DIAGNÓSTICO PRELIMINAR EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Carlos Roberto Claro
Espera-se, com essa nova dinâmica, que se determine o processamento da recuperação judicial em relação ao devedor que realmente cumpra todos os requisitos legais.
A lei 14.112/20 trouxe significativas alterações ao texto da lei 11.101/05, que trata da recuperação empresarial e da falência. Cinge-se o presente texto a apresentar algumas reflexões pontuais acerca do assim denominado diagnóstico preliminar em recuperação judicial, previsto a partir do art. 51-A do texto legal. O enfoque, aqui, é o zetético, com viés meramente especulativo, até porque, como consabido, a reforma da lei ainda não está em vigor e muito menos se sabe a respeito de sua real eficácia, por assim dizer, para fins colaborar com a recuperação da entidade mergulhada em crise. Portanto, não se busca o exaurimento da pesquisa científica, na medida em que provisório e passível de alteração[1].
A perícia prévia não estava prevista em lei, traduzindo-se, até então, em construção jurisprudencial, sem descuidar que o CNJ editou Recomendação neste sentido. Entrementes, no direito comparado o tema de há muito é objeto de lei. Por exemplo, em França há mecanismos jurídicos que buscam prevenir a crise (o que não se vê no sistema pátrio, com a amplitude almejada). O Code de Commerce, no procedimento de conciliação, expressamente prevê a possibilidade de nomeação de perito para que elabore relatório acerca da situação do devedor[2]. No procedimento de salvaguarda, outro instituto não incorporado ao sistema nacional, pode o Tribunal designar um juiz a fim de que busque as informações a respeito da situação do devedor, sendo que cabe assistência de especialista para tal objetivo.[3] O juiz também se poderá valer de informações colhidas de auditores, contadores e outros acerca da real situação em que se encontra o devedor, nos aspectos econômico, financeiro, patrimonial e social.
Insta salientar, por oportuno, que no sistema Francês há rígido controle quanto a nomeação e administradores judiciais, mandatários e peritos. Bem ao contrário da lei nacional, deveras simplista quanto aos critérios para nomeação, na França, para se candidatar ao cargo de administrador judicial, não basta o preenchimento de certos requisitos básicos, como no Brasil. A exigência é muito mais aprofundada, de modo que não é o simples e singelo “querer” ser administrador judicial. O direito comparado tem muito a ensinar e a contribuir, porquanto a lei nacional ainda carece de significativas, substanciais alterações no tocante ao aspecto “administrador judicial“. Acerca de tal tema de há muito se vem escrevendo. Debalde.
Prosseguindo, naquele país os especialistas em diagnósticos empresariais são nomeados pelo Tribunal para que elaborem relatório acerca da situação do devedor, nos casos de procedimento de conciliação ou de salvaguardar ou ainda em reorganização judicial e liquidação judicial. Há listas específicas, elaboradas para fins de nomeação, jamais direcionada a este ou aquele interessado. Portanto, naquele país, a nomeação decorre de lista previamente elaborada.
O sistema italiano, outro que bem poderia ter sido observado pelo legislador nacional quando da reforma de 2020, também sofreu significativas alterações, sendo que a crise empresarial e insolvência estão tratadas pelo Decreto Legislativo 14, de 12/01/19. Há o sistema de alerta e prevenção de crise (resolução assistida), isto é, caberá ao devedor mergulhado em crise, detectando os primeiros sinais de instabilidade, apresentá-los aos órgãos de controle interno e alguns credores público e empresas de auditoria. Durante o procedimento de abertura da liquidação judicial, procedimento de acordo com credores ou de homologação dos acordos que visam a reestruturação, a pedido de uma das partes, poderá o Tribunal emitir medidas cautelares, incluindo a nomeação de um custo diante da empresa ou ativos, conforme circunstâncias, para fins provisórios, visando a assegurar o cumprimento efetivo da sentença que declara a abertura de um dos procedimentos mencionados. Portanto, pode haver medidas de proteção ao devedor contra eventuais medidas incorretas e prejudiciais dos credores. Estes, por outro lado, também são protegidos contra eventuais atos perpetrados pelo devedor, atos esses prejudiciais. Em resumo, visa-se a proteção do patrimônio do devedor.
