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A DINÂMICA DO RACIOCÍNIO JURÍDICO À VISTA DA TEORIA DA COMPLEXIDADE DE EDGAR MORIN

A DINÂMICA DO RACIOCÍNIO JURÍDICO À VISTA DA TEORIA DA COMPLEXIDADE DE EDGAR MORIN

Marcelo Garcia Da Cunha

SUMÁRIO: Introdução; 1 Certeza e simplificação: a idealização da resposta única; 2 Incerteza e complexidade: a multiplicidade de respostas possíveis; 3 Algumas decisões do Supremo Tribunal Federal em que desponta o paradigma da complexidade; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Não há dúvida de que a constitucionalização do direito implicou séria desestruturação do paradigma jurídico erigido a partir do surgimento das grandes codificações francesas no limiar do século XIX. Distanciando-se da rigidez hermética das normas codificadas, as normas constitucionais pelo seu caráter principiam lógico e pela sua redação cognitivamente ampliada, permitem ao intérprete maior elasticidade na sua conformação aos fatos da vida social.

Tal fenômeno, devido à projeção hierárquica da Constituição sobre todo o sistema jurídico, estendeu-se gradualmente à normatização ordinária, assumindo a forma de mecanismos submetidos à interpretação extensiva, entre os quais se ressaltam as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados.

Se, por um lado, é alentadora a possibilidade de se ajustar a decisão jurídica às necessidades específicas e peculiares do caso concreto, sem distanciamento da modelagem normativa e com isso neutralizar os riscos de arbítrio, por outro lado, percebe-se que a operacionalização do Direito está amparada em raciocínios silogísticos que delimitam a sua resolutividade.

Na medida em que essa operacionalidade ampara-se no direito legislado, a exigência de certeza jurídica torna-se mais factível, visto que a pré-fixação de regras escritas serve como guia da conduta humana, conferindo-lhe, via de consequência, maior previsibilidade, que adquire alto grau de concretização em razão da possibilidade de aplicação de uma sanção em caso de descumprimento.

À vista dessas premissas, o questionamento nuclear que aqui se propõe diz respeito ao grau de ascendência da certeza no cenário jurídico contemporâneo.

Nesse sentido, utilizando-se como referencial teórico o pensamento de Edgar Morin acerca da complexidade, é necessário averiguar se há outros vetores que mitigam ou mesmo neutralizam o ideal de segurança que pontua o raciocínio jurídico na concretização do Direito.

A abordagem tem por objetivo geral avaliar a importância da certeza na efetivação do raciocínio jurídico pós-moderno.

Os objetivos específicos situam-se no apontamento dos pressupostos axiológicos que sustentam tanto o raciocínio jurídico tradicional quanto o raciocínio jurídico baseado na complexidade.

Num primeiro momento, partindo de elementos históricos que sedimentaram a concepção prática do Direito, é assinalado o esquema simplificador e redutor da problematizarão jurídica, cujo pilar fundamental sustenta-se nas inferências silogísticas.

Na sequência, em contraposição ao tópico antecedente, são expostas as premissas sobre as quais está estruturado o raciocínio jurídico emergente sob o paradigma da complexidade.

A análise de casos decididos pelo Supremo Tribunal Federal, em que é possível perceber inflexões baseadas na ideia de complexidade, é objeto de item que encerra o desenvolvimento do texto.

Utiliza-se essencialmente a metodologia dialética, pois são traçadas as características dos dois padrões de raciocínio jurídico postos em comparação e, ao final, na esteira dessa análise dialógica, são pontuadas as conclusões acerca da problematização proposta.

1 CERTEZA E SIMPLIFICAÇÃO: A IDEALIZAÇÃO DA RESPOSTA ÚNICA

Em tempos remotos do convívio social, a concepção dos direitos estava atrelada às comunidades tribais, que possuíam seus próprios cultos e divindades. O justo e o injusto, nesse contexto, eram delimitados por elementos acidentais, como crenças e superstições de toda ordem, incumbindo à autoridade familiar a interpretação dos presságios divinos e deles extraírem as respectivas consequências.

