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DANOS EXISTENCIAIS EM DIREITO DE FAMÍLIA

DANOS EXISTENCIAIS EM DIREITO DE FAMÍLIA

Jones Figueirêdo Alves

 

Somente bem compreendendo a pessoa, em todas as moradas do seu ser; será possível distinguir a diversa e complexa gama de danos que ela pode sofrer sua diversidade e as consequências que representam para a sua vida.

Suas perdas significativas (v.g. visão, audição, mobilidade, aptidões) e suas incapacidades (v.g. impossibilidade de procriação, insegurança psicológica), alcançam a dimensão de danos existenciais, como novas situações suscetíveis de indenização, em ordem da reparabilidade segura e adequada.

A esse respeito, proclamam-se, de saída, as insuficiências das espécies tradicionais de ilicitudes para a responsabilidade civil, no seu âmbito circunscrito, impondo ao jurista evidenciar as novas espécies de ilícito civil. Inconfundíveis em seus tipos de intencionalidades e por danos concretos pessoais ou coletivos.

Diante do paradigma da atipicidade das modalidades de dano e em superação dual das clássicas modalidades de dano material e dano moral, há de se reconhecer, portanto, não obstante ausentes as previsões legais, novos danos na pós-modernidade, “para um direito mais efetivo e protetor das vítimas”, [1] como os danos hedônicos, os da perda da capacidade de desfrutar os prazeres da vida por modificação da estrutura da vida da pessoa; enfim os danos existenciais como uma categoria autônoma.

Considerando-se a afetação os direitos de personalidade, com perturbação aos “hábitos de vida” e da “maneira de viver socialmente”, os danos existenciais obtiveram a sua matriz doutrinária, há exatos trinta anos, quando em 1993 os juristas italianos Paolo Cendon[2] e Patrízia Ziviz, empregaram, pela vez primeira, a expressão “danno esistenziale“. Dez anos depois, eles escreveram juntos a obra “Il risarcimento del danno esistenziale“, com os comentários da então recente orientação expressa pela Corte de Cassação (31/5/2003; Decisões ns. 8827/8828). Mais diante, Paolo Cendon cuida dos danos existenciais em seu “Trattato dei nuovi danni” (2011) [3].

Segue-se do mesmo país de sua gênese, uma das melhores conceituações do dano existencial, quando o jurista Cesare Massimo Bianca, (falecido há exatos três anos) o denomina como o “dano relativo à deterioração da qualidade de vida” (2014).

É dentro desse elemento caracterizador que importa, para efeito de indenizabilidade, perscrutar o dano existencial em sua “natureza onicompreensiva”, ou seja, em adequada apuração de todas as consequências que derivam do evento danoso, objetivamente verificável.

Em nossos países, a doutrina do dano existencial tem suas bases pioneiras no artigo de Almeida Neto, “Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana” (2005) [4] e na obra de Flaviana Rampazzo Soares, “Responsabilidade Civil por Dano Existencial” (2009).

Na obra, elaborou-se um primeiro conceito:

Lesão ao complexo de relações que auxiliam no desenvolvimento normal da personalidade do sujeito, abrangendo a ordem pessoal ou a ordem social. É uma afetação negativa, total ou parcial, permanente ou temporária, seja a uma atividade ou a um conjunto de atividades que a vítima do dano, normalmente, tinha como incorporado ao seu cotidiano e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar em sua forma de realização, ou mesmo suprimir de sua rotina.”

Lado outro, cabe enfatizar um exercício jurisdicional que exerça uma função lógico-preventiva do dano existencial.

O recente caso “Sonia Maria de Jesus”, quando supostamente mantida em trabalho análogo à escravidão, fora resgatada pelo MPT (3/6), do lar onde morava desde a infância, bem demonstra essa função.

