DA APLICAÇÃO DO DANO MORAL COLETIVO EM MATÉRIA AMBIENTAL
Rafael Lima Daudt D’Oliveira
Talden Farias
Este artigo propõe-se a analisar, com base na doutrina e na jurisprudência, o instituto do dano moral coletivo em matéria de meio ambiente. De forma sucinta e, obviamente, longe da pretensão de esgotar o tema, pretende-se chamar a atenção para a discussão sobre os pressupostos de sua configuração.
O dano moral coletivo ambiental é um assunto que merece uma reflexão mais aprofundada por parte dos operadores do Direito, que muitas vezes o tratam como se fosse uma decorrência ou uma dimensão inseparável da lesão ecológica. É preciso ter cautela com essa interpretação, que pode comprometer a aplicação do instituto na prática ao desconsiderar as especificidades de cada situação concreta.
Não parece mesmo razoável o entendimento de que qualquer suposta lesão ao meio ambiente configura dano moral coletivo, como se fosse algo automático ou feito à revelia de critérios. Na verdade, tal dano moral coletivo só deverá se configurar quando existir uma lesão qualificada aos interesses da coletividade, que venha a causar um prejuízo social relevante.
Comoção social
Édis Milaré compreende que o dano material ambiental poderá ensejar ou não dano moral ambiental, e a constatação da ocorrência do dano moral coletivo vai depender da sua repercussão na comunidade onde se situa o bem afetado. Para o autor, apenas haverá dano moral coletivo se gerar uma comoção social negativa[1].
Já para Paulo de Bessa Antunes o dano moral coletivo “deve ultrapassar os limites do incômodo, ou do mero aborrecimento, pois ele se caracteriza por ser uma afronta à coletividade, aos seus valores, ao seu modo de vida, ao sossego de seus membros, de forma reiterada e constante”[2].
Ele exemplifica casos nos quais supostamente deve ser reconhecida a sua existência, como poluição marinha que atinja praias de uma cidade turística, poluição de um rio que abastece de água potável uma determinada localidade e os altos níveis de ruído de forma constante.[3]
Apenas uma lesão qualificada aos interesses da coletividade, causando prejuízo social relevante, é que deve autorizar a condenação em danos morais coletivos. Isso implica dizer que somente no caso concreto é que se poderá constatar ou não a existência das condições para a aplicação do dano moral coletivo de natureza ambiental.
É nessa linha vem decidindo o STJ, segundo o qual “somente ficará caracterizado se ocorrer uma lesão a valores fundamentais da sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta e intolerável”[4]. Em outro precedente, o STJ considerou que o dano moral coletivo “dá-se quando a conduta agride, de modo ilegal ou intolerável, os valores normativos fundamentais da sociedade em si considerada, a provocar repulsa e indignação na consciência coletiva”[5]. Em igual sentido, segue outra decisão recente do Corte sobre o assunto:
“ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. ACESSO A PATRIMONIO BIOGENÉTICO. DANO MORAL COLETIVO. LESÃO A VALORES FUNDAMENTAIS. INEXISTÊNCIA. CONDENAÇÃO POR SIMPLES VIOLAÇÃO DE NORMA. IMPOSSIBILIDADE.
(…)
Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, “se, por um lado, o dano moral coletivo não está relacionado a atributos da pessoa humana e se configura in re ipsa, dispensando a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral, de outro, somente ficará caracterizado se ocorrer uma lesão a valores fundamentais da sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta e intolerável” (REsp 1.502.967/RS, rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/08/2018, DJe 14/08/2018).
Hipótese em que, embora as instâncias de origem tenham delimitado muito bem a importância e constitucionalidade da norma em abstrato (Medida Provisória n. 2.186-16/2001), não precisaram como a conduta da recorrente, em concreto, ao violar dispositivo daquele diploma legal, teve o condão de lesionar valores fundamentais da sociedade, nem por que essa vulneração teria ocorrido de forma injusta e intolerável.
Não houve, na espécie, efetivamente, a graduação da conduta do agente que promove a pesquisa de natureza sem a prévia autorização, ou seja, não se pode concluir que o descumprimento da norma do art. 2º da referida medida provisória (desenvolvimento de pesquisa antes da obtenção da autorização do Poder Público), por si só, ponha em xeque a diversidade do patrimônio genético brasileiro e implique, necessariamente, dano moral coletivo.
