RKL Escritório de Advocacia

A DESERDAÇÃO EM DECORRÊNCIA DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE PELOS FILHOS FRENTE AOS GENITORES IDOSOS

A DESERDAÇÃO EM DECORRÊNCIA DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE PELOS FILHOS FRENTE AOS GENITORES IDOSOS

Joanna Cunha Machado da Rosa

1 INTRODUÇÃO

O Direito é uma ciência em constante evolução, que não se atém estritamente aos diplomas legais, mas também, observa e se modifica de acordo com as necessidades e anseios sociais. Muito se fala na proteção das relações familiares, conferindo maior importância à configuração dos laços afetivos e seus impactos no que tange o Direito de Família e o Direito das Sucessões.

Atrelado ao olhar cauteloso das relações familiares e sua afetividade, o direito brasileiro volta-se também a proteção integral e constitucional de todo indivíduo com idade igual ou superior a 60 anos. Com o advento do Estatuto do Idoso, em 1º de outubro de 2003, reforçou-se o direito personalíssimo de envelhecimento com dignidade, como já preceituava a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Todavia, em contraponto ao ideal de proteção integral do idoso, têm-se a fatídica realidade brasileira, uma vez que muitas pessoas quando chegam à velhice são abandonadas, negligenciadas e esquecidas pelos próprios filhos. De todo modo, essa situação de negligência para com quem chega à velhice fere gravemente princípios e garantias constitucionais.

Seguindo o liame de proteção ao idoso, encontra-se o Direto Sucessório voltado à tutela patrimonial, tendo por finalidade a seguridade familiar, sem olvidar do princípio da dignidade da pessoa humana.  Entre as diversas questões abrangidas pelo campo sucessório, tem-se o instituto da deserdação, exclusivo aos herdeiros necessários que por força de manifestação testamentária do autor da herança, são excluídos da linha sucessória. Assim, este dispositivo regulamentado nos arts. 1.961 a 1963 do Código Civil, somente produz efeitos após a morte do testador, com base em condutas destes herdeiros enquanto perdurou a vida do autor da herança.

A aplicação do instituto da deserdação visa evitar que herdeiros necessários que se eximiram de suas responsabilidades, após a morte de seus ascendentes, pleiteiem seu quinhão hereditário em igualdade de condições com seus irmãos que se dedicaram aos pais, proveram sustento, alimentos, dentre outras necessidades. Cumpre ressaltar que a afetividade aplicada ao âmbito familiar e sucessório não se restringe ao amor e carinho, mas sim ao cuidado e à responsabilidade impostos pelo ordenamento jurídico.

Observa-se, portanto, instrumentos jurídicos que visam evitar que interesses patrimoniais e econômicos prevaleçam sobre a afetividade e solidariedade, uma vez que a dignidade da pessoa humana e os direitos conferidos idosos devem ser preservados. Apesar de o Código Civil Brasileiro não prever de maneira expressa a deserdação em decorrência da ausência da afetividade e a incompletude do ordenamento jurídico, ou seja, o sistema não compreende nem a norma que proíbe certo comportamento nem a norma que o permite, tem-se a lacuna legal.

Nesse sentido, ainda que o diploma legal, em específico o Código Civil de 2002, traga as situações de deserdação numerus clausus, este dispositivo pode ser analisado como numerus apertus, visto que tais normas não ficam isoladas, mas tornam-se parte de um sistema, uma vez que certos princípios agem como ligações.

Diante da incidência principiológica na constituição normativa do presente ordenamento, deve-se considerar a quebra do princípio da afetividade que norteia o Direito de Família e das Sucessões, possibilitando a consideração da ausência deste princípio como causa da possível deserdação.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A afetividade à luz das relações jurídicas

O histórico das relações familiares nem sempre trouxe a afetividade como elemento constituinte do elo entre os integrantes de uma família, uma vez que o afeto está diretamente ligado ao viés subjetivo do sujeito (CALDERÓN, 2017).

Observa-se que na sociedade antiga o elo que preponderava nas relações familiares era o religioso, pois era a religião quem impunha as regras e cuidava em estabelecer vínculos entre as pessoas. Nesta época, atrelado ao poder da religião, havia, por exemplo, nas famílias romanas a figura do paters familias, que detinha e gozava de autoridade e hierarquia perante os demais integrantes do grupo familiar (CALDERÓN, 2017).

Já na Idade Média, a religião impôs ainda mais a sua força nos relacionamentos familiares, uma vez que a Igreja disseminava seus dogmas com naturalidade entre os indivíduos. Nesta época, o casamento era regrado pela Igreja e deveria seguir as regras por ela impostas. Percebe-se que nos anos seguintes pouco importou a esfera sentimental do sujeito, a Igreja diminuía os espaços privados e tudo priorizava o coletivo, o grupo ou o sagrado (CALDERÓN, 2017).

Calderón (2017) menciona que é no Século XX que a sociedade modifica seu modo de ver a família, uma vez que houve repersonalização do sujeito, bem como das ordens sociais. Neste momento, a afetividade passou a influenciar as relações familiares e os interesses individuais passaram a ser soberanos (CALDERÓN, 2017).

Para Madaleno (2019) o afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais. Atualmente, a afetividade é sobreposta aos vínculos consanguíneos, uma vez que esta decorre da liberdade que todo o indivíduo possui de afeiçoar-se pelo outro.

