CURADORIA ESPECIAL PARA PESSOAS INCERTAS OU DESCONHECIDAS NO PROCESSO CIVIL
Hugo Nigro Mazzilli
Diz o art. 72, II, do Código de Processo Civil, que o juiz nomeará curador especial ao réu revel citado por edital ou com hora certa, enquanto este não tiver constituído advogado, devendo o encargo recair sobre a Defensoria Pública, nos termos da lei.
Quanto se trate de réu certo e conhecido, não há qualquer dúvida de que, tendo sido citado fictamente, seja por edital ou com hora certa, e não tendo constituído advogado, deverá ser substituído processualmente por curador especial. Mas e se se tratar de pessoas incertas ou desconhecidas, citadas fictamente no processo civil — devem ou não ser defendidas por um curador especial?
A dúvida é pertinente, pois o atual Código de Processo Civil de 2015, em duas passagens, exige expressamente a citação de pessoas incertas ou desconhecidas (arts. 256, I, e 259, III), assim reafirmando uma tradição que já vinha do Direito anterior (CPC de 1973, arts. 231, I, 870, I e II, 908, I, 942, II). Note-se, porém, que o atual código teve o cuidado de não mais falar, ao contrário do antigo, em “réu” incerto ou desconhecido, e sim agora fala apenas em “citando” ou “interessado” incerto ou desconhecido. E bem o fez, pois pessoas incertas ou desconhecidas não são tecnicamente rés em um processo.
De há muito, a doutrina processual civil já vinha tentando distinguir pessoas incertas de pessoas desconhecidas, com a justa crítica de Moniz de Aragão, para quem tal distinção é desnecessária, resumindo-se todas essas hipóteses a pessoas “não certas“[1].
O art. 256, I, do Código de Processo Civil prevê a citação por edital “quando desconhecido ou incerto o citando“. Como bem explicitado na doutrina e na jurisprudência[2], tal hipótese, é claro, não visa dispensar o autor de fornecer, sendo possível, os dados de qualificação do réu (art. 319, II), e sim visa estabelecer os pressupostos para a citação por edital, quando impossível determinar quem seja o citando.
Sob o sistema hoje vigente, há necessidade de publicação de editais para conhecimento de interessados incertos ou desconhecidos na ação de usucapião de imóvel, na ação de recuperação ou substituição de título ao portador, ou em qualquer ação em que seja necessária, por determinação legal, a provocação, para participação no processo, de interessados incertos ou desconhecidos (art. 259 do CPC). O direito anterior já tinha se defrontado com hipóteses semelhantes, quando a divulgação da existência da ação se dirigia a pessoas nem sempre previamente determinadas, como na citação de eventuais confinantes nas ações demarcatórias, ou na de eventuais herdeiros ou sucessores no inventário, na habilitação para o processo, ou na arrecadação de bens jacentes; e, da mesma forma, no próprio processo de insolvência requerida pelo devedor, nem sempre tinha este meios para indicar todos os credores por títulos de larga circulação, de maneira que a citação por edital se estendia a todos os eventuais credores ou seus cessionários.
É bem sabido que, como regra, a sentença faz coisa julgada entre as partes, não prejudicando juridicamente terceiros (CPC, art. 506). Em algumas ações, porém, a imutabilidade da eficácia da sentença atinge pessoas que formalmente não tomaram parte na relação processual: é o que ocorre nas ações de estado da pessoa; é o que se dá nas ações de usucapião ou nas de anulação e substituição de títulos ao portador; é o que pode acontecer nas ações civis públicas ou coletivas. Isso decorre da própria natureza da relação jurídica decidida nesses feitos. Nas causas relativas ao estado das pessoas, os efeitos da prestação jurisdicional também acabam atingindo pessoas que não foram diretamente parte na relação processual; nas de usucapião, só se concebe direito de propriedade se dirigido erga omnes; nas de desconstituição e substituição de título ao portador, só tem sentido o processo se a prestação jurisdicional for eficaz perante terceiros. No processo coletivo, a imutabilidade do decisum, em certos casos, pode ultrapassar as partes formais do processo, seja quando sejam julgadas procedentes, seja quando a improcedência se funde em motivo outro que não a falta de provas.
Daí é o caso de se indagar se, nessas ações, “todos” seriam réus. Não é necessário sustentar que “todos” sejam réus para justificar, nessas hipóteses, a extensão subjetiva da imutabilidade erga omnes da sentença. A razão consiste em que “todos” não são revéis. “Todos” não são condenados nem arcam com os ônus da sucumbência. “É inconcebível a revelia genérica, inespecífica, ou de pessoas indeterminadas ou até inexistentes.”[3] “Não se compadece com o conceito de revelia uma situação em que não é possível identificar-se o réu.”[4]
Fossem “todos” réus, não haveria sequer juiz desimpedido para o feito. Como já se antecipou, se nessas ações todos suportam a imutabilidade da sentença, incluindo o próprio juiz do feito, tal se deve mais à própria natureza da relação jurídica ali decidida do que a serem “todos” partes na demanda.
