DEVER FUNDAMENTAL DE PONDERAÇÃO NO NOVO CPC
Marília Pereira de Abreu Bastos
Carlos Henrique Bezerra Leite
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Princípios e Regras. 3 Decisionismo x Ponderação. 4 Caso Ellwanger – Colisão entre Normas. Conclusão. Referências.
1 Introdução
Estamos sob a égide do Código de Processo Civil brasileiro, Lei nº 13.105, de 15 de março de 2015, que entrou em vigor no dia 18 de março de 2016, sendo o primeiro Código de Processo Civil editado no paradigma do Estado Democrático de Direito inaugurado com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Denota-se da leitura desse novo Código que a preocupação do legislador foi a de permitir, com maior abrangência, o direito fundamental do acesso à Justiça, numa proposta altamente democrática, revelando novos mecanismos para a realização do direito de forma concreta e mais eficiente e eficaz.
Entre os novos mecanismos de acesso à Justiça está inserido o mecanismo da ponderação previsto no art. 489, § 2º, do CPC/2015, no qual está contido que o juiz, no caso de colisão entre normas, “deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na forma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão“, numa clara referência à ponderação pensada por Robert Alexy [1].
Mas o que é colisão de normas? Como ela se aplica? Pode haver colisão somente de princípios? É possível colisão de regras?
Para responder às perguntas, dividiu-se o presente artigo em cinco partes. Na primeira parte, faremos a introdução ao tema, numa abordagem demonstrativa entre a norma positivada em comento (art. 489, § 2º, do CPC/2015) e seus efeitos, apresentando o problema e os dispositivos legais para análise e sua eventual contraposição. Na segunda parte, analisaremos a diferença de princípios e regras na concepção alexyana. Na terceira parte, faremos a distinção entre o que venha a ser decisionismo e o que venha a ser ponderação de forma ampla. Na quarta parte, analisaremos o Caso Ellwanger – colisão de normas – e por fim, na quinta parte, concluiremos nosso trabalho, ou seja, responderemos à pergunta central do presente artigo.
Adotou-se o método dialético e a pesquisa bibliográfica, sendo o universo temporal da pesquisa as disposições normativas editadas depois de 05.10.88. Analisou-se apenas as questões que gravitam em torno da ponderação de normas no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no direito processual civil e no direito processual do trabalho (IN nº 39/2016 do Tribunal Superior do Trabalho – TST).
2 Princípios e Regras
A sociedade participativa em que vivemos, da era da informática e pós-guerras, fez surgir a aproximação dos direitos humanos com os direitos fundamentais.
Neste contexto, verifica-se que os direitos fundamentais e os direitos humanos estão se aproximando cada dia mais, principalmente por meio do chamado direito constitucional internacional, e com o objetivo de defender sempre a dignidade da pessoa humana, que é o que ocupa a centralidade da teoria e da prática dos direitos humanos e fundamentais.
Neste perspectiva, o art. 1º do CPC/2015 prevê que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código“.
A garantia do acesso à Justiça de cunho constitucional também se encontra agora inserido no CPC/2015, notadamente no art. 3º, que traz em si a redação do art. 5º, XXXIV, da Constituição Federal nos seguintes termos: “Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito“.
Desta forma e tendo em vista que o art. 3º do CPC/2015 não contém a expressão “direito individual“, que era adotada pela Constituição Federal de 1967, conclui-se que a pretensão do legislador foi a de conferir tal garantia jurisdicional também aos direitos difusos e coletivos.
O certo é que existe hoje em dia uma cobrança de celeridade dos processos judiciais por parte da sociedade participativa baseada no constitucionalismo e na tecnologia avançada, como se o imediatismo fosse também possível para se alterar normas de condutas que foram estipuladas há anos, sem uma mudança de paradigma. A sociedade se tornou mais participativa, em consequência da globalização, bem como da informação vinda de todos os meios de comunicação, principalmente da internet. Ao mesmo tempo, o aumento das demandas é cada vez mais evidente, o que enseja que casos difíceis e inusitados aconteçam, sendo que para a solução destes problemas e de casos difíceis, alternativas surgiram, tais como: reformas do Código de Processo Civil e criação de súmulas vinculantes, recursos repetitivos e ações coletivas, por exemplo.
