A DEVOLUÇÃO DA CRIANÇA NO PROCESSO DE ADOÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
Giullia G. R. P. da Silveira
Iasmim Brito Monteiro
INTRODUÇÃO
Este artigo possui a finalidade de analisar a responsabilização dos pais adotivos quando ocorre a devolução do filho adotado ao Estado. Sendo analisados, ainda, as consequências e os danos causados à criança.
É sabido que o Direito sofre modificações constantes de acordo com a sociedade, e um dos ramos do Direito que sofreu relevante mudança foi o Direito de Família, reconhecido atualmente como Direito das Famílias, devido à evolução do ser humano e a conquistas de direitos. Além disso, ao se tratar de adoção e responsabilidade civil, são expressos na Constituição Federal, em seu art. 227, os deveres da família, quais sejam:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Brasil, 1988)
Sendo assim, é papel dos pais, do Estado e da sociedade resguardar os direitos das crianças e dos adolescentes, sem especificar se é filho biológico ou adotivo, uma vez que, independente de qual seja, possui o direito garantido pela Constituição Federal. No entanto, mesmo sendo expressos em lei, muitos pais não cumprem com os seus deveres, tendo as crianças os seus direitos violados.
Por outro lado, aqueles que não podem ser pais e possuem esse desejo recorrem aos meios judiciais para adotar uma criança. E, mesmo com a delonga dos processos, as dificuldades para encontrar a criança desejada ocorrem em muitos casos: pais habilitados e na fase final do processo, recusam a criança por algum empecilho, após se submeterem a todo processo.
Diante disso, o presente artigo tem o intuito de demonstrar como ocorre o processo de adoção e qual é a responsabilidade dos pais que devolvem a criança nesse intervalo, uma vez que tal ato deve ser responsabilizado para que não ocorra mais, visto que são vidas de crianças em jogo e elas não devem ser tratadas como um objeto.
Por fim, o artigo é dividido em 5 tópicos que tratam sobre: O processo de adoção; Devolução da criança e do adolescente no processo de adoção; A responsabilidade civil dos pais adotivos pela “devolução” da criança; O dano moral sofrido pela criança; A indenização nos casos de desistência.
1 O PROCESSO DE ADOÇÃO
No Brasil, a adoção é prevista desde 1828, e foi regulamentada pelo Código Civil de 1916, onde foi estabelecido o procedimento de adoção. Com o passar dos anos e a evolução da sociedade, o processo de adoção sofreu algumas modificações, novos regulamentos e diretrizes, como, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a sua previsão na Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 12.010/2009, que trouxe inovações à adoção.
Segundo o doutrinador Silvio Rodrigues, “a adoção é o ato do adotante, que traz, para a sua família e na condição de filho, pessoa que lhe é estranha” (2002, p. 380).
Posto isto, afirma-se que a adoção é um procedimento legal, pelo qual uma criança ou um adolescente passa a ser considerado como filho de um casal ou uma pessoa, com os mesmos direitos que um filho biológico possui, sem ocorrer distinção entre ambos. Além de ser considerada um ato de amor, onde a afetividade é requisito básico para o processo.
1.1 Fase de habilitação
A fase de habilitação no processo de adoção é aquela em que as pessoas interessadas em adotar se cadastram e demonstram quais são as suas condições, motivações e especulações sobre o processo. Além disso, é nessa fase em que os pretendentes escolhem as características que desejam na criança que será adotada, como cor dos olhos, sexo feminino ou masculino, entre outras características.
Nesse processo, os pretendentes passam por uma análise técnica do setor de assistência judiciária, onde, por meio de um relatório, o serviço social relata se os pais se encaixam e são aptos a continuar no processo de adoção. Ademais, os pretendentes são submetidos a curso promovido pelo setor psicossocial da Varada Infância e Juventude, com mais informações sobre a adoção e o quão importante é aquele ato e o processo.
O processo ocorre e é deliberado pelo Juiz da Vara da Infância e Juventude da respectiva comarca do pretendente, acompanhado pelo Ministério Público, pelo Serviço Psicossocial e pelos respectivos advogados. Por fim, caso sejam considerados habilitados, eles devem ser cadastrados no Conselho Nacional da Adoção (CNA) e, seguindo uma ordem cronológica, aguardam até encontrarem uma criança compatível com as descrições desejadas pelo casal.