Os juristas romanos atribuíam grande prestígio aos costumes e à religiosidade, aspectos que predominantemente orientavam sua atividade. Infensos a construções dogmáticas, suas respostas aos problemas jurídicos sujeitavam-se ao fator emergencial e ocasional da vida cotidiana.[1]

A ideia de certeza jurídica somente foi esboçada, ainda que de maneira rudimentar, a partir da compilação feita por ordem de Justiniano, obstinado a codificar a legislação e a doutrina da sua época[2]. As chamadas codificações imperiais, já no período de enfraquecimento da hegemonia romana, imprimiam previsibilidade às relações jurídicas, visto que não mais estavam sujeitas às contradições e às ambiguidades de um direito edificado casuisticamente.

A desintegração de Roma e a emergência das antigas províncias e regiões que formavam o Império deram margem a um Direito estruturado fundamentalmente em matrizes fragmentárias, algo diverso do modelo sistematizado alcançado pelos romanos. Mesmo o denominado renascimento do direito romano, no século XI, impulsionado pela escola dos glosadores italianos[3], por meio do qual era almejada uma maior segurança para as relações comerciais então em franco desenvolvimento, não teve o efeito de erradicar as incertezas decorrentes de uma operacionalidade jurídica absolutamente dependente do soberano de plantão.

A certeza jurídica veio à tona de modo definitivo no limiar do século XIX, quando entraram em vigor os primeiros códigos orientados pela razão humana. A ideologia pressuposta ao regime erigido após a queda da Bastilha impunha a necessidade de segurança às relações entre os indivíduos. A concepção do fenômeno jurídico como algo dotado de sistematicidade e de resolutividade absoluta, herança do método apregoado por Descartes[4], destinado a alcançar todo e qualquer conflito, eleva a certeza jurídica ao nível de princípio basilar da incipiente modernidade.

A dinâmica do Direito assenta-se, desde então, em raciocínios dedutivos pautados no cotejo entre a norma abstrata e o fato em concreto, mediante o qual é extraída uma conclusão acerca da juridicidade ou antijuridicidade do comportamento submetido à análise do intérprete. Não encontrando uma norma específica, ao juiz não é permitido abster-se de decidir, pois deve, em casos dessa ordem, julgar com base na equidade, nos costumes e nas regras de experiência. O princípio da inescusabilidade, nesse cenário, é uma garantia que contribui de forma significativa à segurança jurídica[5]. O mesmo sucede havendo dubiedade ou obscuridade da lei, incumbindo ao julgador, em tais hipóteses, longe do recurso aclamatório dirigido ao legislativo da França pós-revolucionária, socorrer-se das técnicas interpretativas para extrair do comando normativo a solução possível.

Há, nesse contexto, uma pretensão exauriente e universalizadora do sistema jurídico, de maneira a não deixar em aberto a resolutividade dos litígios, que, para o bem do convívio social, devem ser neutralizados e equacionados de forma definitiva.

A certeza, como se nota, revela-se como mecanismo elementar à funcionalidade do raciocínio jurídico. Ela está diretamente vinculada à necessidade de segurança das relações jurídicas. Com a modelagem pré-fixada das condutas e suas respectivas consequências, objetiva-se eliminar a incerteza que ressalta de posicionamentos pessoais e de uma complexa dinâmica social. Uma vez que a conduta humana se ajuste, ou não, ao preceito normativo, há a convicção de que o sujeito fruirá ou sofrerá os efeitos nele fixados. A estabilidade da vida social torna inalienável a impositividade da lei, restando ao cidadão resignar-se em obedecê-la, ainda que a considere injusta[6].

Essa idealização, notadamente simplificadora que norteia o modus operandi jurídico da modernidade, abstrai as variações concretas que influenciam o resultado da atividade silogística e conduz à frágil impressão de que há uma única resposta a cada problema jurídico, muito embora, conforme adverte Perelman, seja infactível a certeza de que a decisão sobre a qual se inclina o jurista seja efetivamente a única solução justa[7].