Desse modo, a recém-surgida sociedade participativa, que se utiliza cada vez mais da tecnologia e que cada vez mais tem consciência de seus direitos, está exigindo um mecanismo processual sempre mais rápido, que garanta a eficácia e a eficiência da tão almejada segurança jurídica com celeridade.
Desta feita, os princípios serão premissas da justiça, enquanto que regras serão a base da segurança jurídica. Desse modo, os princípios são mandamentos de otimização, da mesma forma que as regras serão mandamentos definitivos, que, por sua vez, serão aplicados na base do dever-ser, e serão sempre produtos da ponderação de princípios. As regras têm exceção e conflitam, já os princípios colidem e são graduáveis, ou seja, possuem peso e, desta forma, podem se realizar na maior ou na menor medida possível.
Quanto à distinção entre regras e princípios, Robert Alexy [2] destaca que:
“O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo será realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.
Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.”
Ademais, as regras são bem definidas e isoladas. Todos os princípios têm a mesma hierarquia, não são isolados, pois variam de grau com outros princípios e por isso não são absolutos, embora sejam plenos e amplos. Segundo Alexy [3]:
“(…) [a] diferença entre regras e princípios mostra-se com maior clareza nos casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras. (…) Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida (…). As colisões entre princípios devem ser solucionadas na forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. (…) Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.”
Percebemos, pois, que as regras conflitam e os princípios colidem. Desta forma, quando uma regra entra em conflito com outra regra, a solução será a declaração de invalidade de uma das regras e a aplicação de outra ou, ainda, a introdução de cláusula de exceção. Diferentemente e no caso de colisão de princípios, o sopesamento se dará através de aferição de peso aos princípios. Portanto, nenhum dos princípios será considerado inválido, sendo examinado, no caso concreto, o princípio que mais resguardará o direito fundamental em questão, tendo em vista o caráter de mandados de otimização dos princípios.
3 Decisionismo x Ponderação
Extrai-se do art. 489, § 2º, do CPC/2015 que o juiz, diante da colisão de normas e não da colisão de princípios, deve se utilizar do método da ponderação para, através do referido mecanismo, encontrar a solução adequada, ressaltando-se que o Novo Código de Processo Civil deve ser interpretado com base nas normas contidas na Constituição Federal na forma preconizada no art. 1º do CPC/2015, já enfatizado.
Ademais, o art. 489, § 2º, do CPC/2015 traz a previsão da fundamentação das decisões que nada mais é do que um direito fundamental dos jurisdicionados inserido no ordenamento jurídico, sob pena de nulidade da decisão judicial, na forma do art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, bem como prevê o princípio da proporcionalidade, que também deverá ser observado, pelo julgador para proteção de direitos fundamentais, na forma do art. 8º do CPC/2015.
Entretanto, o art. 489, § 2º, do CPC/2015 tem recebido várias críticas, no sentido de que o disposto no referido artigo vai de encontro ao previsto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, bem como não se amolda às previsões dos arts. 10 e 926, todos do CPC/2015.
Quanto ao art. 489, § 2º, do Novo CPC, existe o comentário de que “um dos calcanhares de Aquiles do CPC/2015 é certamente o § 2º do art. 489” [4]. E continuam: “Esse dispositivo é sem dúvida o mais polêmico do Código” [5].
A crítica mais forte ao art. 489, § 2º, do CPC/2015 é de que a ponderação ali prevista é totalmente diferente da ponderação pensada por Robert Alexy [6], que, por sua vez, idealizou a ponderação de princípios, e não de regras, o que, segundo alguns estudiosos, contribuiu para a eventual ocorrência da escolha discricionária do julgador, sem observância aos requisitos da ponderação idealizada por Alexy e sem observância ao direito fundamental de fundamentação das decisões judiciais, prevista no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988.
Ademais, o art. 10 do CPC prevê que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisidição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício“. Desse modo, alguns doutrinadores ressaltam que a ponderação traz em si o elemento “surpresa” para as partes, o que é vedado pelo art. 10 do CPC, já elencado.
Nesta perspectiva, o art. 926 do CPC/2015 prevê que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente“. Portanto, verifica-se que o intuito do legislador foi o de proporcionar a segurança jurídica, a igualdade, a uniformização dos julgados enquanto que a ponderação está mais ligada à justiça em sentido amplo, ou seja, deve ser utilizada quando as respostas não forem fáceis de se obter, mediante as premissas regulares, o que para alguns doutrinadores pode gerar instabilidade e decisionismo.