Ainda, Pereira (2012) entende que o direito de família, por sua própria natureza, que entrelaça comunhão de vidas e afetividade, é onde se aplica na plenitude o princípio da solidariedade, não somente materialmente, mas também afetivamente. Cumpre ressaltar, que apesar de o princípio da afetividade não se encontrar expresso no texto constitucional, encontra-se implícito como alimento agregador e inspirador da família (CARVALHO, 2018).

Dias (2010) diz que apesar de a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não dispor de maneira expressa sobre o afeto, este se encontra enlaçado em sua proteção, uma vez que ao reconhecer a união estável como modelo de família, resta também reconhecida a afetividade. Não somente no que concerne ao reconhecimento da união estável que é reconhecida a afetividade no texto constitucional, visto que a igualdade entre os filhos biológicos e socioafetivos também tem implícito a afetividade. “A afetividade invade a ciência jurídica transcendendo aos aspectos exclusivamente psicológicos e sociológicos” (PEREIRA, 2017, p. 45).

Entretanto, alguns estudiosos do Direito referem que a afetividade não seria um princípio, mas apesar de alguns posicionamentos e críticas a respeito da classificação da afetividade, não restam dúvidas que a afetividade é um princípio jurídico aplicado ao âmbito familiar (TARTUCE, 2019).

Destaca-se o entendimento exposto por Lôbo (2014) ao diferenciar a afetividade do afeto, bem como ao enquadrá-la nas relações entre pais e filhos:

A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja demor ou desafeição entre eles (Lôbo, 2014, p. 66).

Em análise a jurisprudência produzida pelo Superior Tribunal de Justiça, em sua 3ª Turma, tem-se o entendimento da Ministra Nancy Andrighi extraído Recurso Especial nº 1.026.981/RJ, qual seja:

A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes. Recurso Especial Provido” (STJ, REsp 1.026.981/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2010, DJe 23.02.2010).

Noutra perspectiva, salienta-se as graves consequências trazidas pela ausência deste princípio aos membros do grupo familiar. Ou seja, a falta da afetividade nas relações familiares, denominada pelo ordenamento pátrio de abandono afetivo, caracteriza-se pela ausência dos os inescusáveis deveres paternos, quais sejam: assistência moral, psíquica e afetiva (MADALENO, 2019).

Contudo, o abandono afetivo admite e encontra-se na modalidade inversa, em que os filhos não cumprem com seus papéis de filhos para com seus genitores idosos. Para elucidar a conceituação do referido abandono inverso, Jones Figueiredo Alves, em entrevista concedida ao Instituto Brasileiro de Direito de Família, no ano de 2013, menciona que:

Diz-se abandono afetivo inverso a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família. O vocábulo “inverso” da expressão do abandono corresponde a uma equação às avessas do binômio da relação paterno- filial, dado que ao dever de cuidado repercussivo da paternidade responsável, coincide valor jurídico idêntico atribuído aos deveres filiais, extraídos estes deveres do preceito constitucional do artigo 229 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade” (IBDFAM, 2013).

No que se refere à relação direta entre o princípio da afetividade e o princípio da solidariedade familiar, Fernandes (2015) diz que a solidariedade é tida como uma assistência mútua e cooperação entre os membros do grupo familiar. Assim, a solidariedade está diretamente atrelada ao princípio de afetividade. Isso se justifica pelo fato de que a afetividade no ordenamento jurídico não está somente atrelada ao amor ou afeto, mas também ao cuidado.

A afetividade não obriga ninguém a amar, uma vez que o amor é subjetivo e manifesta-se de diferentes formas em cada sujeito. No entanto, este princípio cumpre o dever objetivo de cuidado, como preceitua a Constituição de 1998 (CARVALHO, 2018).

Em que se pese, a importância do cuidado atrelado ao afeto, fez com que o Superior Tribunal de Justiça reconhecesse a possibilidade de dano moral em decorrência do abandono afetivo, conforme se extrai do Recurso Especial nº 1.159.242/SP, que segue:

Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.” (STJ, REsp 1.159.242/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24/04/2012).

Em seu voto ao referido julgado, a Ministra Nancy Andrighi, referiu, em suma, que “amar é faculdade, cuidar é dever” (ANDRIGHI apud CARVALHO, 2018, p. 145).

Deste modo, salienta-se que o sujeito nasce inserido no seio familiar, moldando suas potencialidades e personalidade com o objetivo de viver em sociedade e de alcançar a realização individual. A família, nesse sentido, é estrutura básica da sociedade, já que é neste seio que ocorrerá todos os fatos compreendidos desde o nascimento até o fim da vida. Também é na família que se desenvolvem aptidões e escolhas assim como a afetividade. As estruturas familiares, nesse sentido, visam atender as expectativas da sociedade, assim como as necessidades de cada um. (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

Assim sendo, a afetividade é elemento caracterizador das entidades familiares, visto que se concilia com a solidariedade com o intuito de aprimorar o desenvolvimento dos entes familiares, não sendo admitida a violação destes preceitos constitucionais (FARIAS; ROSENVALD, 2008).

2.2 O idoso frente à problemática sucessória

2.2.1 O idoso e a sua proteção integral

Nem sempre os direitos conferidos aos idosos, em especial os fundamentais, estiveram no cerne da preocupação jurídica. (MARQUES, 2013). Ocorre que, a necessidade de abordar e incluir o idoso à tutela estatal somente ocorreu com a promulgação da CR de 1934, visto que em períodos anteriores a esse, o idoso sequer possuía o simples reconhecimento como pessoa idosa e nem direitos mínimos.