Ao sujeito que é o obrigado a indenizar o prejuízo causado a alguém não é imposto um ato formal de escusas à sua vítima porque a tanto não o exige a lei. A solução, única e possível, é aquela prevista no ordenamento jurídico, incumbindo ao operador do Direito uma pesquisa exaustiva para encontrá-la. Para resguardar a pureza do conhecimento jurídico, evitando a infiltração de elementos externos, contaminando, com isso, o ideal de justiça erigido de acordo com o padrão normativo, não há a ponderação de outros aspectos, como aqueles de natureza ética, sociológica ou de psicologia comportamental, que poderiam fornecer ao caso a possibilidade de um tratamento multifacetado e, por isso, com potencial maior de eficácia e efetividade.

A problematizarão jurídica são reduzidos à confrontação de proposições, mediante apreensão do fato e seu enquadramento na tipologia legal. Nesse cenário, adverte Radbruch, é irrenunciável à ciência jurídica avaliar somente as árvores isoladamente, relegando a percepção da floresta. Para evidenciar o reducionismo que orienta o Direito ao captar a realidade da vida, basta constatar que restringe a biografia de um grande homem a um esquema jurídico integrado por certidões e documentos que retratam suas relações jurídicas[8]. A lei é tratada como todo o direito, e não como parte dele[9].

Nas controvérsias acerca de parentalidade, até momento muito recente, a resposta invariavelmente sempre foi pontuada pela configuração familiar tradicional, na qual a filiação, à vista do modelo legal, estaria condicionada à presença de uma mãe e de um pai, desconsiderando outras nuances afetivas e concretas, historicamente existentes e hoje identificadas no âmbito da chamada multiparentalidade, que poderiam orientar uma solução circunstancialmente mais ajustada.

A operacionalidade do padrão jurídico da modernidade, fragmentado em compartimentos estanques, eliminando as possibilidades multidimensionais, mostra-se, ademais, muito mais voltada à consecução de seus próprios fins do que direcionada à concretização da justiça.

O direito processual ilustra bem essa afirmação. A despeito de seu caráter instrumental, como amplamente apregoado pela doutrina especializada, possui mecanismos que, pelo rigorismo técnico, realizam-se independentemente de qualquer conteúdo substancial. Nesse sentido, e de forma ilustrativa, o recurso intempestivo poderá ser o ato derradeiro no qual prevalecerá uma decisão desvinculada dos preceitos de justiça. Na crítica de Amartya Sen, a compreensão de justiça, pautada num institucionalismo transcendente, não pode ser indiferente às vidas que as pessoas possam viver de fato[10].

Esse distanciamento da complexidade dos fenômenos sociais talvez explique a ineficiência da metodologia que sustenta o raciocínio jurídico para dar uma resposta adequada a certas questões, cujos contornos não as circunscrevem à resolutividade amparada em um pensamento binário de ir e vir entre fato e norma.

É corrente, portanto, a ideia de que toda e qualquer controvérsia jurídica implica a necessidade de uma resposta que venha a equacioná-la. No entanto, impõe-se uma delimitação ao ato de investigação dessa resposta, pois ela deve ser encontrada dentro do sistema jurídico. Qualquer outra solução, estruturada em elementos de matriz diversa, viola a autossustentabilidade desse sistema.

O direito que emerge no horizonte não se ampara apenas em convicções inabaláveis, certificadas por normas dotadas de coercibilidade. O mesmo sucede com o raciocínio jurídico fragmentado e simplificador, conducente a respostas silogísticas e unidirecionais. Há um esforço de adaptação a uma realidade cada vez mais cambiante e instável, e por isso, como será visto, permeada de incerteza e complexidade.