Existe corrente doutrinária que se põe contrária ao método da ponderação, alegando que este é um modelo de decisão sem observância a preceitos legais e totalmente desprovido de requisitos, ficando a decisão sempre sujeita à discricionariedade e ao subjetivismo de quem julga, daí porque o elemento “surpresa” é sempre impugnado pelos que estão sujeitos àquela decisão.
Neste sentido, e para exemplificar, cito Lenio Luiz Streck [7], que assim se manifesta:
“O fato de o dispositivo não ter sido vetado pela Presidente não quer dizer que sua vigência implique sua validade. Tanto pode ser inquinado de inconstitucional por violação ao art. 93, IX, como pode ser fulminado por uma interpretação que envolva a totalidade do CPC, naquilo que se pode denominar interpretação sistemática. Há nítida lesão ao princípio da segurança jurídica, que é exatamente prestigiado por outros dispositivos do CPC. Outro argumento a favor da não aplicação do dispositivo é que a colisão (de – ou entre – normas) não é um conceito despido de intenções teóricas. É diferente de alguns consensos que já temos, como a garantia da não surpresa, o respeito à igualdade e a coerência que devem ter as decisões, etc. A ponderação ainda depende do esgotamento de um debate teórico, circunstância que prejudica sua colocação em um texto de lei nestes moldes. Portanto, foi um equívoco do legislador conferir status legislativo a questões polêmicas como essa (novamente, há risco de lesão à segurança jurídica).”
Em sentido oposto, existe a ponderação ou sopesamento que é um tipo de procedimento racional para decisão baseada na fundamentação, que, por sua vez, é um direito fundamental dos jurisdicionados, conforme já enfatizado.
Quanto à fundamentação da ponderação, Alexy [8] ensina que
“a fundamentação de enunciados de preferências é uma fundamentação de regras relativamente concretas, que devem ser atribuídas às disposições de direitos fundamentais. Para sua fundamentação podem ser utilizados todos os argumentos possíveis na argumentação constitucional. Mas a possibilidade de uso de argumentos semânticos fica excluída nos casos em que a própria constatação da colisão já se decide, a partir do teor literal da Constituição, acerca da aplicação das disposições constitucionais em questão. Já os demais cânones da interpretação e argumentos dogmáticos, precedentes, argumentos práticos e empíricos em geral, além de formas específicas de argumentação jurídicas, podem sempre ser utilizadas.”
Nesta perspectiva, observamos que a fundamentação da ponderação é bem mais ampla e com várias possibilidades e análise de diferentes argumentos, como meio de se encontrar a solução para casos difíceis, deixando realmente o julgador apto para interpretar a lei.
Ademais, o art. 11 do Novo Código de Processo Civil preconiza que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. Além do mais, o § 1º do art. 489 do Código de Processo Civil explicita as hipóteses em que a decisão judicial possa vir a ser considerada não fundamentada.
A Instrução Normativa nº 39/2016 do TST preceitua, em seu art. 4º, que “aplicam-se ao Processo do Trabalho as normas do CPC que regulam o princípio do contraditório, em especial os arts. 9º e 10, no que vedam a decisão surpresa“.
No § 1º do referido artigo encontra-se a definição do que é entendido como “decisão surpresa“: “Entende-se por ‘decisão surpresa’ a que, no julgamento final do mérito da causa, em qualquer grau de jurisdição, aplicar fundamento jurídico ou embasar-se em fato não submetido à audiência prévia de uma ou de ambas as partes“.
Também na referida Instrução Normativa pode-se encontrar a definição do que não se considera “decisão surpresa” quando expressamente ensina, no § 2º do art. 4º, que “não se considera ‘decisão surpresa’ a que, à luz do ordenamento jurídico nacional e dos princípios que informam o direito processual do trabalho, as partes tinham obrigação de prever, concernente às condições da ação, aos pressupostos de admissibilidade de recurso e aos pressupostos processuais, salvo disposição legal expressa em contrário“.
Neste lume, a previsão da decisão fundamentada é um grande avanço para o procedimento atual, posto que traz em si a obrigação do processo dialógico, evitando-se a decisão surpresa, pois se houve fundamentação na decisão, os jurisdicionados são capazes de entender e impugnar os argumentos trazidos para a análise judicial por eles mesmos, não sendo surpresados, o que se revela em um ideal controle da decisão judicial.