1.2 Fase provisória
Na fase provisória de adoção, a Vara da Infância e Juventude avisam aos adotantes quando existe uma criança com o perfil desejado pelo casal. Sendo assim, ambos são apresentados e, após o encontro, os interessados dirão se querem ou não seguir com o processo.
Após, ocorre um estágio de convivência monitorado pela justiça e pela equipe técnica onde será possível visitar o abrigo onde a criança está localizada.
Desse modo, o próximo passo será a guarda provisória da criança que terá validade até a conclusão do processo. Tal processo provisório é fundamental para adaptação da criança, vez que passa a morar com a família.
Ademais, visitas periódicas são feitas pela equipe técnica que colhe todas as informações importantes para apresentar uma avaliação conclusiva. Cabe ressaltar o art. 46 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que versa sobre o estágio de convivência provisório:
Art. 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso.
1º O estágio de convivência poderá ser dispensado se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da constituição do vínculo.
2º A simples guarda de fato não autoriza, por si só, a dispensa da realização do estágio de convivência.
3º Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora do
País, o estágio de convivência, cumprido no território nacional, será de, no mínimo, 30 (trinta) dias.
4º O estágio de convivência será acompanhado pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida. (Brasil 1990)
Desse modo, fica evidente a importância da fase provisória para adaptação, tanto da criança quanto dos adotantes. Por meio dessa convivência é que a equipe técnica formula uma conclusão, seguindo o processo de adoção até a fase final.
1.3 Sentença e fase definitiva
Finalizada a fase provisória, sem nenhuma pendência, o juiz proferirá a sentença, de natureza constitutiva, que produz seus efeitos a partir do trânsito em julgado dessa decisão, conforme disposto no art. 47, § 7º, do ECA.
O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão. Além disso, a inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes. O mandado judicial cancelará o registro original do adotado.
O adotante poderá levar o novo registro para ser lavrado no Cartório de
Registro Civil do respectivo município de sua residência, sendo que nenhuma observação sobre a origem do ato poderá constar nas certidões do registro. Sendo assim, a sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido de qualquer um deles, poderá determinar a modificação do prenome.
Dessa forma, após a sentença, o adotado deterá direito e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes biológicos.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que em todo o processo de adoção a legislação brasileira se preocupa com a proteção do adotado e que os direitos da criança e do adolescente sejam efetivamente respeitados.
2 A DEVOLUÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DURANTE O PROCESSO DE ADOÇÃO
O processo de adoção para muitos é a esperança de que poderão ser pais, ou, para a criança, em especial, é ter a possibilidade de ter pais. Porém, muitos pais adotivos abrem mão de realizar à tão sonhada adoção por algum motivo, circunstância ou mera conveniência.
Quando situações como essa acontecem, geralmente a criança já teve um contato com os pretendentes, passou por um processo de adaptação, ou seja, o adotado teve um contato direto, se identificou com aquelas pessoas, as conheceu e, depois de todo esse contato, descobre que não pertencerá àquela família e que precisará passar por todo o processo novamente e retornar às casas de acolhimento ou aos abrigos.
É por esse motivo que existe a fase de estágio, onde os pais adotivos conhecem a criança adotada, em um momento específico previsto para adaptação da criança e contato entre as partes, na tentativa de prevenir toda e qualquer dúvida e arrependimento. Dessa forma, na possibilidade de evitar tal situação, prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 46, caput, vejamos: “A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso” (Brasil, 1990).
É notória a cautela em que o Estado tem ao tratar de crianças e adolescentes, por esse motivo, inclusive, que o processo de adoção é demorado, justamente para não expor crianças e adolescentes em situações que irão causar maiores danos a elas, principalmente psicológico. No entanto, existem casos em que famílias negligenciam esse cuidado, vez que devolvem as crianças, por colocar nelas expectativas superiores às alcançadas, por não compreender suas histórias, seus bloqueios e suas características advindas de toda uma vivência conturbada, ocasionando “novo trauma” ao adotado, tendo em vista que, para ter o contato inicial, é necessário ter iniciado todo o processo de adoção, e muitos casos já estão com as guardas provisórias, faltando apenas finalizar o processo.
