a garantia concedida passam a “valer o crédito tomado“. Daí a segurança da garantia ser elemento fundamental para o mercado de DIP Finacing, da qual se possam descortinar novos horizontes alvissareiros inclusive para fins de enquadramento nas regras de controle prudencial dentro do Sistema Financeiro Nacional.

Com efeito, para suprir as lacunas existentes no regramento até então vigente sobre o Dip Financing a lei 14.112/20 cria alternativas de negócio destinadas a compensar o risco, seja porque, em primeiro lugar, reconhece estarem habilitadas a conceder essa espécie de financiamento não apenas as instituições financeiras, mas também qualquer pessoa, física ou jurídica, inclusive sócios, familiares e integrantes do grupo da devedora, e, em segundo lugar, porque afasta qualquer restrição a que as garantias sejam prestadas por terceiros. Além disso, confere a esses créditos uma extraconcursalidade qualificada, que os coloca na frente dos créditos fiscais e dos créditos com garantia real, e afasta controvérsias quanto aos efeitos das garantias, especialmente quanto à extraconcursalidade do crédito com garantia fiduciária, mitigando, assim, o risco da operação.

O simples reconhecimento de habilitação legal de qualquer pessoa para operar o financiamento DIP, por exemplo, pode abrir perspectiva para criação de novas fontes de captação de recursos, que, embora ainda não dimensionáveis, podem contribuir para a reestruturação da empresa em recuperação.

Importante medida de proteção do direito do provedor de financiamento DIP é a irreversibilidade da validade e eficácia da alienação ou oneração de bens “após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor“, prevista no art. 66-A. Observe-se que, ao definir a “consumação do negócio” e o “recebimento dos recursos” como fatos impeditivos da anulação ou da ineficácia, essa norma dispensa, para esse fim, o requisito do registro do contrato como modo de transmissão da propriedade ou de constituição de direitos reais de garantia, privilegiando nessa operação, como ato caracterizador do aperfeiçoamento do negócio jurídico, o “recebimento dos recursos“, a par, obviamente, da sua formalização. A publicidade do registro, neste caso, será representada pela publicidade do próprio processo de recuperação judicial.

No que tange à garantia fiduciária, a par da extraconcursalidade decorrente da sua própria natureza,[3] a lei (art. 84) confere preferência especial aos titulares do crédito derivado dessa espécie de financiamento em relação ao valor a ela efetivamente desembolsado, qualquer que seja a garantia, e preserva a extraconcursalidade qualificada do crédito e a garantia, na proporção do valor já desembolsado, caso, em grau de recurso, seja modificada a decisão do juiz da recuperação que autorizou a contratação do financiamento.

Por esse modo, corrige-se um ponto de “ineficácia do sistema anterior“, acrescentando uma importante contribuição para essa nova roupagem do processo de reestruturação de empresas.

Embora a lei não admita a constituição de garantia subordinada sobre bens objeto de alienação fiduciária ou cessão fiduciária (art. 69-C), nada impede que a empresa recuperanda constitua garantia fiduciária sobre a propriedade superveniente (CC, art. 1.361, § 3º) de bem que já alienara fiduciariamente, possibilitando, assim e em certa

medida, o compartilhamento (condicionado à aquisição superveniente da propriedade) de garantia preexistente.

Relevante ainda o destaque para a convolação da recuperação judicial em falência antes da liberação dos valores correspondentes ao financiamento DIP, o que importará em automática extinção desse contrato, preservadas a validade e a eficácia das garantias e da preferência especial até o limite dos valores entregues à devedora antes da data da sentença de convolação.

Desta forma, os novos artigos 69-A até 69-F, que comporão a nova Seção IV – A da Lei, estabelecem um procedimento mais seguro para a celebração de contratos de financiamento pela empresa em recuperação, contemplando, em apertada síntese:

(a) para o juiz ou o Comitê de credores autorizarem o DIP será necessário que conheçam suas condições, o que implicará na apresentação nos autos de uma proposta detalhada de financiamento com descrição da estrutura financeira (taxa, prazo, eventuais condições especiais), das garantias e dos benefícios desse financiamento com a concomitante ciência, no processo, a toda a coletividade de credores;

(b) como ao administrador judicial compete a fiscalização da empresa em recuperação (art. 22) será alta a probabilidade de o juiz dar ciência ao administrador judicial do DIP (para fiscalização de sua utilização no negócio em si), independente da autorização para sua celebração;

(c) a modificação em grau de recurso da decisão que autorizou a contratação do financiamento não alterará sua natureza extraconcursal nem as garantias outorgadas ao credor de boa-fé;

(d)  caso a recuperação judicial seja convolada em falência antes da liberação integral dos valores financiados, o contrato será considerado rescindido, respeitando as liberações parciais e as garantias constituídas;

(e) qualquer pessoa pode garantir o financiamento DIP, inclusive o próprio devedor, mediante a alienação ou oneração de bens;

Apenas como nota, registre-se que a possibilidade de concessão do financiamento DIP por qualquer pessoa física ou jurídica, credor ou não na recuperação judicial (art. 69-E), e a constituição de garantias para esse DIP sobre bens do próprio devedor ou de terceiros, não afasta o regramento especial sobre as espécies de propriedade fiduciária, submetidas às disciplinas específicas (v.g. Lei 4.728/1965, lei 9.514/97 etc.), conforme disposto no art. 1.368-A do Código Civil.

Vistas assim, em destaque, as principais inovações do financiamento conhecido como DIP Financing, suas disposições induzem a crer que essa nova regulamentação conferirá segurança aos credores, tanto para a contratação do financiamento, como para constituir garantias que aumentem as chances de retorno do capital mutuado, estimulando a oferta de crédito para as empresas em recuperação com vistas a alcançar o escopo maior da lei, que é o soerguimento das empresas “recuperáveis“.

 

 

[1] Lei 11.101/05, com a redação dada pela Lei 14.112/2020: “Art. 66-A. A alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor a adquirente ou a financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor.”

[2] Lei 11.101/05, com a redação dada pela Lei 14.112/2020: “Art. 69-A. Durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 desta Lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.”

[3] Tratamos dos efeitos da garantia fiduciária na 7ª edição do nosso Alienação Fiduciária – Negócio Fiduciário (GenForense, 2021).