Vale ressaltar que existe distinção entre fundamentação e argumentação, apesar de serem elementos concorrentes da estrutura da decisão judicial. Eduardo José da Fonseca Costa [9] ensina que “fundamento é razão de decidir; argumento é raciocínio por força do qual, partindo-se de fundamentos fáticos e jurídicos articulados entre si, se extrai uma conclusão decisória. O primeiro é ponto de partida; o segundo, o caminho para o ponto de chegada“.
E assim deve ser, posto que os casos a serem submetidos às decisões, no mundo de hoje, devem ser objeto de análise imediata, exigindo do julgador um conhecimento técnico e geral para sua solução rápida e eficaz.
Desse modo, “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação da outra” [10]. Sendo assim, na ponderação, os princípios, no caso concreto, são analisados aferindo-se pesos que devem ser encontrados pelo julgador, através de uma fundamentação sólida e rica, capaz de não deixar dúvidas aos submetidos à decisão, inclusive para que se possa recorrer quando esta decisão não atender aos interesses do recorrente.
A fundamentação das decisões judiciais é tão importante no processo democrático que o grau de afetação de um princípio e consequente afastamento de outro deve ser minuciosamente fundamentado, levando-se em conta todos os argumentos jurídicos, pois segundo Alexy:
“Aquele que afirma que uma afetação muito intensa só pode ser justificada por meio de um grau muito alto de importância da satisfação do princípio colidente ainda não diz quando esta afetação muito intensa e quando esse alto grau de importância estão presentes. Mas ele diz o que deve ser fundamentado para se justificar o enunciado de preferência que representa o resulta do sopesamento: enunciados sobre graus de afetação e importância. Os argumentos que podem ser utilizados na fundamentação desse tipo de enunciado não são relacionados especificamente ao sopesamento. É possível levar em consideração qualquer argumento típico da argumentação jurídica“.
Desta feita, não procede o argumento de que a ponderação está caracterizada pela falta de embasamento racional, pois, embora não seja um ato de subsunção, no qual se aplica a regra em um caso concreto como se fosse um ato de encaixe, a ponderação exige uma fundamentação muito mais apurada, capaz de otimizar o problema, solucionando o conflito de interesses de forma completa e democrática.
Alexy [11] afirma que:
“Do próprio conceito de princípio decorre a constatação de que os sopesamentos não são uma questão de tudo-ou-nada, mas uma tarefa de otimização. Neste sentido, o modelo de sopesamento aqui defendido é equivalente ao assim chamado princípio da concorrência prática. Também não procedente a objeção segundo a qual não haveria um parâmetro com base no qual o sopesamento pudesse ser decidido e que, por isso, a máxima do sopesamento de interesses seria uma ‘fórmula vazia’. Ainda que o sopesamento em si não estabeleça um parâmetro com o auxílio do qual os casos possam ser decididos de forma definitiva, o modelo de sopesamento como um todo oferece um critério, ao associar a lei de colisão à teoria da argumentação jurídica racional. A lei de colisão diz o que deve ser fundamentado de forma racional. Neste sentido, não se pode dizer que ela nada diz e que é, portanto, uma fórmula vazia. A recorrente objeção do irracionalismo já foi refutada.”
Ademais, direito fundamental tem uma peculiaridade, qual seja exige para sua aplicação uma fundamentação minuciosa, capaz de sopesar outros direitos fundamentais em análise através de um debate amplo de todos os argumentos jurídicos e, dependendo do contexto em que é vivido, deve-se pesquisar se a “vítima” ou a pessoa que tem seu direito fundamental dito violado sente-se ou não ofendida. Tais argumentos também devem ser levados em conta pelo julgador em sua fundamentação. Trabalhar com direito fundamental exige vários conhecimentos. Não existe fórmula já criada. Cada decisão, mesmo nos casos de precedentes, tem particularidades. Nesta seara, Alexy [12] enfatiza que “questões de direitos fundamentais são questões normativas, e de enunciados empíricos não decorrem diretamente enunciados normativos”.
E ainda: “Uma tal resposta pode ser fornecida pelo modelo de sopesamento baseado na teoria dos princípios, na medida em que ele vincula a estrutura formal do sopesamento a uma teoria da argumentação jurídica que inclui uma teoria da argumentação prática geral” [13].
Para se alcançar uma fundamentação consistente por meio de diálogo entre os interessados deve também ser levado em conta inclusive o princípio da liberdade jurídica que também tem seu limite na norma proibitiva ou mandatória.