Embora não se exija a efetiva comprovação de dano a esse bem jurídico, não se dispensa que seja demonstrado, no mínimo, risco efetivo e grave a esse valor tido por fundamental, pois “a violação dos interesses transindividuais deve ocorrer de maneira inescusável e injusta, percebida dentro de uma apreciação predominantemente objetiva, de modo a não trivializar, banalizar a configuração do aludido dano moral coletivo” (EREsp 1.342.846/RS, rel. Ministro Raul Araújo, Corte Especial, julgado em 16/6/2021, DJe de 3/8/2021).
Não se quer dizer, com isso, que a só violação da norma do art. 2º da Medida Provisória n. 2.186-16/2001 é irrelevante, sendo certo, porém, que, para essas hipóteses, já havia previsão de sanção própria (art. 30 daquele diploma legal), de maneira que a condenação seguinte e mais grave (reparação por dano moral coletivo), por sua vez, reclamava demonstração objetiva da gravidade da conduta imputada à ré, o que não aconteceu.
(…).” (AgInt no REsp 1962771 / SP – STJ/ 1ª Turma – Rel. Min. Gurgel de Faria – j. em 08/05/2023 – DJe 19/05/2023).
Há precedentes do TRF-2 no sentido da não configuração do dano moral coletivo em certas hipóteses:
“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO. INEXISTÊNCIA. AFASTAMENTO NO CASO CONCRETO. RECUPERAÇÃO INTEGRAL DA ÁREA DEGRADADA. MEDIDA SUFICIENTE À REPARAÇÃO. INDENIZAÇÃO PECUNIÁRIA. DANO INTERINO INDEVIDO. CONDENAÇÃO DO RÉU EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA SIMETRIA. ART. 18 DA LEI Nº 7.347/1985.
(…)
O dano moral coletivo decorre da própria circunstância do ato lesivo, “prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos” (REsp 1 .057.274/RS, REsp 1410698/MG).
Segundo orientação do Superior Tribunal de Justiça, “o dano moral coletivo é cabível quando ultrapassa os limites do tolerável e atinge, efetivamente, valores coletivos” (REsp 1681245/PR). A conduta lesiva do apelado não ultrapassa limites de tolerabilidade a afetar diretamente à coletividade, pelo que não há falar em condenação pelo abalo moral coletivo. (…)” (Apelação – Recursos – Processo Cível e do Trabalho nº 0039919-81.2015.4.02.5107 – TRF 2ª Região/ 7ª Turma – Rel. Des. José Antônio Neiva – j. em 21/08/2019 – grifou-se)
“DIREITO AMBIENTAL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EXTRAÇÃO ILEGAL DE GRANITO. RECURSO NÃO RENOVÁVEL. REPARAÇÃO IN NATURA INVIABILIZADA. SOLO E VEGETAÇÃO. REPARAÇÃO PARCIAL. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. INDENIZAÇÃO PELO VALOR DE MERCADO DO MINÉRIO EXTRAÍDO. DANO MORAL COLETIVO INOCORRENTE. EXIGÊNCIA DE EIA/RIMA PARA NOVOS LICENCIAMENTOS NA ÁREA ATINGIDA. CABIMENTO. (…)
A condenação por danos morais coletivos pressupõe a ocorrência de ofensa qualificada a valores fundamentais da sociedade, de forma injusta e intolerável, geradora de intranquilidade social, impondo-se mensurar a gravidade do dano ambiental especificamente perpetrado, de modo a qualificar o grau de reprovabilidade social alcançado em específico. Precedentes do STJ e desta Corte.
Embora preservação do meio ambiente e dos recursos minerais constitua valor fundamental da sociedade e princípio regente da ordem econômica (arts. 170, VI, e 225, da CRFB), a só ocorrência da lesão ambiental não é capaz de gerar dano moral coletivo, sob pena de bis in idem com as demais formas de reparação, impondo-se apurar a reprovabilidade qualificada da conduta.