Infelizmente, a lei 11.101/05 não recebeu reforma ampla, mas é o que há no momento, para fins de tentativa de soerguimento do devedor.
No Brasil, considerando a reforma da lei, poderá ser levado a efeito o assim denominado diagnóstico preliminar (ou perícia prévia) em recuperação judicial, procedimento esse que não se traduz em novidade. De há muito escreveu o saudoso Nelson Abrão, em sua obra de fôlego[4], acerca de importante tema. Também alinhei algumas reflexões há mais de onze anos[5], de modo que somente faltava a lei, estabelecendo em casos específicos, que poderá ocorrer à perícia prévia. Portanto, a lei 11.101/05 já poderia, há mais de 15 anos, ter previsto a possiblidade de diagnóstico preliminar em determinados e específicos pedidos de reestruturação.
O texto de lei, a contar do art. 51-A, estabelece a possibilidade de ser realizada a constatação prévia em pedido de recuperação judicial, perícia prevista que não cabe ser utilizada a torto e a direito. A reforma da lei há de ser interpretada cum grano salis, até porque os dispositivos legais hão de ser interpretados sob o viés teleológico e sistemático. Entrementes, não obstante o atraso quanto à reforma, louvável a iniciativa legislativa para inserir no texto legal algo que de há muito ocorre em algumas leis avançadas.
Em resumo – acerca do importante tema haverá aprofundamento das reflexões em novos escritos – após a distribuição do pedido de recuperação judicial, poderá o juiz, caso entenda necessário, nomear perito para que leve a efeito a constatação acerca das reais condições de funcionamento da entidade em crise, bem como regularidade e completude da documentação apresentada em juízo. Como dito, o juiz poderá, e não “deverá” determinar a perícia prévia em todo pedido de recuperação judicial. O prazo para a juntada do laudo é exíguo, de apenas 5 dias. Ressalte-se, por importante, que o diagnóstico preliminar tem escopo muito certo, de forma alguma se podendo perquirir a respeito da viabilidade empresarial. O objetivo da perícia, por lei, não é este.
A perícia prévia poderá ser determinada sem a prévia ciência da entidade recuperanda, quando entender o juiz que os objetivos periciais poderão não ser exitosos. Realizado o laudo, o devedor será intimado a respeito, concomitantemente à sua intimação acerca da decisão que deferir ou indeferir o pleito, ou que determine emenda à petição inicial. Poderá ingressar com o recurso próprio.
Caso o laudo pericial constate indícios contundentes de fraude na utilização da ação de recuperação judicial, o juiz poderá indeferir o pedido. Ainda, oficiar ao Ministério Público é à medida que caberia levar a efeito, a fim de que atue, querendo. Por fim, caso a perícia verifique que o principal estabelecimento do devedor não está circunscrito à área de competência do juízo, deverá ser determinada a remessa dos autos ao competente.
Em resumo, o que se vê da reforma legislativa, no tocante ao tema específico, é que houve significativa e formidável evolução, sendo que, repita-se, a hipótese de diagnóstico prévio em se de pedido de recuperação judicial não é recente[6]. O insigne Nelson Abrão escreveu acerca da questão há mais de 35 anos e só agora houve previsão legal da possibilidade de se determinar a perícia prévia. Espera-se, com essa nova dinâmica, que se determine o processamento da recuperação judicial em relação ao devedor que realmente cumpra todos os requisitos legais.
[1] Afinal, não descrevemos a realidade, mas sim o nosso modo de ver a realidade. GRAU, EROS R. O direito posto e o direito pressuposto. 3ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 47.
[2] Article L611-6.
[3]Article L621-1.
[4] O novo direito falimentar. Nova disciplina jurídica da crise econômica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985.
[5] CLARO, Carlos R. Recuperação Judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr Editora, 2009.
[6] Como visto, importantes sistemas de insolvência de há muito observam a possibilidade de perícia prévia.