2 INCERTEZA E COMPLEXIDADE: A MULTIPLICIDADE DE RESPOSTAS POSSÍVEIS

Na construção de sua teoria, Edgar Morin revela preocupação com o que ele denomina de “paradigma da simplificação“, que se sustenta numa tríade formada por princípios de disjunção, de redução do raciocínio e de abstração[11].

A abordagem simplificadora direciona o raciocínio apenas ao campo do objeto investigado, desvinculando desse processo quaisquer outros elementos que com ele possam manter relação direta ou indireta. Devido ao enfoque generalizante, essa abordagem exaure-se em si mesma, pois não se volta, e até mesmo se opõe, a fenômenos concretos.

O pensamento estruturado no paradigma da complexidade, num viés oposto ao modelo simplificador, repele a pretensão de fragmentação e de completude do conhecimento. Ele é guiado por uma multiplicidade de dimensões cognitivas que são causa de incerteza e ambiguidade[12]. Ações, interações e retroações, insuscetíveis de regramento e de ordenação, integram, de maneira inexorável, o mundo fenomênico, tornando-o sensível à desordem. Há uma incompatibilidade lógica de se construir um saber determinado e totalizante, algo que diviniza o homem e, ao mesmo tempo, desconsidera suas limitações, diante de uma realidade dotada de matizes casuais e acidentários.

Para que os problemas humanos sejam mais bem equacionados, impõe-se não reduzir o raciocínio à trivialidade mecânica dos determinismos, como se possível fosse neutralizar a força do inesperado, do acaso e do incerto[13]. É o que ocorre com a ordem almejada na arena jurídica, construção artificializada que não se sustenta diante da desordem que assola seu entorno. Na perspectiva de Eduardo Bittar, há um descompasso entre a ordem formal (irreal) e a ordem social (real), criando uma contradição prática insolúvel entre ambas[14].

Essa desordem, convém esclarecer, não diz respeito à desobe­diência pura e simples de preceitos normativos, tal como apregoava o discurso libertário de Henry Thoreau, para quem a lei, como instrumento de sujeição ao poder do Estado, jamais tornou os homens mais justos[15]. Ela está associada à impossibilidade de determinar, de forma absoluta, a atividade humana. A ordem jurídica está intencionalmente voltada a regular a conduta humana, ainda que limitadamente, mas não está ao seu alcance regrar a assimilação retilínea de seus preceitos. Sobre qualquer objeto investigado, não haverá uniformidade na percepção cognitiva dos sujeitos cognoscentes, pois sempre se encontram submetidos aos riscos da aleatoriedade e da contradição.

A existência de tribunais superiores, destinados à uniformização das decisões judiciais divergentemente emitidas pelas instâncias ordinárias, demonstra o quanto a percepção do direito não está imune aos riscos de uma desordem interpretativa, algo, aliás, que se sucede, paradoxalmente, no âmbito desses próprios tribunais, cujos órgãos fracionários, não raras vezes em curto espaço de tempo, revelam assimetria decisória em questões similares. E mesmo quando essas Cortes de justiça reúnem-se na sua composição unificada, percebe-se uma instabilidade interna no seu entendimento, que se revela nas decisões cujo resultado ocorre por maioria de votos, nas quais há teses vencedoras e vencidas. Nesse contexto, ressalta a validade da afirmação de Ricardo Aronne, no sentido de que, até mesmo diante da mais estável jurisprudência, constatam-se desvios casuais[16].

Bem entendida a natureza dialética do raciocínio jurídico, a prevalência de determinado entendimento não elimina a validade do seu oposto, pois a tese vencedora contém elementos edificados pela confrontação dialógica. A síntese desse processo retrata invariavelmente todos os prismas nele considerados.

A despeito do esforço empreendido em busca da homogeneidade decisória, a dinâmica social, com suas interferências subjetivas e objetivas, interconectadas ou não, atua na base das incertezas, das contradições e de elementos heterogêneos[17]. Na conjuntura pós-moderna, segundo Eduardo Bittar, poucas certezas mostram-se certas, excetuando aquela que afirma que o certo é não haver certezas[18]. Edgar Morin é ainda mais enfático quando realça que todo o destino humano está pautado numa incerteza irredutível, inclusive na certeza absoluta de sua morte, mesmo que ignorada a data[19].