2.1 Proteção do adotando
Neste contexto, é de suma importância mencionar que todas as crianças e adolescentes sem distinção merecem proteção. Essa proteção, que já é prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), deve ser seguida à risca, tendo em vista que são direitos e garantias dessas pessoas.
Conforme ensina Barroso (2011, p. 23), “os princípios podem ser conceituados como a verdade básica e imutável de uma ciência, funcionando como pilares fundamentais da construção de todo o estudo doutrinário”. Sendo assim, os princípios que norteiam o ECA têm a responsabilidade de proteção integral ao melhor interesse da criança, além de proporcionar um estado digno de desenvolvimento.
De acordo com princípio da dignidade da pessoa humana expresso no art. 18 do ECA: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (Brasil, 1990). Desse modo, tal lei impõe à sociedade que procure respeitar e salvaguardar os direitos das crianças e dos adolescentes.
No mesmo sentido, é necessário valorar a adoção, dar a essas crianças, que já sofreram tanto com a vida, o devido respeito e dignidade. Por isso, aceitar a situação de devolução não pode se tornar algo comum, sendo essas pessoas responsabilizadas em qualquer fase do processo, não apenas quando ele é finalizado, assunto que será tratado no próximo capítulo.
3 A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS ADOTIVOS PELA “DEVOLUÇÃO” DA CRIANÇA
O tópico discutido neste capítulo é essencial para concluir a ideia do presente artigo, vez que é coerente mencionar sobre a responsabilidade civil dos pais adotivos pela “devolução” da criança no processo de adoção, sendo certo que, após a sentença não se trata de responsabilidade civil, e, sim, de abandono de incapaz, porque os pais são guardiões do menor e a sentença é um ato irrevogável. No entanto, mesmo após as sentenças, crianças que são adotadas estão sendo “devolvidas” a abrigos e casas de acolhimento, sendo muito corriqueiro.
Ressalta-se que, nesses casos, medidas são previstas e impostas aos pais.
Noutro vértice, quando a criança ou o adolescente é devolvido ainda na fase de adaptação, ou antes, da sentença, medidas não são impostas, o que deveria ocorrer, tendo em vista que os adotados são pessoas, que possuem uma história, direitos, deveres e que, além de tudo, necessitam de muito cuidado, afeto e carinho. Certeiro dizer, ainda, que as expectativas de crianças e adolescentes que vivem em casas de acolhimentos e abrigos para ter uma família/lar e serem amados são elevadíssimas, dessa forma, devendo ter o dobro de cautela com essas expectativas e possíveis frustrações.
Sabido dizer, ao ocorrer a “devolução” ou desistência do processo de adoção, que não há punição ou reparação de dano para essas crianças e esses adolescentes. Enfatiza-se que, no Direito brasileiro, utiliza-se muito do trinômio possibilidade-necessidade-proporcionalidade, principalmente nas ações que requerem a fixação de alimentos para os filhos.
Ora, operando esses princípios, e os adequando ao processo de adoção, juntamente com a responsabilidade civil desses pretendentes a pais, percebe-se que a possibilidade se enquadra no processo de adoção, enquanto a necessidade se faz presente na criança que necessita de um lar e afeto, enquanto a proporcionalidade completa esse trinômio no momento que identifica o quão necessário é a criança tendo um lar e o quanto é eficaz essa adaptação entre os pais adotantes e os filhos adotados.
Nesse viés de proporcionalidade, destaca-se que não é possível obrigar os pais a ficarem com a criança que não se adaptaram, inclusive porque a intenção do processo de adoção é beneficiar ambos os lados, devendo ser observado sempre o melhor interesse da criança.
À vista disso, acentua novamente que, ao ocorrer a “devolução” da criança sem que haja qualquer sanção, quando o processo ainda não foi finalizado, observa-se apenas um dos lados, de modo que o benefício é em prol apenas dos pais que não se adaptaram com a criança.