Vejamos:
“A liberdade jurídica – é somente disso que aqui se trata – é, na verdade, um valor dentre outros. (…) A liberdade jurídica consiste na faculdade jurídica de fazer e deixar de fazer o que se deseja. Ela é restringida por toda norma proibitiva ou mandatória. Quanto mais se ordena ou se proíbe, tanto menor é a liberdade jurídica.” [14]
Sendo assim, no ordenamento jurídico a liberdade jurídica deve ser trabalhada com o fim de otimizar os direitos fundamentais, na forma preceituada na Constituição, inclusive observando-se os limites ali inseridos.
4 Caso Ellwanger – Colisão entre Normas
A ponderação alexyana, segundo pensamento de Lenio Luiz Streck [15]:
“A Abwägung (sopesamento-ponderação), por intermédio da qual Alexy chamará de máxima da proporcionalidade, será o modo que o autor encontrará para resolver os conflitos jurídicos em que há colisão de princípios [atenção: Alexy fala de colisão de princípios e não genericamente, de normas], resultando em um procedimento compostos por três etapas: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Enquanto as duas primeiras etapas se encarregam de esclarecer as possibilidades fáticas, a última será responsável pela solução das possibilidades jurídicas do conflito, recebendo do autor o nome de Lei do Sopesamento (ou da Ponderação), que tem a seguinte redação: ‘Quanto maior for o grau de não satisfação ou afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro’.“
Lenio Luiz Streck [16] enfatiza que,
“recorrendo ao simbolismo lógico, o autor vai elaborar, então, sua ‘fórmula de peso’, uma equação que representa a máxima da proporcionalidade em sentido estrito e através dela permitir ao intérprete atribuir graus de intervenção e importância (leve, moderado ou sério-forte) a cada um dos princípios a fim de estabelecer qual prevalecerá. A resposta obtida pela ponderação resultará numa norma de direito fundamental atribuída (zugeordnete Grundrechtonorm) que, fruto da resolução dessa colisão, será uma regra aplicada subsuntivamente ao caso concreto (e que servirá para resolver também outros casos).”
Portanto, destaca-se que uma das reformas do Código de Processo Civil foi a introdução do mecanismo da ponderação entre normas, ou seja, não somente de princípios, como pensou Alexy [17], através de sua teoria de direitos fundamentais. Desta maneira, a ponderação prevista no art. 489, § 2º, do CPC/2015 é mais ampla porque abrange colisão entre regras e princípios, e não somente entre princípios.
Existem várias críticas a esse dispositivo, sob o fundamento de que o art. 489, § 2º, do Código de Processo Civil é inconstitucional.
Lenio Luiz Streck argumenta que “a ponderação é inconstitucional porque o legislador, ao estabelecer, de forma, atécnica, a ponderação de ‘norma’, ‘esqueceu’ que o direito é um sistema de regras e princípios e que, portanto, ambos são normas.”
E Eduardo José Fonseca Costa [18] defende que
“um dos calcanhares de Aquiles do CPC/2015 é certamente o § 2º do art. 489 (in litteris: ‘No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão’). O dispositivo fala em ‘colisão entre normas’, quando, na verdade, deveria falar em ‘colisão entre princípios’. Colisão só se dá entre princípios (que é espécie), não entre toda e qualquer norma (que é gênero). Afinal de contas, não há colisão entre regras. Se a regra A colide com a regra B, então uma das duas é inválida [= antinomia própria]. Em contrapartida, se o princípio X colide com o princípio Y, então será preciso proceder-se a uma concordância prática entre eles, sem que qualquer um deles seja afastado [= antinomia imprópria]. ‘Afastar’ um princípio, tal como sugere o dispositivo em análise, importa em negar-lhe a vigência (o que é um rematado absurdo!). Para realizar-se a aludida concordância, o intérprete-aplicador deverá valer-se de uma técnica de ponderação chamada ‘postulado aplicativo-normativo da proporcionalidade’. Grosso modo, o postulado visa, a um só tempo: a) a uma solução adequada à promoção desses princípios [= subpostulado da adequação]; b) a uma solução que consiga promover a todos os princípios conflitantes de modo menos restritivo a cada um deles [= subpostulado da necessidade]; c) a uma solução em que as vantagens oferecidas pela promoção dos fins justificam as desvantagens provocadas pelas restrições de alguns dos princípios em jogo[= subpostulado da proporcionalidade em sentido estrito]. Em (b), como se percebe, não existe ‘afastamento’: conquanto haja a prevalência de um princípio sobre o outro, o princípio prevalente não pode suprimir o ‘núcleo fundamental’ do princípio prevalecido. No caso paradigmático das biografias não autorizadas, por exemplo, havendo conflito entre a liberdade de expressão e a intimidade, a intimidade não é suprimida: prevalece a possibilidade de publicação dessas obras, mas ao biografado ou aos seus sucessores se resguarda pretensão indenizatória e de remoção de ilícito em caso de abusos. (…) Portanto, tendo em vista que a proporcionalidade tem assento constitucional, outra não pode ser a conclusão senão a gritante inconstitucionalidade do § 2º do art. 489 do CPC/2015.”