Assim, em seu art. 121, §1º, alínea h, foi instituída a obrigação de previdência social do trabalhador, determinando a prestação de serviços médicos e sanitários em favor da velhice (FREITAS JUNIOR, 2015).

A terminologia pessoa idosa até o ano de 1994 não era encontrada e nem utilizada pela constituição vigente, tampouco por qualquer outro diploma legal em estava em vigor no país. Assim, no referido ano, foi instituída a Política Nacional do Idoso, através da promulgação da Lei 8.842/1994, que reconheceu o idoso como a pessoa com idade igual e superior a 60 (sessenta) anos. (FREITAS JUNIOR, 2015).

Anterior a este período, em âmbito mundial, a Organização das Nações Unidas, no ano de 1982, convocou a Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento. Nesta oportunidade, foram fixados 62 (sessenta e duas) medias para proteção da pessoa idosa, através do Plano de Ação Internacional de Viena sobre o Envelhecimento. Mas, somente no ano de 1991, foi adotado pela Assembleia Geral da ONU, princípios das Nações Unidas em favor das pessoas idosas, garantindo a estas 18 (dezoito) direitos relativos à sua independência, participação social, cuidado e dignidade (MARQUES, 2013).

Salienta-se, portanto, as disposições constitucionais nacionais de proteção ao idoso:

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas ido  sas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

  • 1º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.
  • 2º Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.

As disposições constitucionais vedam as discriminações dos indivíduos em razão de sua idade, assegurando à pessoa idosa sua especial proteção integral. Para a efetivação desta referida proteção, atribui-se a sociedade, a família e ao Estado o dever de assegurar a esse grupo a sua participação na comunidade, defesa de sua dignidade e bem-estar, bem como garantir o direito à vida, como dispõe o artigo 230 da CR (DIAS, 2010).

Na busca pela maior eficácia da proteção integral conferida ao idoso, foi promulgada a Lei 10. 741, em outubro de 2003, denominada de Estatuto do Idoso. Este diploma legal dispôs a cerca da prioridade e imediata aplicação de todos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos todas as facilidades e oportunidades, para preservação de sua saúde mental e física, bem como seu aperfeiçoamento moral, espiritual, social e intelectual, em plenas condições de dignidade e liberdade, como aduz o artigo 2º da lei (MADALENO, 2019).

A aprovação do Estatuto do Idoso se constitui em um avanço sociojurídico de grande importância na defesa dos direitos da população idosa (PAZ; GOLDMAN, 2006). Em seu art. 4º, ressaltou-se a proteção frente à violência, negligência, discriminação, crueldade e opressão, bem como o dever de todos em promover tal proteção e prevenir a violação de tais direitos conferidos.

Ainda, em análise ao que preceitua o art. 3º do referido estatuto, observa-se a primazia de responsabilidade colocada sobre a família no que tange a garantia dos direitos e garantias fundamentais da pessoa idosa. Assim, resta evidente o papel que desempenha o grupo familiar na atenção aos idosos, uma vez que o abandono por parte dos familiares constitui crime, conforme o art. 98 do Estatuto (FELIX, 2010).

Braga (2011) ressalta a importância da diferenciação das terminologias cuidado e proteção, uma vez que a primeira remete-se à família e pressupõe o carinho e o afeto. Já a segunda, liga-se diretamente ao Estado e seu dever de garantia e respeito aos direitos fundamentais da pessoa idosa.

Em que se pese a cerca da disposição do art. 4º, §1º e o art. 5º do Estatuto, observa-se a aplicabilidade do princípio da solidariedade social. Os cidadãos não possuem o dever jurídico de evitar indistintamente quaisquer atos lesivos aos interesses e direitos dos idosos, visto que estes configuram obrigações dos sujeitos considerados garantidores destes idosos, seja por força de lei, parentesco, ordem judicial, contrato ou comportamento anterior. (FREITAS JUNIOR, 2015).

Ramos (2014) ao abordar a maneira como se configuram as relações entre família e o idoso aponta a antítese presente no ambiente familiar que prega o respeito aos velhos, mas em contraponto, tenta convencê-los a ceder seu espaço aos jovens, assumindo uma posição de passividade. Ainda, constata-se o cerceamento de mobilidade e de liberdade de escolha do idoso, bem como a promoção de sua dependência e incapacidade de administrarem suas próprias vidas. O idoso muitas vezes é deixado de lado, maltratado, ou submetido à internações hospitalares. Entretanto, se este não cede à persuasão, à mentira, os familiares não hesitam em fazer o uso da força (RAMOS, 2014).

Em decorrência disso, muitos idosos são vítimas de violência e discriminação. Entretanto, resolução para estes problemas sociais e familiares são de grande complexidade, uma vez que requer a introdução definitiva da cultura dos direitos humanos em tais grupos e relações (RAMOS, 2014). Braga (2011) aduz que o respeito ao espaço individual do idoso é essencial para a preservação de sua dignidade e autonomia.

A violência sofrida pelas pessoas idosas é objeto de sanção por parte do Estado na busca de conferir maior efetividade da proteção alcançada a este idoso. Nessa perspectiva, em decorrência do advento da Lei 10.741/2003, todos os crimes contra as pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos se darão, sem exceções, por ações penais públicas incondicionadas. Assim, o legislador conferiu ao Ministério Público legitimidade parar propor a ação penal contra o agente do delito, independentemente da vontade da vítima (FREITAS JUNIOR, 2015).

