DA DESERDAÇÃO
Henrique de Melo Secco
1 CONCEITO GERAL
O instituto da deserdação se apresenta no ordenamento jurídico pátrio como ato de vontade exclusivo do autor da herança exarado somente por meio de testamento e que venha a excluir herdeiro necessário da legítima, pelo fato de ele ter praticado atos ilícitos, expressamente arrolados em lei de maneira taxativa, contra o próprio autor da herança ou pessoas próximas a ele. Ainda que a deserdação ocorra somente se houver vontade juridicamente válida do autor da herança, por se tratar de penalidade que alija herdeiro necessário da legítima, que é prevista em lei como norma cogente, ou seja, de ordem pública, somente se o herdeiro incorrer em atos expressamente previstos em lei é que poderá ocorrer tal exclusão.
Ainda que o autor da herança seja o dono de todo o patrimônio a ser herdado, muitas vezes tendo ele o construído sem qualquer concurso de terceiros, a exclusão somente é legítima, e portanto válida, se forem observadas as hipóteses legais, que devem ser comprovadas em ação própria. Somente a lei em sentido estrito, ou seja, lei civil ordinária, que poderá estipular as hipóteses de incidência em que ocorrerá a exclusão via deserdação.
O artigo 1.850 do Código Civil prescreve os casos de exclusão dos demais herdeiros legítimos, mas não necessários, referente ao processo sucessório, que restou vazado nos seguintes termos:
“Art. 1.850. Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar.”
Nesse caso não há falar em deserdação, que é considerada pena, o que há é uma exclusão volitiva dos herdeiros legítimos que não se apresentam diante do ordenamento jurídico como herdeiros necessários.
Questão importante ocorre no bojo do enunciado do artigo 1.845, que estabelece o rol de herdeiros necessários sendo os descendentes, ascendentes e o cônjuge, não havendo qualquer alusão ao companheiro. Em que pese a lacuna legislativa, a jurisprudência admite o companheiro como herdeiro necessário, caso haja comprovação de inexistência de impedimento de transformação da união em casamento.
2 DA EFETIVAÇÃO DA EXCLUSÃO
O instituto da deserdação ocorre por meio de vontade expressa pelo autor da herança, em sede da confecção de seu testamento, declarando expressamente a causa pela qual se dá a exclusão do herdeiro do processo sucessório. Ainda que haja a justificativa mais plausível possível, não é juridicamente válida a deserdação por meio de escritura pública, por exemplo, ou mesmo por escrito particular.
A efetiva exclusão do deserdado ocorre por meio de ajuizamento de ação própria, na qual o herdeiro instituído que esteja na ordem de chamamento da sucessão comprove a causa justificadora da exclusão. Importante ressaltar que não basta o interessado comprovar a veracidade da causa invocada pelo autor da herança, deverá ele ainda demonstrar que os atos praticados pelo herdeiro a ser excluído se subsumem ao rol taxativo de causas ensejadoras da exclusão.
A sentença que exclui o herdeiro necessário por se considerado indigno é declaratória, e somente depois de transitada em julgado opera de fato sua exclusão. Vale ressaltar que o parágrafo único do artigo 1.965 do Código Civil outorga prazo de quatro anos, a contar da abertura da sucessão, para o ajuizamento da ação de deserdação, sob pena de decadência do direito.
O ônus da prova cabe ao herdeiro interessado na exclusão, sendo que, não comprovada a justa causa, resta nula a disposição testamentária, ou seja, não produz quaisquer efeitos, recebendo o herdeiro necessário sua legítima.
3 DAS CAUSAS DA DESERDAÇÃO
Como já dito alhures, as causas da deserdação são arroladas em lei civil de maneira taxativa e se encontram nos artigos 1.814 e 1.962 do Código Civil, na deserdação dos descendentes por seus ascendentes. Considerando a taxatividade das causas, colaciona-se os referidos artigos:
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:
I – ofensa física;
II – injúria grave;
III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;
IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
Já o artigo 1.963 do Codex invoca também o artigo 1.814 e arrola as justificadoras a ensejar a deserdação dos ascendentes pelos descendentes. Percebe-se que as causas são praticamente idênticas, sendo alteradas somente as duas últimas, onde a lei prevê as relações ilícitas com a mulher do filho ou neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou neta, assim como o desamparo do filho ou neto em alienação mental ou grave enfermidade.
4 DOS EFETOS DA DESERDAÇÃO
Assim como na indignidade, os efeitos da deserdação são pessoais, ou seja, não se estendem aos filhos do indigno. A doutrina majoritária não deixa qualquer dúvida acerca dos limites pessoais da pena, entretanto, o imortal Washington de Barros Monteiro (1998) discorda da doutrina, uma vez que a regra contida no instituto da indignidade (art. 1.816, caput e parágrafo único) não se repete na deserdação.
Art. 1.816. São pessoais os efeitos da exclusão; os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão.
Parágrafo único. O excluído da sucessão não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, nem à sucessão eventual desses bens.
Logo, conclui o renomado autor, não havendo dispositivo expresso sobre os efeitos da indignidade, cabe sua aplicação mais ampla. Por outro lado Sílvio de Salvo Venosa (2003) nos ensina que:
“da mesma forma que a indignidade, a deserdação é pena. A punição não pode passar da pessoa do culpado. Seus efeitos só podem ser pessoais. Destarte, inelutavelmente se aplica o disposto pelo art. 1.816, colocado no capítulo da indignidade.”
A nossa opinião sobre o assunto é de que somente um dispositivo expresso em lei poderia ampliar os efeitos da condenação para além da pessoa do culpado (e ainda assim sua constitucionalidade seria discutível). O simples fato de não haver lei restringindo o efeito da pena não autoriza o aplicador do Direito em estender culpa a quem não é culpado. Ademais, o legislador utilizou a expressão “excluído”, e não indigno ou deserdado, o que revela sua vontade de tratar dos efeitos da exclusão de maneira conjunta, tanto a exclusão pela indignidade quanto pela deserdação, desde que baseadas em atos ilícitos taxativamente arrolados em lei
Dessa forma, uma vez aberta a sucessão, o herdeiro necessário é chamado a recolher sua herança, vigendo o princípio da saisine, ou seja, não há bens sem titulares, sendo que após a abertura do testamento, será conhecida disposição testamentária de exclusão do processo sucessório por deserdação, sendo que qualquer disposição onerosa a terceiros de boa-fé prevalecerá como válida.
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1989
GOMES, Orlando. Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 1997
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva. 1998.
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1957.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito das Sucessões. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006.