Em brilhante decisão, o ministro Mauro Campbell (STJ) defendeu competir a ela, “enquanto pessoa maior e capaz, e não ao Estado, a atribuição da melhor escolha de vida”, optando em deixar de conviver com o casal ou retornar ao lar onde morava. Sonia tomou a decisão de voltar a morar (6/9/23), na casa de sua família socioafetiva, quando, ao depois, o ministro André Mendonça (STF) proferiu o mesmo sufrágio da sua vontade inequívoca. Ora, essas decisões judiciais revelam o quanto se evitou o gravame de um sério dano existencial para uma pessoa semi-idosa, surda e desprovida de recursos de subsistência.

Assim, as atuais mudanças comportamentais que surpreendem, mais e mais, o relacionamento da humanidade consegue mesmo e sobremodo, dentro da família, e que comprometem o desenvolvimento saudável da pessoa, prognosticam um futuro do direito que exigirá a mais aprofundada percepção jurídica da responsabilidade civil pós-moderna.

Há um cotidiano agônico, configurado na supremacia da individualidade, nos propósitos do controle de pessoas, na precisão dominante dos sistemas algorítmicos, na frequente lesão a direitos e nesse tema, a responsabilidade civil defronta-se com os danos existenciais em diversas esferas da realidade.

Elencar alguns ilícitos civis, de partida, dentro dessas relações, sugere a doutrina do dano existencial como uma categoria autônoma.

À semelhança do que sucede com o dano estético [5], o dano existencial também merecia autonomia em relação ao dano moral. Seria um novo tipo de dano imaterial, justificando, portanto, uma reparação diferenciada em relação ao dano moral. Aliás, a Súmula 387 do Superior Tribunal de Justiça, diante da exata distinção dos danos, estabeleceu: “É lícita à cumulação das indenizações de dano estético e dano moral.”

Nesse efeito, o dano existencial poderia ser cumulado com o dano moral, como fórmula da reparação mais adequada e objetiva no plano indenizatório.

Bem ensaia a doutrina:

A pessoa que se tornou sexualmente impotente com a lesão faria jus a uma verba a título de dano moral pela agressão ao direito da personalidade aqui exemplificado no dano ao corpo, além de um valor fixado pelo dano existencial de não poder mais manter as relações sexuais com o cônjuge.” [6]

No ponto, Marco Aurélio Bezerra de Melo (TJ-RJ), defende a autonomia do dano à vida de relação em artigo “Dano existencial na responsabilidade civil“. (5/2/2016) [7].

Diante das múltiplas ocorrências de ilícitos de comportamento, impende o trato dos danos existenciais frente às relações familiares, em abreviado rol de situações de ilicitude civil, com a realocação do debate, para creditar à responsabilidade civil, por seus elevados valores social, uma agenda preventivo-corretiva.

Vejamos, a seguir:

Danos existenciais familiares

Ghosthing. O mestre de cerimônias, em tom grave, reunido ao casal, um japonês e sua esposa, pede-lhes que, com uma martelada, quebrem a alianças. Desse modo, inicia-se a cerimônia nipônica da separação, onde o encarregado dos divórcios organiza o ritual pelo qual os divorciandos com a quebra das alianças exprimem seu desamor antes de se separarem.

De evidente, o paradigma do desamor é uma realidade antes vivenciada, no que importa a quebra da união existencial do casal, certo que o rompimento das relações opera-se em um determinado curso temporal, como uma morte anunciada, sem surpresas, sem perplexidades.

De efeito, impõe-se, por inafastável atitude ética, um comportamento juridicamente relevante, o de o(a) parceiro(a) — ao invés de um abandono súbito, não anunciado, feito ao apagar das luzes, se subtraindo, de repente e às pressas, da vida do outro — vir honestamente, anunciar a ruptura.

Em contrário, o ato contendo a particularidade da ruptura por aquele(a) que, em evidente abuso de direito, rompe a união através de uma sombria e súbita deserção, tenha-se o “pronto abandono” como fato que acarreta considerável dano existencial, mesmo que o dano à relação de vida seja temporário.