2.2.2 Da correlação da sucessão com o idoso

Como já mencionado, o Direito Sucessório está diretamente atrelado ao Direito de Família e nele se refletem todos os efeitos das relações familiares. Isso se justifica pelo fato de que devem ser garantidos aos idosos, em vida, todos os meios para uma existência digna, não somente através do Estado, mas principalmente pelo grupo familiar os quais pertencem.

Há, pois, intrínseca a sociedade a ideia e preocupação com a figura do sucessor. Ou seja, a ideia de continuidade da pessoa falecida nas pessoas de seus sucessores (VENOSA, 2019).

Dentre as modalidades de sucessores têm-se a figura dos herdeiros e a dos legatários. Os herdeiros subdividem-se em legítimos (necessários e facultativos) e testamentários. Legítimos são os herdeiros que respeitam a ordem de vocação hereditária, nos moldes do art. 1.829 do Código Civil, assim como ocorre na sucessão entre companheiros de uma união estável, como disciplina o art. 1.790 do Código Civil (CAHALI; HIRONAKA, 2012).

Entretanto, para os fins deste artigo, importa a segunda modalidade sucessória admitida por nosso ordenamento jurídico, qual seja a sucessão testamentária. Esta se origina através de ato de última vontade do falecido, manifestada através de testamento, legado ou codilício. Nesta modalidade, observa-se a preponderância da autonomia privada daquele que deixou a herança (TARTUCE, 2018).

Testar, portanto, é a capacidade de “dispor, por meio de um instrumento formal, chamado testamento, de seus bens, de forma total ou parcial, após o advento da morte” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018, p. 259). Entretanto, como já mencionado anteriormente, deverá ser respeitada a legítima dos herdeiros necessários, conforme dispõe do Código Civil.

Desta maneira, Pereira (2018) menciona que o princípio da liberdade de testar, se restringe somente à metade dos haver do de cujus, ao passo que garante aos herdeiros necessários parcela dos bens indisponíveis de titularidade do autor da herança.

Já Veloso (2003) critica o dispositivo supramencionado, de modo que entende que, apesar de o legislador conferir ao testador a possibilidade de dispor de somente metade de seus bens e garantir legítima aos herdeiros necessários, este incluiu a possibilidade de dispor da referida legítima na modalidade testamentária em casos de deserdação, conforme o art. 1. 961 do Código Civil

Diante disso, o Direito Sucessório conta com o instituto da deserdação, objeto deste artigo, a ser abordado no tópico seguinte, com enfoque na possibilidade de deserdação dos herdeiros necessários em decorrência da violação ao princípio da afetividade nas relações familiares quando os genitores são idosos.

2.3 A deserdação por desamor

O Código Civil de 2002 traz a deserdação como um instituto da sucessão testamentária, muito embora apresente estreita ligação com a exclusão da sucessão por indignidade, estas não podem ser confundidas (CAHALI; HIRONAKA, 2012).

Veloso (2003) complementa que a deserdação é abordada pela sucessão testamentária apenas por mera atração formal, visto que o legislador optou pelo testamento como o único meio para perfectibilizar-la. Isto se justifica pelo fato de que tal instituto poderia ser examinado em face da sucessão legítima, uma vez que o testador pode dispor da deserdação em todas as hipóteses de incidência da indignidade (CAHALI; HIRONAKA, 2012).

Ademais, embora a natureza aproxime a deserdação da indignidade, a segunda apresenta alcance mais amplo, porquanto independe de testamento, podendo se aplicar em face de qualquer sucessor, legítimo ou testamentário (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018).

Tartuce (2018) classifica estes institutos sucessórios como penas civis, uma vez que entende que o Direito deve dispor de mecanismos coercitivos frente à maldade, a traição, a deslealdade, a quebra da confiança, o desrespeito, dentre outros comportamentos lesivos à dignidade da pessoa humana, como preleciona a CR de 1988 em seu art. 1º, III. Ainda, complementa ao mencionar que tanto o indigno quanto o ingrato devem sofrer penalizações pelo sistema jurídico, como acontece na revogação da doação em decorrência da ingratidão do donatário, nos moldes do art. 555 do Código Civil (TARTUCE, 2018).

Assim, merece destaque o rol de artigos fundamentais do instituto da deserdação posto pelo Código Civil de 2002, no que concerne a autorização dos descendentes por seus ascendentes:

Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:

I – ofensa física;

II – injúria grave;

III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;

IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.

Importa mencionar que o art. 1963 do CC também dispõe acerca das causas autorizadoras da deserdação. Entretanto, o rol é repetido do artigo anterior, alterando somente a ordem de deserdação, dos ascendentes pelos descendentes.

Observa-se, portanto, como já mencionado anteriormente por Cahali e Hironaka (2012), a deserdação pode também ser analisada frente à sucessão legítima, eis que é autorizado ao testador deserdar os herdeiros necessários nos casos elencados no art. 1.814 do CC, correspondentes ao instituto da indignidade, quais sejam:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.