Isso posta, com base no princípio do melhor interesse do menor, Rodrigo da Cunha Pereira menciona: “Zelar pelo interesse do menor é cuidar da sua boa formação moral, social e psíquica. É a busca da saúde mental, a preservação da sua estrutura emocional e de seu convívio social” (2004, p. 97).
Acentua-se, ainda, que, ao propor uma indenização ou aplicar uma multa, essa deve ser em desfavor única e exclusivamente para essas crianças e esses adolescentes que estão em processos de adoções e são devolvidos. Por fim, ressalta o quanto é preciso observar a situação dessas crianças e desses adolescentes que são devolvidos, já que eles são os mais vulneráveis dessa situação, merecendo um amparo e atenção maior, devendo sempre os preservar, proteger e garantir uma vida digna, mesmo que seja em casas de acolhimento ou abrigos.
3.1 Efeitos jurídicos
Como mencionado antes, não há qualquer responsabilização dos pretendentes a pais adotivos, e isso ocorre por causa do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê um estágio de convivência, e, caso não tenha uma adaptação, ocorre a devolução ou desistência do processo. Vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INDENIZAÇÃO – DANO MATERIAL E MORAL – ADOÇÃO – DESISTÊNCIA PELOS PAIS ADOTIVOS – PRESTAÇÃO DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR – INEXISTÊNCIA – DANO MORAL NÃO CONFIGURADO – RECURSO NÃO PROVIDO – Inexiste vedação legal para que os futuros pais desistam da adoção quando estiverem com a guarda da criança. O ato de adoção somente se realiza e produz efeitos a partir da sentença judicial, conforme previsão dos arts. 47 e 199-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes da sentença, não há lei que imponha obrigação alimentar aos apelados, que não concluíram o processo de adoção da criança. A própria lei prevê a possibilidade de desistência, no decorrer do processo de adoção, ao criar a figura do estágio de convivência. Inexistindo prejuízo à integridade psicológica do indivíduo, que interfira intensamente no seu comportamento psicológico causando aflição e desequilíbrio em seu bem estar, indefere-se o pedido de indenização por danos morais. […]. (TJMG, AC 10481120002896002/MG, Câmaras Cíveis/2ª Câmara Cível, Relª Hilda Teixeira da Costa, Data de Julgamento: 12.08.2014, Data de Publicação: 25.08.2014).
Portanto, conclui-se que não é devida uma reparação ao indivíduo por ele não ter sofrido dano e sequer cumpre os requisitos para caracterizar a responsabilidade civil.
Contudo, mesmo não tendo previsão legal na legislação brasileira, deve ocorrer uma reparação de danos em casos específicos, uma vez que cada caso é um caso, cada criança ou adolescente são únicos, com bagagens, traumas e vivências diferentes. Dessa forma, não se pode generalizar todos, devendo, sim, ter uma análise específica com cada indivíduo, para averiguar se existe ou não um dano causado a ele, e, caso ocorra, responsabilizar quem deve ser responsabilizado, como, por exemplo, os pretendentes ainda no decurso do processo de adoção.
Por fim, vale ressaltar que é notório o desamparo pela legislação, principalmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), protetor dos direitos e deveres dessas pessoas, vez que elas estão sendo tratadas como objetos que por qualquer motivo de não adaptação voltam para casas de acolhimento e abrigos, por vontade própria dos “pais”.
4 O DANO MORAL SOFRIDO PELA CRIANÇA
A adoção frustrada, embora não seja muito comum, traz para a vida da criança novas marcas de abandono e desprezo em um percurso já impactado pela perda de vínculos afetivos fundamentais.
A desistência do processo de adoção implica na falta de interesse processual, além da desolação do sonho de uma criança de pertencer a uma família.
Considerando todo o trâmite do processo e a demora judicial, é inevitável que o menor desenvolva todos os dias a expectativa de fazer parte de um lar.
Nesse sentido, Maria Helena Diniz estabelece o dano moral como “a lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica, provocada pelo ato lesivo” (2003, p. 84).
Além disso, Rolf Madaleno conceitua que “nunca existiu um dano moral ou material específico do Direito de Família, mas unicamente uma regra geral que integra a Parte Geral do Código Civil, cujo instituto denominado responsabilidade civil” (2013, p. 209).