O término repentino de um relacionamento afetivo, “sem quaisquer explicações ou aviso”, mereceu o termo ghosting, alusivo à prática de quem desaparece do relacionamento como que fantasmagoricamente. Com seu emprego mais usual a partir de 2015, notadamente adotado nas mídias sociais, o termo resultou incluído, naquele ano, no Collins English Dictionary.

O sentimento de rejeição sem a explicação adequada, extraído da ruptura inopinada, acarreta um dano moral e psicológico a quem se coloca em posição passiva do abandono abrupto, o “ghostee”; suscetível, portanto, de aplicação do artigo 186 do Código Civil.

A jurisprudência tem sedimentado a hipótese indenizável: “Com o término da relação afetiva que tenha ocorrido de forma anormal, abusiva, humilhante, expondo a pessoa à situação vexatória, admite-se o rompimento indenizável“. (TJ-MG – 9ª Câm. Cível, Apel. 1.0287.07.033666-7/0001, Rel. Des. José Arthur Filho, 2015).

Gaslighting. Como técnica de relacionamento abusivo, o ilícito se apresenta pela prática contumaz do esvaziamento da personalidade do outro, cônjuge ou convivente, pelo exercício da manipulação daquela que se apresenta como a pessoa dominadora.

Cuida-se de uma forma de abuso psicológico em que informações são omitidas, distorcidas ou inventadas para fazer a vítima duvidar de seus sentimentos, de suas percepções e, em alguns casos, até de sua sanidade.

O termo tem origem nos filmes “Gaslight” (“À Meia-Luz”), de 1940 (inglês) e de 1944 (norte-americano), onde, nesse último, o personagem Paula Alquist sofre a manipulação do marido, sob técnicas que objetivam a quebra da sua autoestima e de sua segurança psicológica. A construção de uma versão distorcida da realidade colima garantir a manipulação desejada a desestabilizar a vítima a partir do plano psicológico e emocional.

É a teoria hipócrita, tratada em recente estudo de Houlou-Garcia e Thierre Maugenest, “Une histoire de la manipulation par les chifrres de l´Antiquité à nos jours” (Paris: Éditions j’ai lu; 2022)

O ilícito tem sido recorrente nos episódios de violência doméstica, abrangendo, inclusive, as relações paterno-filiais; além de esferas outras, como nas relações de trabalho e está a merecer um repertório jurisprudencial mais específico.

Paternidade sonegada ou retida. A paternidade sonegada é o ato pelo qual subtrai a mãe o direito de o outro genitor exercê-la e, no caso, poder reconhecê-la, à simples conta de sua insciência da paternidade sobre o filho desconhecido.

A doutrina do ilícito da espécie, que configura grave dano existencial, contra o pai e, também, vitimizando o próprio filho, foi construída, em 2002, pela obra do jurista paraense Inácio Carvalho Neto.

Afirma o doutrinador: “A ocultação ao pai, pela genitora da criança, do nascimento, ou mesmo a ocultação do fato de ser ele o pai da criança, gera para este um dano moral irreversível, que também é indenizável[8].

Por evidente, a negação da paternidade, ausente a revelação da origem biológica, importa em danos existenciais suscetíveis de reparação civil.

Stalking. O assédio por intrusão ou perseguição obsessivo-insidiosa é conduta de importunação, agora criminalizada pela Lei n.14.132/2021 (artigo 147-A, CP: “ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica”).

Prática recorrente em situações mal resolvidas no desfazimento de uniões amorosas, como comportamento doloso e habitual, colocando em risco a vítima da ilicitude, por ruptura da regularidade emocional, o ato foi combatido com êxito na Dinamarca. Ali o ilícito foi incluído no Código Penal de 1930, já tratado no projeto de 1912.