Nessa perspectiva, ainda no que concerne às hipóteses elencadas pelos artigos 1.962 e 1.1963 do CC observa-se, em caráter exemplificativo, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

ação proposta pelos herdeiros instituídos da testadora, buscando comprovar as alegadas causas que motivaram a testadora a deserdar o filho adotivo. Prova existente nos autos suficiente no sentido de caracterizar conduta indigna do herdeiro deserdado. Agressões físicas pelo mesmo praticadas contra a testadora, o que configura a ocorrência da violação do disposto no artigo 1.962 do Código Civil. Contemporaneidade da escritura de deserdação com a existência de registro policial de ocorrência dos maus- tratos impostos pelo deserdado à testadora. Sentença que julgou procedente o pedido inicial, excluindo o herdeiro réu e ora apelante da sucessão de sua mãe adotiva, em perfeita harmonia com a legislação civil aplicável. Artigo 1962, I, do Código Civil (TJRJ, Apelação Cível 2009.001.05870, 13.ª Câmara Cível, Rel. Des. Sirley Abreu Biondi, j. 17.06.2009, DORJ 13.07.2009, p. 182).

Assim, o instituto da deserdação configura-se a partir declaração de última vontade do testador através de cláusula testamentária deserdatória, destinada unicamente aos herdeiros necessários, em contraponto com o instituto da indignidade que opera ex lege e abrange todas as modalidades de sucessores (CARVALHO, 2019).

Ainda, Carvalho (2019) atenta para o fato de que aos herdeiros necessários, a quem é resguardada a legítima, podem ser afastados da sucessão através da deserdação. Este serve como escudo de amor e retribuição, que também pode converter-se numa espada de vingança e ódio (VENOSA, 2019).

Gomes (2019) complementa que a deserdação é a exceção posta à regra da reserva de bens para herdeiros necessários, mas que tal faculdade imposta ao testador deve sujeitar-se a restrições, uma vez que devem ser prevenidas condutas de injustiça que aparentem indignação moral. Assim, Gomes (2019) põe que para prevenir tais condutas o legislador limitou as causas de deserdação, fez com que sejam indicados os motivos determinantes para tal privação da herança pelo herdeiro necessário, bem como com que haja a comprovação judicial a posteriori.

Oportuno retomar neste momento o rol de causas para a deserdação elencadas no art. 1.962 do CC. Tartuce (2018) salienta que o inciso IV do referido dispositivo traz como causa autorizadora da deserdação o desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. Entretanto, para o autor tal desamparo deve ser compreendido tanto no aspecto material quanto no aspecto afetivo.

Gagliano e Pamplona Filho (2018) frisam que as questões atinentes ao afeto estão cada vez mais sendo aceitas e debatidas no âmbito sucessório. Assim, merece destaque a reflexão posta pelos autores em análise ao primeiro litigio levado a Corte Superior do país:

Será que há alguma razão/justificativa para um pai deixar de dar assistência moral e afetiva a um filho? A ausência de prestação de uma assistência material seria até compreensível, se se tratasse de um pai totalmente desprovido de recursos. Mas deixar de dar amor e afeto a um filho… não há razão nenhuma capaz de explicar tal falta. O referido litígio cuidou, fundamentalmente, da seguinte discussão: se o afeto se constituiria em um dever jurídico, de forma que a negativa injustificada e desarrazoada caracterizaria um ato ilícito (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018, p. 169).

Ainda, Gagliano e Pamplona Filho (2018) mencionam que os apoiadores desta tese defendem a responsabilidade da paternidade, uma vez que a ausência de afeto e suas consequências psicológicas caracterizam um ato ilícito passível de sansão no âmbito da responsabilidade civil. Todavia, a corrente contrária a este posicionamento afirma que haveria uma monetarização do afeto, bem como o desvio de sua essência, visto que o amor deve ser espontâneo e não uma obrigação jurídica (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018).

Importa frisar, portanto, que não é o caso de obrigar alguém a amar, eis que o amor é um sentimento humano interno e incompreensível pelo ordenamento jurídico em decorrência de sua subjetividade (CARVALHO, 2018). Este posicionamento vai de encontro com o fundamento proferido pela Ministra Nancy Andrighi de que “amar é faculdade, cuidar é dever”, em seu voto no REsp 1.159.242/SP.

Ao abordar a deserdação em sua obra, ainda que em período anterior ao Código Civil de 2002, Monteiro (1995) salientou que tal instituto se justifica no carecimento de fortalecer os laços familiares, recuperar as noções de respeito, solidariedade, gratidão, bem como reprimir situações de maus instintos e principalmente a exploração entre pais e filhos.

Cumpre ressaltar nesse momento, a limitação das causas de deserdação expostas no diploma legal. Nitidamente acanhando o elenco, deixando de admitir a possibilidade de outras práticas, tão ou mais severas, levarem à exclusão do herdeiro (DIAS, 2013). Também, não basta a mera inserção no testamento da vontade de deserdar. Haverá o herdeiro de ajuizar ação de deserdação, com a citação e a produção de prova (RIZZARDO, 2014).

Nessa perspectiva, ainda que o Código Civil de 2002 traga situações expressas, numerus clausus, merece o instituto ser analisado numerus apertus, visto que a lei precisa acompanhar as mudanças sociais. Infelizmente não foi o que ocorreu com o Código Civil, que, em sede de direito sucessório, praticamente copiou o Código anterior (DIAS, 2013).