As críticas acima apontadas vão de encontro ao disposto no art. 489, § 2º, do CPC/2015, pois, segundo a ponderação alexyana, o sopesamento só seria possível entre princípios e não entre regras positivadas e princípios, conforme preceitua o referido artigo em questão, pois para Robert Alexy, o conflito entre regras é resolvido quando uma das regras é tida como inválida, ou por meio da cláusula de exceção, enquanto que no caso de colisão entre princípios, um dos princípios terá que ceder, mas não necessariamente será tido como inválido, pois pode ser sopesado em graus.
A ponderação foi criada com o objetivo de dirimir colisões entre normas de direitos fundamentais, ou seja, princípios. Sendo assim, este princípio de maior peso avaliado, através da ponderação e de sua otimização, bem como através de todos os argumentos possíveis, seria o precedente que seria encontrado.
Entendemos que no Estado Democrático de Direito pode existir colisão entre normas, conforme prevê o Novo CPC/2015, em seu art. 489, § 2º, na forma de colisão entre regras e princípios. É certo que o conflito entre regras deve ser resolvido entre validade ou invalidade da regra, mas se chegarmos à conclusão de que a “presunção de inocência” é uma regra porque não pode ser aplicada em graus: leve, moderado ou grave, ou seja, não existe meio inocente, poderíamos encontrar decisões cujo objeto seria a aplicação da regra (presunção de inocência) ou a exposição na mídia de uma pessoa que foi detida preventivamente ainda para averiguações em fase de inquérito (liberdade de informar através dos meios de comunicação), por exemplo.
Portanto, esta espécie de ponderação “à brasileira” é possível em um país gigante como o nosso e cheio de particularidades, daí por que é insuficiente a ponderação apenas de princípios no ordenamento jurídico brasileiro, visando à otimização da aplicação das regras e princípios, no caso concreto, buscando ao mesmo tempo justiça e segurança jurídica.
O crime de racismo foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, através do HC 82.424-2, do Rio Grande do Sul, Relator o Ministro Maurício Correia. Segundo Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira [19]:
“Os advogados de Ellwanger, um editor de Porto Alegre, impetraram esse habeas corpus, como sucedâneo recursal, em face de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, que em última instância mantinha condenação proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul por crime de racismo. Por meio desse habeas corpus, procurou-se argumentos que uma série de publicações de natureza antissemita, levadas as cabo por aquele editor, embora fossem reconhecidamente discriminatórias aos judeus, não poderiam ser considerados racistas. E, em sendo assim, por não se tratar de crime de racismo, art. 20 da Lei nº 7.716/89, na redação dada pela Lei nº 8.081/90, e Constituição da República, art. 5º, XLII, o crime já estaria prescrito, ensejando a concessão do HC.”
Configura-se, portanto, o caso acima citado de uma colisão entre regra (crime de racismo) e o princípio da liberdade de expressão, ou seja, houve uma colisão entre normas (regra e princípios), conforme previsão do art. 489, § 2º, do CPC/2015. Dessa forma, foram pesados argumentos relativos a regras (crime de racismo), bem como relativos a princípios. Seria, à primeira vista, a decisão sobre tudo ou nada, ou seja, se houve crime de racismo ou não. Foi realizado depois um sopesamento de princípios, notadamente acerca do princípio da liberdade de expressão. E o resultado procurou alcançar a Justiça.