A concepção redutora do direito, tendente a eliminar a incerteza e a estruturar a sua operacionalidade num padrão simplificador, desconsidera a complexidade como algo inerente às dimensões vivenciais sobre as quais incide. A complexidade, para Morin, revela-se até mesmo nos vários papéis que o indivíduo protagoniza na sua vida cotidiana, conforme esteja na sua casa, no trabalho, com amigos ou desconhecidos. O sujeito social possui uma multiplicidade de identidades e personalidades que se encontram todas integradas em si mesmo[20].

O comportamento individual não segue uma linearidade. Determinados juízos morais não decorrem da razão. Valorações e ações de toda espécie muitas vezes são influenciadas por fatores que passam ao longe da percepção pessoal. Na exemplificação oferecida Paul Bloom, ao assinalar o quanto o agir humano é direcionado pela casualidade e por pressupostos subjetivos não aparentes, percebe-se que até mesmo a disposição para ajudar os outros é ampliada após o sujeito encontrar uma pequena soma de dinheiro[21]. Estudos de análise comportamental, por outro lado, revelam que a “atmosfera ambiental” é uma poderosa ferramenta de persuasão subliminar em contextos de consumo, agindo silenciosamente no íntimo do consumidor[22]. Leonard Mlodinow demonstrou, com base em elementos empíricos, que a conexão entre ação e resultado não é tão direta como se acredita, pois o influxo de eventos aleatórios pode sobrepor-se e tornar-se circunstancialmente decisivo[23].

A fórmula determinística e redutora do Direito, que ainda impressiona os juristas apegados ao hermetismo tipificador das tradicionais codificações, fornece um sistema dotado de certa previsibilidade, mas não o isola, de modo absoluto, da incerteza. Percebe-se a instabilidade do raciocínio jurídico pelo próprio esforço do intérprete, mesmo que sob o custo da subjetivação exacerbada, ao elastecer ou reduzir semanticamente o comando normativo para promover a sua melhor conformação prática. O resultado dessa atividade implicará respostas variadas a um mesmo elemento normativo. Ricardo Aronne chamava a atenção para o fato de as normas serem ricas em caos[24], afirmação que retrata não o mero aspecto referente ao enunciado estático, mas sim diz respeito, acima de tudo, à ascendência do aspecto dinâmico-subjetivo dos atores envolvidos na concretização da norma. A realidade sobre a qual incide o raciocínio jurídico não é algo dado, pois está condicionada ao sujeito da percepção[25].

A incerteza e a complexidade habitam de maneira inexorável o ser investigativo e por isso integram todo o processo dialógico que se sucede com o objeto investigado. O conhecimento, bem apreendida essa circunstância, jamais se exaure na conclusão desse processo, visto que se revela em constante construção. Um olhar para alguns casos concretos permitirá a constatação dessa afirmação.

3 ALGUMAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM QUE DESPONTA O PARADIGMA DA COMPLEXIDADE

Entre os grandes temas decididos pelo Supremo Tribunal Federal em época mais recente, é possível perceber casos em que a resolutividade foi pontuada por fundamentos e valorações de natureza heterogênea. E foi essa multidimensionalidade decisória que conferiu aos julgados maior conformação social.

A análise de tais decisões, que são dotadas de importância singular devido à posição hierárquica do órgão que as emitiu, demonstra que o raciocínio jurídico deve avançar além da técnica disjuntiva, recolhendo elementos de múltiplas origens, de modo a alcançar uma solução o mais adequada possível às exigências da justiça. Nesse sentido, Edgar Morin, assinalando a conjunção como algo elementar na sua construção teórica, diz que a complexidade é um fenômeno essencialmente quantitativo caracterizado por variadas interações e interferências entre um número elevado de unidades[26].