Como já mencionado em momento anterior, verificou-se que muitos idosos são vítimas de negligência por parte da prole em decorrência da ausência do princípio da afetividade nas relações entre pais e filhos. Nesse sentido Dias (2013) expõe que:

Ninguém mais dúvida que a afetividade é princípio geral do direito das famílias, com clara repercussão no campo sucessório. Assim, quando existe quebra de afeto entre herdeiros necessários, tal deveria autorizar o autor da herança a deserdá-los. É o que se chama de falta de boa-fé familiar, motivação suficiente como causa à deserdação (DIAS, 2013, p. 326).

Já Carvalho (2018) conclui que a afetividade é de natureza objetiva e que seu comportamento e a maneira como é expressa pelo indivíduo pode ser regulamentada, comprovada e analisada em juízo

Para reforçar esse o posicionamento de Dias, merece destaque a valorização jurídica do afeto, bem como sua diferenciação do amor como elemento psicológico:

Não é de (des)amor que se trata o afeto como fato jurídico, mas sim aquele que, quando exteriorizado na forma de comportamentos típicos de uma legítima convivência familiar, é capaz de gerar eficácia jurídica. Exemplo disso, a posse de estado de filho, geradora do parentesco socioafetivo entre pais e filhos.  Sendo assim, a nosso sentir, o Direito não é capaz de “enxergar” a ausência de afeto, mas é possível que, quando presente a afetividade entre certos indivíduos, condicionante de seu comportamento, caracterizando-o como tipicamente familiar aí, sim, o Direito reconheça um fato concreto, um acontecimento ao qual ele pode outorgar qualificação e disciplina jurídica: “um ponto de confluência entre a norma e a transformação da realidade: o modo pelo qual o ordenamento se concretiza”.  Por isso, não podemos falar em direito ou dever de afeto. Mas devemos valorizar as manifestações exteriores – condutas e comportamentos – que traduzam a existência do afeto em determinadas relações. (TEIXEIRA; RODRIGUES apud CARVALHO, 2018, p. 99).

O princípio da afetividade, portanto, resulta da convivência familiar, de atos exteriorizados, de condutas objetivas demonstrando o afeto familiar de seus membros na constituição e manutenção das famílias (CARVALHO, 2018).

Ao abordar o Direito e a moral em lições introdutórias ao estudo do Direito brasileiro, Miguel Reale (1974) já reconhecia o princípio da solidariedade familiar como elemento fundamental da ordem jurídica e moral, visto que tal princípio hoje está diretamente atrelado à afetividade. Em um de seus ensinamentos, Reale ressalta que os descendentes não podem faltar à assistência devida aos seus ascendentes, por motivos que não podem ser superados.

No ano de 2015 foi proposto pelo deputado federal Vicente Alves de Oliveira Júnior (PL-TO) o Projeto de Lei 3145/15, que visa alterar o art. 1.962 do CC para incluir entre o rol de causas autorizadoras da deserdação o abandono de idosos em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência e instituições similares.

O Projeto de Lei restou aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados e atualmente aguarda análise pelo Senado Federal. Em atenção à notícia veiculada, através de meios eletrônicos, pelo IBDFAM, destaca-se o posicionamento da deputada federal, relatora da CCJ, Caroline de Toni (PSL-SC) ao lembrar que o Estatuto do Idoso já considera como crime o referido abandono, objeto central do referido projeto.

Reforça-se, ainda, o viés da possibilidade da deserdação por ausência da afetividade, através do pensamento Tartuce e Simão (2007), eis que o abandono moral e afetivo pode ser mais nefasto que o material. Além de construir ato ilícito gerador da possibilidade de indenização, os referidos abandonos podem gerar a deserdação, uma vez que se trata do valor jurídico do afeto.

Diante disso, na tentativa de sanar a problemática da deserdação frente à ausência da de afetividade, deve-se considerar a incompletude do ordenamento jurídico, visto que o ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que lhe apresente (BOBBIO, 2006). Já a incompletude, ainda para Norberto Bobbio, consiste no fato que de que o sistema não compreende nem a norma que proíbe um certo comportamento, nem a norma que o permite. De fato, se se pode demonstrar que nem a proibição, nem a permissão de um certo comportamento são dedutíveis do sistema, da forma que foi colocado, é preciso dizer que sistema é incompleto e o que o ordenamento jurídico tem uma lacuna (BOBBIO, 2006, p. 115).

Não obstante, Venosa (2019) complementa ao dizer que ao legislador cabe a formulação de leis precisas, objetivas e claras. Entretanto, em decorrência de diversos fatores, tais como o despreparo para a função e interesses parajurídicos, geram leis malfeitas, imprecisas, dúbias e prolixas. A má elaboração dos dispositivos legais acarreta na incerteza e insegurança social, visto que interfere drasticamente no trabalho do aplicar e interprete legal (VENOSA, 2019).

Essa predeterminação formal, essa necessidade de certeza jurídica, para regular as ações na sociedade, vai até o ponto de exigir a constituição de um Poder do Estado, o Poder Judiciário, cuja finalidade é ditar o sentido exato das normas” (VENOSA, 2019, p. 36). Diante disso, têm-se configurada a interpretação judicial da norma. Esta é considerada a verdadeira interpretação, eis que todos os sistemas interpretativos dirigem-se por fim ao juiz, interprete da lei (VENOSA, 2019).