Ademais, o ECA respalda, em seus arts. 3º e 5º todos os direitos fundamentais que protegem a criança e o adolescente, sendo um deles a proibição de qualquer tipo de abandono e negligência, gerando a punição de quem assim o fizer.
Sendo assim, o art. 186 do Código de Processo Civil estabelece que “comete ato ilícito aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem” (Brasil, 2015).
Neste contexto, o dano moral é classificado com um prejuízo imaterial, no qual o que é atingido pelo ato ilícito é o psicológico da vítima, causando-lhe dor, sofrimento e angústia.
Desse modo, a criança que retorna ao abrigo depois do estágio de convivência por não satisfazer os desejos da família tem grandes chances de desenvolver sequelas psicológicas. Isso ocorre, pois o infante cria expectativas e desenvolve esperanças de ser inserido em um novo contexto familiar com uma estrutura nuclear parental. A partir do momento que a criança é devolvida, rompe todos os laços e sonhos do adotando de ser amado e incluído na vida de alguém.
Apesar de a adoção frustrada antes da sentença constitutiva não ser considerada ato ilegal por falta de previsão normativa, é considerada abandono afetivo passível de dano moral, pois priva o menor do ambiente familiar que ele já considerava ser parte, ocasionando extremos danos emocionais à criança.
A legislação brasileira é farta para garantir proteção à criança e ao adolescente. No REsp 1.159.242/SP, o STJ reconheceu o cuidado como valor jurídico, identificando o abandono afetivo como ilícito civil, a ensejar o dever de indenizar.
Dessa forma, é de extrema importância que haja o dano moral, a fim de reparar danos emocionais ocasionados pela adoção frustrada. O maior objetivo dessa reparação é conscientizar os futuros pais que a criança e o adolescente não são meros objetos que podem ser devolvidos caso não agradem aos candidatos.
4.1 Efeitos psicológicos nas crianças devolvidas
A criança que passa pelo processo de adoção já tem o emocional abalado, uma vez que ela já foi rejeitada pelos pais biológicos. O insucesso da adoção reforça esse sentimento de abandono e desprezo.
Um dos fatores que ocasiona a adoção frustrada é que tanto os pais quanto a criança vêm com experiências, trajetórias, marcas e expectativas anteriores, e isso acaba interferindo nas relações futuras. Ocorre que o novo abandono gera consequências psicológicas devastadoras à criança, interferindo em suas relações no meio social e que marcam sua personalidade.
Nesse sentido, segundo Cruz (2014, p. 20), os danos psíquicos a criança e ao adolescente que derivam do reabandono são, ainda mais, catastróficos que aqueles originados pelo abandono dos pais biológicos, uma vez que sedimenta uma imagem já construída de rejeição, inadequação e de infelicidade e não podem passar despercebidos pelo Poder Judiciário, que vem solidificando entendimento no sentido de não haver responsabilidade civil do adotante pela devolução do adotando durante o período de convivência.
Sendo assim, o infante que é devolvido acaba desenvolvendo comportamentos agressivos, dificuldade em expressar seus sentimentos, medo de abandono e negação. Além disso, a criança pode apresentar condutas antissociais e problemas na autoestima com o constante medo de não agradar os “pais”.
A devolução é uma situação extremamente complicada, para ambos os lados, pois os laços e as ligações que foram criados anteriormente são rompidos.
Os pais que idealizaram um sonho de um filho perfeito se frustram ao primeiro sinal ou à conduta negativa do infante e acabam devolvendo o menor ao abrigo.
O abandono é uma violência psicológica que deixa sequelas incuráveis na vida da criança, que pode se tornar revoltada e perder o apego a quaisquer valores.
5 A INDENIZAÇÃO NOS CASOS DE DESISTÊNCIA
O processo de adoção no Brasil é bastante complexo e passa por várias fases. O Estatuto da Criança e do Adolescente está sempre preocupado com o bem-estar das crianças e dos adolescentes, pessoas em peculiar estado de desenvolvimento. A legislação exige inúmeras formalidades para aptidão dos candidatos à adoção; entretanto, falha quando se trata da devolução no estágio de convivência.