Exige-se uma proteção eficiente do Estado, que impeça danos existenciais significativos. De tal sentir, uma proteção deficiente da Croácia rendeu indenização determinada pela Corte Europeia Dir. Humanos (j. 14.01.2011, Aplicação 55.164/08, artigo 34 da Convenção).[9]

Nesse desiderato protetivo e inibitório de danos anotam-se que medidas protetivas da Lei Maria da Penha já foram estabelecidas em ação cível, mesmo sem a existência de inquérito ou processo penal contra o agressor, conforme decisão paradigma do min. Luís Felipe Salomão (STJ — RESp. 1.419/421, j. em 11/2/2014).

Frustração de êxito. O dano de frustração de êxito de vida caracteriza-se quando a ruptura da união do casal faz provocar um dano existencial, surgido pela dissociação de um projeto de vida em favor de um casamento que se pretendia exitoso. Depois de muitos anos, o casamento fracassa e o dano da frustração evidencia-se.

A indenização terá por base os termos gerais da responsabilidade civil, não se confundindo com os alimentos compensatórios. O tema exige amplitude em artigo seguinte.

 

Conclusões

Mesmo que os danos existenciais sejam fundados em uma matriz consequencialista, por envolver interesses heterogêneos da pessoa, perdura uma exigência de proteção jurídica. Defende-se uma reparação integral do dano injusto por maneira mais justa possível.

Merece, ainda, refletirmos sobre os danos hedônicos, a violação ao direito à felicidade por frustração às expectativas da pessoa para o futuro e o próprio dano ao projeto de vida, no melhor feitio da doutrina do peruano Carlos Fernández Sessarego (PERU).

Mais ainda: danos existenciais incidentes no Abandono Afetivo (REsp. nº 1.159.242), no Abandono Afetivo Inverso e nos advenientes da Alienação Parental.

Pontifica-se o preceito de justiça protetiva para os danos existenciais em família, diante do princípio neninem laedere (“a ninguém é lícito causar lesão ao direito de outrem”) — artigo 186, CC.

 

[1] BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas (Org.). Novos Danos na pós-modernidade. Apresentação de Cláudia Lima Marques. São aulo: D´Plácido, 2021. Na obra coletiva, Flaviana Rampazzo, Andrea Cristina Zanetti, Fernanda Tartuce e Karen Rosendo Leite subscrevem artigos tratando topicamente do Dano Existencial e Dóris Ghilardi acerca do Dano Afetivo.

[2] CENDON, Paulo. ZIVIC, Patrizia. “Il risarcimento del danno esistenziale. Con il commento dei più recenti orientamenti espressi dalla Cassazione”. Coleção “Fatto e Diritto”. Roma; Ed. Giufreè, 2003, 422 p.

[3] CENDON, Paolo. “Trattato dei nuovi danni”, em seis volumes. Padova (IT): Cedam, 2011. Ele examina ao longo de sua importante e pioneira obra as neofiguras de tutela ressarcitória em face dos novos danos, a exemplo do dano existencial.

[4] ALMEIDA NETO, Manoel Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Privado, vol. 24;2005, pp. 21-53;

[5] SOARES, Flaviana Rampazo. Responsabilidade Civil por Dano Existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

[6] MAGALHÃES, Teresa Ancona Lopes de. O Dano Estético (Responsabilidade Civil). São Paulo: RT, 1980, 123 p. Obra precursora no tema.

[7] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Dano existencial na responsabilidade civil. Web: http://genjuridico.com.br/2016/02/05/o-dano-existencial-na-responsabilidade-civil/

[8] ALVES, Jones Figueirêdo. “A ilicitude civil do Ghosting, pelo rompimento abrupto das relações”. Consultor Jurídico, 18.12.2022. No referido artigo, tratamos desse tema, pela primeira vez, em 2022. O presente item contém trechos do reportado artigo. Web: https://www.conjur.com.br/2022-dez-18/processo-familiar-ilicitude-civil-doghostingpelo-rompimento-abrupto-relacoes

[9]  NETO, Inácio de Carvalho; “Responsabilidade Civil no Direito de Família”, Curitiba: Editora Juruá, 2002, p. 532.