A atividade de interpretação conferida ao juiz baseia-se principalmente em normas redigidas e dirigidas para este interprete, visto que a principal encontra-se no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, in verbis:

Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Em atenção ao dispositivo mencionado, Venosa (2019) refere que mediante a expressa autorização da lei é dado ao intérprete o poder de voos mais altos e mergulhos mais profundos ao aplicar a norma posta, eis que de devem ser observados os fins sociais e o bem comum. Ainda, salienta-se que o interesse coletivo deve preponderar sobre os interesses individuais, uma vez que deve embasar suas decisões na realidade concreta e nas necessidades e anseios sociais (VENOSA, 2019).

Nesse sentido, no que concerne ao entendimento do Poder Judiciário, contatou-se que apesar de os Tribunais Superiores mostrarem-se relutantes quanto à análise do art. 1962 do CC como numerus apertus e defenderem a taxatividade quando há exclusão dos herdeiros necessários da sucessão, verificou-se que alguns tribunais reconhecem a necessidade de adequação da norma civil, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em consonância às disposições da CR, in verbis:

DIREITO DAS SUCESSÕES. INDIGNIDADE. Pretendida exclusão de beneficiário de plano de pecúlio, condenado no âmbito criminal por lesão corporal seguida de morte e ocultação de cadáver. Possibilidade de aplicação do instituto da indignidade em outros campos fora da herança. Incidência do artigo 1.595 do Código Civil de 1916, vigente à época da morte. Rol que não é taxativo. Casos de indignidade que consagram uma tipicidade delimitativa, a comportar analogia limitada. Falta de idoneidade moral do algoz para ser contemplado pelos bens deixados pela vítima. Interpretação teleológica. Enquadramento no espectro finalístico da norma jurídica em análise. Indignidade reconhecida. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível nº 9215521- 04.2007.8.26.0000, 6ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator Desembargador Paulo Alcides, Julgado em 21/08/2013).

No julgado em tela, destaca-se o entendimento do relator ao afirmar que as hipóteses de exclusão da sucessão por indignidade não são taxativas e ainda reconheceu como causa da indignidade conduta não prevista no art. 1.814 do CC.

2.4 A boa-fé e o abuso de direito em face aos idosos sob a perspectiva da afetividade.

No que concerne à boa-fé objetiva, Rosenvald (2007) diz que ela compreende um modelo de eticização de conduta social, diretamente caracterizado pela condutas individuais com determinados padrões sociais honestidade, correção e lisura. Ou seja, a boa-fé objetiva “representa uma evolução do conceito de boa-fé, que saiu do plano da mera intenção – boa-fé subjetiva -, para o plano da conduta de lealdade das partes” (TARTUCE, 2019).

Miguel Reale (2003) refere que a boa-fé objetiva é sinônima de honestidade pública, eis que impõe o dever de cada pessoa ajustar suas condutas para que seja uma pessoa honesta, proba e leal. O princípio da boa-fé objetiva cada vez mais ocupa espaço nas discussões referentes às relações familiares e sucessórias, uma vez que este princípio assume atualmente uma posição paradigmática, no diz respeito à regulação de condutas nas relações intersubjetivas (FERNANDES, 2015).

Em análise a jurisprudência produzida pelo Superior Tribunal de Justiça, em sua 3ª Turma, tem-se o entendimento da Ministra Nancy Andrighi conforme se extrai do Recurso Especial nº 1.087.163/RJ, qual seja:

Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos consolidados. (STJ, REsp 1.087.163/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.08.2011, DJe 31.08.2011).

Desta maneira, como expôs a Ministra Nancy Andrighi, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado através do venire contra factum proprium, exigindo a devida coerência comportamental das partes litigantes que recorreram à tutela jurisdicional para dirimir seus conflitos familiares.

Assim sendo, a boa-fé objetiva aplicada as relações familiares “é a ética exigida nos comportamentos humanos, inclusive familiares, fazendo com que a confiança existente em tais núcleos seja o refúgio das garantias fundamentais reconhecidas a cada um dos cidadãos” (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 72).

Diante disso, observa-se o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

No âmbito do Direito das Famílias, incide o princípio da boa-fé objetiva e vedação do venire contra factum proprium na qual se espera, legitimamente, uma conduta de reciprocidade entre seus integrantes, mormente, entre pais e filhos. (Apelação Cível Nº 70076609650, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 28/06/2018).

Ementa: AÇÃO ORDINÁRIA DE DESERDAÇÃO. TENDO A FALECIDA EXARADO EM TESTAMENTO A FIRME DISPOSIÇÃO DE DESERDAR A FILHA E AS NETAS, POR OFENSA MORAL, INJURIA E DESAMPARO NA VELHICE E, HAVENDO COMPROVAÇÃO DESTES FATOS, HA QUE SER MANTIDA A ULTIMA VONTADE DA TESTADORA. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70002568863, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 31/05/2001)

Em análise aos julgados em tela, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entende que deve haver a preponderância do princípio da boa-fé familiar, bem como o da afetividade, uma vez que comprovadas suas ausências nas relações familiares autorizam a deserdação dos herdeiros necessários.

 

3 CONCLUSÃO

No decorrer deste artigo, verificou-se a constante evolução do Direito de Família, em especial após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, popularmente conhecida como Constituição Cidadã por configurar um marco histórico e fundamental aos direitos dos cidadãos brasileiros.

Entretanto, observou-se que, ao passo em que o direito de Família teve sua ascensão, o ramo sucessório não prosperou na mesma intensidade.

