DA DIFÍCIL ARTE DE CONCILIAR SEM ESTRUTURA
Clito Fornaciari Júnior
Já completou o novo Código de Processo Civil um ano de vigência e a conciliação e a mediação, que se apresentaram como grandes inovações, objetivando uma mudança cultural (cf. SANTOS, Juliana Vieira dos. Código de Processo Civil anotado. AASP, OAB/PR, 2016. p. 489), não saíram do lugar, sendo difícil se acreditar possam um dia aliviar a sobrecarga do Judiciário.
Em termos de estrutura, conciliadores e mediadores tornaram-se auxiliares da Justiça (arts. 165 e ss.), definindo-se as atribuições de cada qual, considerando a relação anterior entre as partes agora em contenda. Foi prevista a criação de “centros judiciários de solução consensual de conflitos“, aos quais ficariam afeita não só a realização de audiências e sessões, mas também o desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. Sabe-se que há trabalho neste sentido, bem como têm sido criados os tais centros (Cejusc), mas, na prática, eles ainda vivem da adesão de voluntários, que foram estimulados pela realização de cursos, inclusive ministrados por órgãos ligados à Advocacia, que procuraram incutir a intenção e a ideia de que é melhor um mau acordo do que uma boa demanda. A estrutura, porém, já é um dos problemas do funcionamento dessa atividade.
Evidente que, por estar relacionada à Justiça, um expressivo número de advogados dispõe-se a exercer a atividade de conciliador, sem qualquer remuneração, mas tanto acarreta consequências não corretamente dimensionadas e resolvidas pela própria legislação que do tema cuida. Proclama-se, nesse sentido, o impedimento do advogado para atuar em prol ou contra as pessoas que tentou conciliar, como também se proíbe sua Advocacia no Juízo e Vara em que atuou como conciliador. Trata-se a questão como simples impedimento. O caso, no entanto, é de incompatibilidade (Capítulo VII da Lei nº 8.906/1994), importando ela na proibição total do exercício da Advocacia, ou seja, perante todo e qualquer Juízo e instância, em todos os segmentos da Justiça. Isso decorre do art. 28, que prevê haver incompatibilidade a partir dessa atuação, dado que o conciliador, embora não ocupe cargo público, exerce, pouco importa se remunerado ou não, função pública, que se vincula diretamente ao Judiciário. Integra, pois, o Poder Judiciário, tanto que colocado expressamente na Lei nº 9.099/1995 (art. 7º) e no Código de Processo Civil (art. 149) como auxiliar da justiça.
Não se pode dizer que o Estatuto da Advocacia, que dita normas sobre o exercício da atividade profissional do advogado, foi revogado pelo Código de Processo Civil. A eficácia deste não é maior que a do Estatuto e, pois, não tem o condão de revogá-lo, de vez que este é lei especial que, portanto, não pode ser revogada por lei geral, como, aliás, já decidido, em outra feita, pelo próprio Conselho Federal da Ordem (cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia.2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1996. p. 124).
Ademais, a questão não é só de lei, mas há de se buscar a razão de haver sido criada a disposição sobre a incompatibilidade. Nesse sentido, Ruy de Azevedo Sodré destacava, na vigência da lei anterior, que “a redução da independência ou captação de clientela gera a incompatibilidade” (Ética profissional e Estatuto do Advogado. 4. ed. São Paulo: LTr, 1991. p. 347), o que se desenha muito claro no advogado que se devota à conciliação fora de seus clientes. O conciliador é alguém submetido, diretamente, ao juiz, que não só traça a política que pretende empreender nesta atividade, como também é quem define quais feitos serão submetidos à conciliação, sendo, ademais, quem, ao final, irá homologar ou não o resultado obtido mercê da atuação do conciliador. Além disso, tem o juiz poder sobre o conciliador, de vez que pode afastá-lo de suas funções (art. 173), o que se colocaria em relação a qualquer conciliador, inclusive o que for advogado.
Inegável, de outro lado, a potencialidade que há dessa atuação ensejar captação de clientela, cujo risco não se elimina com o simples impedimento de trabalhar o profissional para as partes que estiveram envolvidas na conciliação por ele tentada ou no Juízo em que funciona. Outras vantagens poderão advir da simples proximidade do advogado conciliador com o Magistrado que lhe assegura um canal de comunicação que nem todos possuem e que se faz, ademais, qualificado, pelo fato de passar a ter o juiz confiança no modo de ser e até no trabalho do advogado, confiança essa criada não pelo seu desempenho enquanto advogado, mas sim pelo exercício de outra função. Mesmo, porém, que se guarde a distância que o respeito impõe, aos olhos do leigo, principalmente em cidades menores, transparece ser o conciliador alguém com poderes na estrutura da Justiça, gozando da confiança do juiz, criando nas pessoas temor, medo de represália e até esperança de tratamento privilegiado, na linha bem traçada por Ruy de Azevedo Sodré (Ob. cit., p. 349). Por tudo isso, é prudente a distância.
Evidente que a deficiente estruturação dos setores de conciliação, que teriam que ter seus próprios quadros, seu local de trabalho e desfrutar de equipamentos suscetíveis de permitir qualidade aos serviços, afeta o seu funcionamento.
Nesse sentido, a audiência de conciliação e mediação prevista para ser realizada na abertura do procedimento, em seguida à citação do réu (art. 334), tem sido evitada tanto pelas partes como pelos Magistrados. Embora o Código tenha sido bem incisivo na sua realização, chegando mesmo a sancionar o não comparecimento injustificado das partes (§ 8º do art. 334), na prática, a constatação do resultado infrutífero como regra tem servido de desalento, até mesmo relativamente aos procedimentos de família. Há de se reconhecer que a colocação da lei foi salutar, prevendo a conciliação como medida anterior à apresentação de contestação, ou seja, antes de se agravar o estado de beligerância no processo. Melhor ainda foi a disciplina no direito de família, onde a citação do réu para o processo e intimação para comparecer à audiência deveria ser feita sem sequer lhe remeter cópia da inicial (art. 695), de forma a se evitarem os ressentimentos que alegações mais graves poderiam trazer, a ponto de servir de entrave à concretização da conciliação.
A falta de estrutura, todavia, coloca todo o arcabouço legal bem desenhado por água abaixo, de modo que se usa, na mesma esteira da legislação anterior, a tentativa de conciliação como uma possibilidade de se retardar o processo, levando a que não se considere a ausência de sua tentativa no momento próprio como caso de nulidade (cf. TJSP, Apelação nº 1017994-62.2016.8.26.0002, Rel. Hamid Bdine, J. 16.02.2017).
É certo, pois, que só a lei é insuficiente para criar um verdadeiro espírito de conciliação. De mais se precisaria: estrutura, quadro próprio e profissional, suscetível de permitir a realização da tentativa em prazo razoável, evitando, assim, que, mesmo quando existam condições de sua realização, ela não se torne mera forma de ganhar tempo.