A consequência mais grave aos pais que devolvem o menor ao abrigo é a exclusão no cadastro de adoção. Uma penalidade muita branda frente aos prejuízos ocasionados à criança.
Os pretendentes à adoção passam por um cadastro minucioso disciplinado pelo ECA, além da exigência de participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo, conforme o § 1º do art. 197 do ECA. Sendo assim, os candidatos maiores e capazes, sabendo de todas as dificuldades do processo, assumem o risco de eventuais conflitos.
Sendo a criança a maior vítima do ato inconsequente dos “pais”, que levaram o menor a um novo lar, assumindo as possíveis adversidades e o impasse que possam ocorrer na trajetória da adoção. Tal comportamento é inadmissível e deve ser passível de responsabilização na esfera civil por meio de indenização.
Nesse sentido, cabe ressaltar o julgamento do Tribunal de Justiça catarinense:
Assinala-se, por oportuno, a tomada de vulto em todo o território nacional da infeliz prática de situações idênticas ou semelhantes a que se examina neste processo, atos irresponsáveis e de puro desamor de pais adotivos que comparecem aos fóruns ou gabinetes de Promotores de Justiça para, com frieza e desumanidade, “devolver” ao Poder Público seus filhos, conferindo lhes a vil desqualificação de seres humanos para equipará-los a bens de consumo, como se fossem produtos suscetíveis de devolução ao fornecedor, por vício, defeito ou simples rejeição por arrependimento. E, o que é mais grave e reprovável, a desprezível prática da “devolução” de crianças começa a assumir contornos de normalidade, juridicidade, legitimidade e moralidade, em prol do pseudo benefício dos infantes. O Poder Judiciário há de coibir essas práticas ignóbeis e bani-las do nosso contexto sociojurídico de uma vez por todas. Para tanto, há de, exemplarmente, punir os infratores das leis civis, destituindo-os do poder familiar e condenando-os pecuniariamente pelo ilícito causador de danos imateriais a crianças e adolescentes, vítimas já marcadas pela própria existência desafortunada que se agrava com os atos irresponsáveis de seus adotantes, sem prejuízo da responsabilidade criminal de seus agentes. Frisa-se, ainda, que a inserção de crianças e adolescentes em famílias substitutivas objetivas atender primordialmente os interesses dos menores (art. 1.625, CC) e não as pretensões dos pais, mesmo que altruísticas, em que pese não raramente egoísticas. (TJSC, AC 208057/SC, 2011.020805-7, 1ª Câmara de Direito Civil, Rel. Joel Figueira Júnior, Data de Julgamento: 20.09.2011)
No caso supracitado, um casal adotou dois irmãos, mas depois solicitou a devolução de um deles, sob o argumento de que queriam apenas um filho, mas a justiça impôs que eles adotassem os dois irmãos. O Tribunal afirmou que tal conduta era desumana e de puro desamor.
O Desembargador Relator afirmou que as crianças sofreram danos psicológicos no estágio de convivência, sendo a indenização por danos morais a medida cabível. Ademais, o Tribunal ressaltou a importância de coibir a prática de “devolução”, que tem se tornado cada vez mais recorrente.
Desse modo, de acordo com os arts. 927 e 186 do Código Civil, a devolução da criança adotada gera danos irreparáveis ao menor, sendo claramente passível de indenização por dano moral. A responsabilização dos pais deve ocorrer com o objetivo de demonstrar a seriedade da adoção, visto que se trata de seres humanos com sentimentos, e não meros objetos. A indenização tem um viés muito importante, pois dissemina qualquer tipo de adoção irresponsável.
Pode haver questionamentos no que se refere à imposição de indenização no caso de desistência, seja uma barreira/empecilho à adoção. Isso só o tempo dirá. Ocorre que a proposta é mostrar a seriedade do ato de adoção, uma vez que se trata de pessoas em condição de desenvolvimento e sujeitos de direitos.
O processo de adoção no Brasil é composto por inúmeras formalidades no intuito de preservar o melhor interesse da criança. Dessa forma, os candidatos que se submetem ao processo de forma responsável e consciente não se sentirão ameaçados pela responsabilização, no caso de devolução.