A afetividade, nem sempre reconhecida no âmbito familiar, passou a ser discutida no Século XX em decorrência da modernidade e da repersonalização do sujeito. Apesar deste princípio não estar expressamente escrito no texto constitucional, este se faz presente de maneira implícita e é considerado pela doutrina majoritária como fundamental às relações familiares.

De todo modo, mesmo havendo discordâncias quanto a sua classificação como princípio, não restam dúvidas de que a afetividade está presente nos seios familiares e é capaz de produzir efeitos. Nesse sentido, pode-se constatar que os Tribunais Superiores são pacíficos em considerar e valorar os vínculos afetivos.

Importa, portanto, atentar para as consequências negativas trazidas pela ausência de afeto nas relações dos grupos familiares, intitulado pelos autores de abandono afetivo e caracterizado pela ausência de deveres inescusáveis, quais sejam: assistência moral, psíquica e afetiva. O abandono afetivo inverso é uma modalidade de abandono afetivo praticado pelos filhos em face aos seus genitores, em regra idosos. Esta modalidade é uma afronta à disposição constitucional do art. 229 da CR de 1988, que preceitua o dever imposto aos filhos de ajudar em amparar os pais na velhice, carência e enfermidade.

A afetividade é muito mais do que o simples amar, ela diz respeito também ao cuidado para com o outro. A força deste princípio não obriga ninguém a amar eis que o sentir é subjetivo e individual. Entretanto, como mencionado pela Ministra Nancy Andrighi, em seu voto no Recurso Especial 1.159.242/SP, “amar é faculdade, cuidar é dever”.

Não menos importante, destaca-se o princípio da proteção integral conferido ao idoso, com fulcro nos arts. 229 e 230 da CR, bem como através da tutela conferida pelo Estatuto do Idoso. No que concerne ao Estatuto do Idoso, merece observância a proteção frente à violência, negligência, discriminação, crueldade e opressão.

Ainda, salienta-se a primazia da responsabilidade colocada sobre o grupo familiar para assegurar direitos e garantias fundamentais da pessoa idosa.  Observa-se, portanto, que muitos idosos são negligenciados em vida por seus filhos e estes, após a morte dos genitores, pleiteiam em igualdade seus quinhões hereditários com outros herdeiros que zelaram e respeitaram os pais em vida. Diante disso, fez-se necessária a análise da deserdação frente à ausência da afetividade dos herdeiros necessários para com seus genitores idosos.

Dessa forma, verifica-se a incidência da solidariedade familiar e da boa-fé nas relações familiares, visto que condutas negativas por parte do herdeiro é causa e motivo para sua exclusão da sucessão. Isto resta viabilizado através da interpretação numerus apertus do art. 1962 do CC, ao invés da aplicação numerus clausus, eis que o dispositivo não elenca de maneira taxativa as causas autorizadoras da deserdação.  Deve-se atentar para o disposto no art. 5º, XXX, que dispõem a respeito do direito constitucional de herança, e remete a observância de deveres oriundos do art. 229 da CF.

Assim sendo, a simples inobservância dos deveres familiares conferidos ao herdeiro necessário restaria como causa autorizadora da deserdação.  Sob o viés interpretativo da norma, frisa-se também a importância de um papel ativo por parte do Poder Judiciário em sanar estas lacunas e controvérsias normativas, como procedeu, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao reconhecer a necessidade de adequação da norma civil.

Além do mais, o Projeto de Lei 3.145/15 mostra-se como um grande avanço normativo para combater o abuso de herdeiros necessários para com seus genitores idosos, eis que visa incluir ao rol de causas elencadas no art. 1962 do CC o abandono de idosos em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência e instituições similares.

Feitas tais considerações, conclui-se que há muito que se pensar e modificar em relação às causas autorizadoras da deserdação, especialmente no que se refere ao abandono afetivo inverso sofrido por idosos, eis que se observa uma grande insegurança jurídica no âmbito sucessório.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 1934.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1998. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 1998.

BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 1916.

BRASIL, Lei nº 8.842/1994, de 04 de janeiro de 1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 04 set. 1994.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 10 jan. 2002.

BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 1º out. 2003.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

BRAGA, Pérola Melissa Viana. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011.

CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

CALDERÓN, Ricardo. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famílias. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2019.

CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica, de 1969.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

FARIAS, Cristiano Chaves de; Rosenvald, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

FELIX, Renan Paes. Estatuto do idoso. Salvador: Edições JusPODIVM, 2010.

FERNANDES, Alexandre Cortez. Direito civil: direito de família. Caxias do Sul, RS: Educs, 2015.

FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Direitos e garantias do idoso. São Paulo: Atlas, 2015.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2013.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2018.

GOMES, Orlando. Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2014.

MADALENO, Rolf. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

MARQUES, Ivan Luís. Direitos difusos e coletivos V: idosos e portadores de deficiência. São Paulo: Saraiva, 2013.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 1995.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018.

PEREIRA, Rodrigo Cunha. Direito de Família. São Paulo: Forense, 2012.

PROJETO DE LEI 3145/2015. Disponível em: .

RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Curso de Direito do Idoso. São Paulo: Saraiva, 2014.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Bushatsky, 1974.

REALE, Miguel. A boa-fé no código civil: 2003. São Paulo.

ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo, Saraiva, 2007.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. Rio de Janeiro: Foresense, 2019.

TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 6: direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: família e sucessões. São Paulo: Atlas, 2019.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2019.

VELOSO, Zeno. Comentários ao código civil, v: 21. São Paulo: Saraiva, 2003.