Como se trata de decisões paradigmáticas, é inegável o irradiamento não apenas de seu conteúdo decisório, o que é natural e mesmo impositivo diante da sistemática vigente, mas também – e para que o aqui interessa – de seus efeitos metodológicos em todos os níveis decisórios que compõem a estrutura judicial.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510, o Supremo Tribunal Federal apreciou a questão referente à utilização de células-tronco, obtidas de embriões humanos produzidos pela técnica de fertilização in vitro, para a finalidade de pesquisa e terapia, autorizada pela Lei nº 11.105/2005, denominada Lei de Biossegurança.

Nos debates que se seguiram, respaldando a constitucionalidade da lei questionada, aportaram temas não apenas de natureza jurídica, mas também motivações de caráter filosófico, religioso, médico, ético, antropológico e biológico, revelando uma conjunção de aspectos variados para a resolução da questão em discussão, que versava no seu ponto nuclear, sobre os momentos da vida humana protegidos pela normatização constitucional.

O paradigma da complexidade também desponta no julgado proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, na qual o tribunal reconheceu a união homoafetiva como instituto apto a produzir efeitos jurídicos.

Na ocasião, restou superado o entendimento reducionista de entidade familiar no sentido de que abrangeria apenas casais heterossexuais formados sob a liturgia matrimonial. Refletindo a complexidade fática que a matéria se reveste na sociedade contemporânea, o conceito de família foi ampliado de maneira a alcançar outras formas distintas do casamento civil, tradicionalmente pautado na diversidade de gênero dos respectivos sujeitos.

Programas de políticas afirmativas estabelecendo sistema de reserva de vagas em instituições de ensino superior, com fundamento em critérios étnico-raciais, foi objeto de discussão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186.

 Conforme decidido, a questão referente ao mérito dos concorrentes ao ingresso na universidade pública não pode se limitar a uma ótica puramente linear, impondo-se perspectivas que se mostrem mais amplas possíveis, sob pena de, assim não se procedendo, perpetuarem-se as desigualdades e as distorções materializadas no ambiente social. Para os integrantes da Corte Suprema, medidas afirmativas potencializam o pluralismo e a diversidade cultural e, por tal razão, merecem chancela constitucional.

No Habeas Corpus nº 124.306, o Supremo Tribunal Federal tratou do tema concernente à criminalização do aborto efetivado antes de concluído o primeiro trimestre de gestação.

No julgamento, afastando-se a tese de ocorrência de delito, foram elencados fundamentos decisórios de variados matizes, de natureza jurídica e metajurídica, dosados com dados empíricos, denotando uma abordagem cognitivamente ampliada e, por isso, alheia a determinismos e a concepções estáticas que até então orientavam a resolução jurídica da questão.

É oportuno observar que casos complexos não necessariamente se confundem com aqueles casos cuja decisão é orientada pela complexidade. A distinção é fundamentalmente metodológica. A jurisprudência revela casos complexos decididos mediante raciocínio redutor e fragmentado e casos simples julgados por meio de raciocínio pautado em múltiplas e conexas dimensões cognitivas.

Acrescente-se, ainda, que o próprio controle de constitucionalidade das leis, essencial entre as funções da Corte Suprema, é fator que promove certa erosão da segurança historicamente preconizada entre os juristas, visto que o raciocínio baseado em princípios, predominantemente ponderativo que tipifica essa espécie de controle, devido à textura aberta com que se apresentam, oportuniza mais do que uma única resposta juridicamente possível frente aos valores constitucionais envolvidos no caso concreto.

Essa resolutividade oscilante entre diversas possibilidades, e por tal razão motivo de incerteza e de incapacidade de se estabelecer uma ordem absoluta, confirma, na seara jurídica, a afirmação de Edgar Morin no sentido de que é inviável sustentar a concepção de um saber único e totalizante[27].