No caso tratado, muito embora seja relevante a irreversível perda da jazida mineral envolvida, em relação ao restante do dano ambiental perpetrado, as primeiras medidas eficazes de reparação foram adotadas cerca de dois anos após a autuação inicial, minimizando os referidos danos, embora ainda haja alguma degradação no local, porque outra empresa que assumiu a área, desta feita com licença regular, acabou paralisando as atividades, inclusive as de conservação, por dificuldades econômicas. Dessa forma, o dano ambiental objeto do presente feito não ultrapassou a esfera normal de reprovabilidade, o que afasta a ocorrência de dano moral coletivo indenizável. (…).”
(Apelação – Recursos – Processo Cível e do Trabalho nº 0000189-20.2011.4.02.5005 – TRF 2ª Região/ 7ª Turma – Rel. Des. Antônio Henrique Correa da Silva – j. em 05/07/2019 – grifou-se)
“(…) o caso dos autos não comporta indenização pelos danos morais coletivos tampouco condenação pelo dano material, uma vez que ausentes a respectivas comprovações do liame entre o dano ambiental e o abalo coletivo e do dano material propriamente dito gerados pela ocupação da apelante.”
(Apelação / Reexame Necessário – Recursos – Processo Cível e do Trabalho nº 0000667-20.2005.4.02.5108 – TRF da 2ª Região/ Vice-Presidência – Rel. Des. Flavio Oliveira Lucas – j. em 13/12/2018)[6].
Também vem decidindo dessa forma o TJ/SC:
“A responsabilização por danos morais coletivos ocorre nas hipóteses em que há lesão à coletividade, concreta ou potencialmente, mas não necessariamente em toda e qualquer condenação em ação civil pública. Não havendo, na hipótese, demonstração de consequências sociais excepcionalmente danosas decorrentes do loteamento irregular, que extrapolem aquilo que é próprio da infração em si, não há se falar em condenação por dano extrapatrimonial coletivo”. (Remessa Necessária n.º 0007471-42.2013.8.24.0075, de Tubarão, – TJSC/ 2ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Henry Petry Junior – j. 21.07.20)[7].
Sendo assim, em matéria ambiental a configuração do dano moral coletivo exige a presença de certos requisitos, que são a lesão qualificada aos interesses da coletividade e a ocorrência de prejuízo social relevante. Isso indica que a aplicação do instituto não pode ocorrer de forma automática, uma vez que somente no caso concreto é que se constatará a sua pertinência ou não.
Esse entendimento não destoa da Súmula 629 do STJ, segundo a qual “quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar”. Afinal de contas, por depender de condições a serem verificadas caso a caso, o dano moral coletivo não pode ser figura obrigatória em todo e qualquer caso de responsabilidade civil ambiental, até porque existem também lesões ecológicas de menor monta e sem maiores desdobramentos sociais.
[1] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 12. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 319-320.
[2] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 23. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2023, p. 223.
[3] Ibidem.
[4] REsp 1.502.967/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/08/2018, DJe 14/08/2018 – grifou-se.
[5] AgInt no AREsp 1413621 / MG – STJ/2ª Turma – Rel. Min. Francisco Falcão – j. em 06/05/2020 – DJe 11/05/2020 – grifou-se.
[6] Em sentido semelhante, cf. os seguintes precedentes: Apelação – Recursos – Processo Cível e do Trabalho nº 0000729-85.2004.4.02.5111 – – TRF 2ª Região/ 8ª Turma – Rel. Des. Guilherme Diefenthaeler – j. em 29/10/2018; Apelação – Recursos – Processo Cível e do Trabalho nº 0068355-04.2016.4.02.5111 – TRF 2ª Região/ 5ª Turma – Rel. Des. Vigdor Teitel – j. em 09/08/2018.
[7] Em outro precedente do mesmo tribunal, ficou consignado no voto do Relator que não ficou “provado que a supressão da vegetação nativa secundária, em estágio médio de regeneração, do bioma Mata Atlântica tenha causa prejuízos de tal magnitude a ponto de atingir a coletividade (Apelação nº 5003837-21.2022.8.24.0015/SC – TJSC/ 2ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto – j. em 28/03/2023).