A indenização não deve ser banalizada, pois se tratam de vidas humanas, sentimentos e, consequências psicológicas que serão levados por toda a vida do adotando. A imposição do instituto da reparação não tem o condão de desestimular a adoção, apenas de coibir o aumento de eventuais práticas de devolução da criança.
Ademais, no tocante ao valor da indenização, dependerá do caso concreto, devendo ser analisada a gravidade da situação, os efeitos da conduta, a condição econômica dos adotantes, o seu grau de instrução, o tempo em que a criança ou o adolescente ficou sob os cuidados dos adotantes e o grau de dano psicológico sofrido pelo infante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, conclui-se que a devolução da criança ao abrigo acontece quando as expectativas dos pais e dos filhos não são realizadas. O grande sonho dos “pais” é frustrado ao primeiro sinal de desobediência ou não adaptação da criança, que muitas das vezes seria considerado aceitável no filho biológico.
O processo de adoção no Brasil é complexo, com diversos protocolos e exigências com o fim de garantir e proteger os direitos inerentes à criança e ao adolescente. Os candidatos à adoção passam por várias etapas, incluindo a preparação psicológica, que é de extrema importância nesse processo, uma vez que as ambas as partes veem com trajetórias e bagagens anteriores.
Sendo assim, os candidatos à adoção aceitam todas as complexidades do processo e assumem o risco de eventuais conflitos ao decorrer do procedimento.
Dessa forma, ressalta-se a importância de responsabilizar os pais que “devolvem” o menor aos abrigos ou às casas de acolhimento.
Diante disso, a indenização não tem o escopo de desestimular o ato adoção, mas sim de coibir as condutas de devolução, que têm se tornado cada vez mais recorrente.
Além disso, com observância aos julgados sobre o tema, foi possível concluir que o valor da indenização dependerá do caso concreto, sendo levado em conta o dano psicológico sofrido pelo infante, o tempo em que ficou sob responsabilidade dos “‘pais”, entre outros aspectos.
A legislação brasileira se adaptou ao longo do tempo e hoje é farta em proteger essas pessoas que estão em constante desenvolvimento. Sendo assim, o principal viés da indenização é demonstrar que as crianças e os adolescentes necessitam ainda mais de proteção, pois a conduta dos “pais” de devolvê-los ao abrigo se mostra totalmente desprezível e deve ser coibida, pois gera grandes danos psicológicos à criança, interferindo no seu comportamento e impactando na sua trajetória.
A responsabilização nos casos de devolução contém o objetivo de evitar uma adoção irresponsável. Caso haja interesse dos candidatos em adotar uma criança, devem ser observadas todas as razões e circunstâncias de levar o infante a um novo lar. Ademais, necessita considerar se os adotantes podem ofertar ao adotando afeto e segurança. Desse modo, essas ponderações devem ser levadas em conta antes do ato de adoção, a fim de preservar a dignidade humana de pais e filhos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 4 mar. 2021.
______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil brasileiro. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 23 mar. 2021.
______. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil brasileiro.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 4 abr. 2021.
______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 3 mar. 2021.
______. Lei de Adoção. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre a adoção.
Diário Oficial da União, Brasília/DF, 3 ago. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L12010.htm#art>.Acesso em: 7 fev. 2021.
______. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1159242/SP, 2009/0193701-9, 3ª Turma, Relª Min. Nancy Andrighi, Publicado em: 10.05.2012.
______. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº 10481120002896002,
2ª Câmara Cível, Relª Hilda Teixeira da Costa, Publicado em: 25.08.2014.
______. Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Apelação Cível nº 208057/SC,
2011.020805-7, 1ª Câmara de Direito Civil, Rel. Joel Figueira Júnior, Publicado em: 20.09.2011.
BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
CRUZ, Sabrina D’Avila. A frustração do reabandono: uma nova ótica acerca da devolução em processos de adoção. Artigo Científico (Curso de Pós Graduação) – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014. 23 p. Disponível em: <http://www.emerj.tjtj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusão/1semestre2014/ trabalhos_12014/SabrinaDAviladaCruz.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2021.
DA CUNHA PEREIRA, Rodrigo. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Curitiba, 2002. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 51. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2013. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, v. 6, 2002.