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A velocidade das transformações da sociedade tecnológica mitiga – e, em certas situações, elimina – o grau de segurança do cotidiano humano, alcançando, obviamente, o fenômeno jurídico.

Nesse contexto, a teoria do pensamento complexo permite uma adequada percepção da dinâmica do raciocínio jurídico que se desvenda na pós-modernidade.

A certeza e a simplificação que orientaram a mecanicidade do pensamento jurídico de outros tempos, conferindo às questões jurídicas respostas com previsibilidade quase matemática, cedem espaço à incerteza e à complexidade da contemporaneidade, tornando o fazer jurídico vulnerável à instabilidade.

O equacionamento das demandas jurídicas se sucede não mais pela sua tradicional operacionalidade disjuntiva e redutora, que circunscreve a atividade cognitiva ao campo restrito do conceitualismo legal e dos preceitos normativos, visto que as relações sociais alimentam-se cada vez mais de múltiplas fontes e de intercorrências que condicionam seus efeitos, realidade que impõe uma reformulação do raciocínio jurídico.

As respostas jurídicas, sob o paradigma da complexidade, não se mostram únicas e estáveis, atrofiando, no atual cenário, o conhecimento adquirido, mas sim se revelam plúrimas e instáveis, desordenando e, ao mesmo tempo, multidimensionando o processo de resolutividade.

Essa desordem, que deve ser apreendida como fator de oxigenação e renovação do sistema jurídico, não se revela paradoxal nem ofensiva à sua integridade, visto que, na atualidade, antes de tudo, passa a caracterizar a sua organicidade.

REFERÊNCIAS

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[1] SBARBARO, Orfilia Fernandés; SICARDI, Graciela Porta. Evolución de las instituciones jurídicas. Montevideo: Byblos, v. I, 2006. p. 14.

[2] RUSSOMANNO, Mario C. Breve historia del derecho romano. Buenos Aires: Claridad, 1988. p. 126.

[3] EYZAGUIRRE, Jaime. Historia del derecho. Santiago do Chile: Editorial Universitária, 2006. p. 88.

[4] DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

[5] GREZ, Pablo Rodríguez. Sobre el origen, funcionamiento y contenido valórico del derecho. Santiago: Universidad del Desarrollo, 2006. p. 90.

[6] GROSSI, Paolo. Mitologie giuridiche della modernità. Milano: Giuffrè, 2005. p. 16.

[7] PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 09

[8]RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 147-148.

[9] ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derecho, justicia. Torino: Editorial Trotta, 2011. p. 153.

[10] SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 48.

[11] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 11.

[12] MORIN, Edgar. Ob. cit., p. 07

[13] MORIN, Edgar. Ob. cit., p. 82-83

[14] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Revista Sequência, n. 57, p. 147, dez. 2008.

[15] THOREAU, Henry. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 11.

[16] ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 23.

[17] RIVAS, Milagros Santamaría. Reflexión de la psicología desde o pensamiento complejo y el post racionalismo. Sophia – Colección de Filosofía de la Educación, n. 16, v. 1, p. 107, 2014.

[18] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Ob. cit., p. 134.

[19] MORIN, Edgar. Reformar o pensamento. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 69.

[20] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 57.

[21] BLOOM, Paul. O que nos faz bons ou maus. Rio de Janeiro: Best Seller, 2014. p. 236.

[22] KOTLER, Philip. Atmospherics as a marketing tool. Journal of Retailing, v. 49, number 4, p. 48-64, winter 1973.

[23] MLODINOW, Leonard. O andar do bêbado: como o acaso determina nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

[24] ARONNE, Ricardo. Ob. cit., p. 30.

[25] GARCIA JÚNIOR, Carlos Alberto Severo; VERDI, Marta Inês Machado. Interdisciplinaridade e complexidade: uma construção em ciências humanas. Revista Interthesis, v. 12, n. 02, p. 14, jul./dez. 2015.

[26] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 35.

[27] MORIN, Edgar. Ob. cit., p. 69