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira [20] enfatizou:
“A questão, no caso Ellwanger, não deveria ter sido compreendida como uma colisão entre valores, em que se julga se a liberdade de expressão é melhor ou pior do que, ou para, a promoção da dignidade humana, mas, sim, julgar se houve, afinal, em face do caso concreto, crime de racismo ou não, à luz das pretensões normativas, defendidas na argumentação sustentada pelos envolvidos, e que poderiam ser reputados abusivos ou não (…). Tratava-se, assim, de crime de racismo, e não do exercício regular do direito de liberdade de expressão, justificando-se, assim, a não concessão do HC.”
Verificamos através deste julgamento acima citado que houve o afastamento de uma norma (no caso, o crime de racismo), para aplicação de outra norma (agora, princípio da liberdade de expressão), após debate e análise das premissas fáticas que são as provas que fazem parte do conjunto probatório contido nos autos, conforme expressamente previsto no art. 489, § 2º, do CPC/2015.
Conclusão
A título de conclusão, e respondendo à pergunta central deste estudo, é de se afirmar que se afigura possível a colisão entre normas, quando se analisa um problema com enfoque no direito fundamental, notadamente quando a questão é em torno da dignidade da pessoa humana, na forma preconizada no art. 489, § 2º, do Novo Código de Processo Civil, afastando-se uma regra para aplicar um princípio, eis que a regra, como resultado de princípios, pode em alguma fase, confrontar-se diretamente com algum princípio, o que deve ser ponderado e dirimido pelo julgador, analisando-se, inclusive, com base na fundamentação, a colisão entre regra e princípio, com o intuito de obter a Justiça.
O certo é que a ponderação, como a prevista no Novo Código de Processo Civil, é mais um método típico de países democráticos em que o que importa é otimizar, ou seja, realizar no caso concreto e de forma irrestrita o direito fundamental almejado, seja ele previsto na norma positivada ou em mandados de otimização (princípios), e em caso de colisão entre normas (regras e princípios), o julgador, após ouvir o debate de todos os interessados, deverá encontrar a solução da colisão entre normas, de forma racional e fundamentada, na forma preconizada no art. 489, § 2º, do Código de Processo Civil.
Em resumo, chegamos à conclusão que a ponderação, da forma como está prevista no Novo Código de Processo Civil, é uma salutar oxigenação para todo o ordenamento jurídico brasileiro, pois diante da complexidade das demandas surgidas na atual sociedade globalizada e informatizada, foi necessário o surgimento de um mecanismo apto a sopesar os princípios que surgiram em prol de permitir a satisfação dos anseios da vida moderna.
Houve, de fato, uma ampliação da ponderação pensada por Robert Alexy, já que o art. 489, § 2º, do NCPC não fala de colisão entre princípios, e sim entre normas (regras e princípios), o que, no Brasil, deve ser analisado através da fundamentação, observando-se todos os argumentos jurídicos apresentados pelos interessados e proporcionando o amplo debate visando dirimir colisão entre normas, quer seja entre regras, quer seja entre princípios, ou ainda colisão entre regras e princípios, com o objetivo único de promover a realização concreta do direito fundamental, construindo-se um novo paradigma de decisão judicial.
Referências
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ALVIM, Angélica; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo; LEITE, George (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.
NETO, Francisco; COUTINHO, Jacinto; MEZZAROBA, Orides; BRANDÃO, Paulo (Org.). Constituição e Estado Social: os obstáculos à concretização da Constituição. São Paulo: RT, 2003.
STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.
[1] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
[2] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 90-91.
[3] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 91-94.
[4] ALVIM, Angélica; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo; LEITE, George (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 595.
[5] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 688.
[6] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
[7] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 690.
[8] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 165-166.
[9] ALVIM, Angélica; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo; LEITE, George (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 595.
[10] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 167.
[11] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 173-174.
[12] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 175.
[13] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 176.
[14] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 177.
[15] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 688.
[16] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 688-689.
[17] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
[18] ALVIM, Angélica; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo; LEITE, George (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 595.
[19] NETO, Francisco; COUTINHO, Jacinto; MEZZAROBA, Orides; BRANDÃO, Paulo (Org.). Constituição e Estado Social: os obstáculos à concretização da Constituição. São Paulo: RT, 2003. p. 262.
[20] NETO, Francisco; COUTINHO, Jacinto; MEZZAROBA, Orides; BRANDÃO, Paulo (Org.). Constituição e Estado Social: os obstáculos à concretização da Constituição. São Paulo: RT, 2003. p. 264.