Enfim, a citação genérica por edital é, antes, meio legal de publicidade em certas ações do que meio para obter uma revelia genérica ou indeterminada. Aliás, o não comparecimento de terceiros assim citados mais configuraria a presunção de sua inexistência do que a de sua contumácia[5].
O art. 72, II, do Código de Processo Civil faz com que seja dado curador especial, entre outras hipóteses, “ao réu revel citado por edital“. Insista-se, entretanto, na pergunta: eventual terceiro incerto ou desconhecido, citado por edital, teria direito a curador especial, como vez ou outra já se decidiu na jurisprudência?[6]
Entendemos que não. Como não há, nem pode haver revelia indeterminada, de pessoa incerta ou desconhecida, igualmente não há nem pode haver incidência, no caso, da norma do art. 72, II, do estatuto processual. Nesse sentido, tem corretamente decidido a melhor jurisprudência[7].
Só se justifica curadoria especial para réu certo, ainda que não na sua identificação nominal, mas pelo menos na sua existência. Em outras palavras: se há com certeza a pessoa citada, ainda que não se saiba seu nome; ou se é sabido o nome, mas não se conhece a pessoa a quem este corresponda; ou se não se sabe quem é a pessoa, mas há dados concretos para sua identificação (pessoa indeterminada, mas determinável), em todos esses casos cabe curadoria especial ao ausente fictamente citado. Mas, em favor de pessoas incertas ou desconhecidas na sua própria existência, descabe curadoria especial[8].
Defender pessoa inexistente seria um ato sem escopo, porque é inadmissível defender um interesse não concreto, em cabal afronta ao art. 17 do Código de Processo Civil. Por exemplo, veja-se que, nos litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana (art. 178, III), o Ministério Público intervém no zelo de interesses sociais, mas não como defensor do interesse de pessoas indeterminadas[9]; na ação de anulação e substituição de títulos ao portador, também é inviável atuação de Ministério Público ou de curador especial, pois não teriam como defender concretamente os interesses de eventuais terceiros que podem nem sequer existir[10].
Por outro lado, não se confunde a intervenção do curador especial, função esta hoje exercida pela Defensoria Pública como substituto processual da parte, com as funções próprias e típicas de Ministério Público, que não é substituto processual de réu revel fictamente citado. Já vimos não ser o caso de intervenção de curador especial em defesa de réus incertos ou desconhecidos. Seria, porém, o caso, nessas hipóteses, de intervir o Ministério Público, agora em função institucional e própria, na defesa do interesse público ou social (CPC, art. 178, I)?
Tem-se propendido no sentido de atribuir ao Ministério Público a tutela de diversos interesses coletivos e difusos, inclusive por via da ação civil pública. Contudo, nos casos ora em comento, não se trata nem da defesa de interesses públicos, nem sequer de interesses difusos de uma coletividade, mas sim da defesa de interesses alheios, que, ainda que de pessoas indeterminadas, são individuais e disponíveis. No caso, a defesa desses interesses não se confunde com a dos interesses sociais, nem com interesses indisponíveis, não havendo autorização legal e expressa para qualquer substituição processual nesse caso. Tais interesses individuais só poderiam, de forma eficaz, ser defendidos se concretamente evidenciados em sua existência e em sua titularidade, esta, se não determinada, ao menos determinável.
Mesmo nas hipóteses em que o Ministério Público defenda interesses individuais, em essência, e na verdade, só o fará na medida em que isto interesse à ordem pública e ao zelo de interesses sociais, ou ao zelo de interesses indisponíveis; é que, mesmo quando o Ministério Público defende interesses diretamente ligados a uma pessoa, serão sempre supraindividuais (p. ex., os interesses do incapaz, ainda que patrimoniais, são indisponíveis para ele e para seu representante legal, e, portanto, adquirem conotação social; ou os interesses difusos que envolvam uma questão de larga abrangência ou largo alcance social, como o meio ambiente).
Não é, pois, por qualquer interesse público que deve zelar o Ministério Público, na função do art. 178, I, do Código de Processo Civil, e sim somente por aquele que denote caráter social ou indisponibilidade. Só assim adequaremos a atuação do Ministério Público à sua destinação constitucional em defesa dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput).
Dessa forma, não só não cabe a atuação da Defensoria Pública, como também descabe intervenção do Ministério Público em favor de pessoas incertas ou desconhecidas chamadas por edital, como nos processos de anulação e substituição de títulos ao portador ou nos protestos dirigidos ao público em geral.
[1] Comentários ao código de processo civil. Forense, v. 2, n. 293, 1979.
[2] V.g., RT, 514/70.
[3] SILVA, Paulo Penteado de Faria e. Curador à lide em ação de usucapião, RT, 526/14.
[4] FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao código de processo civil. Forense, v. 8, t. 3, n. 468, 1980.
[5] FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Op. cit.
[6] JTACSP, 34/92; RJTJSP, 40/203.
[7] Como em face de réus indeterminados não se verifica a revelia, descabida a participação da curadoria especial por meio da Defensoria Pública. Nesse sentido, v. AI 0015427-13.2015.8.19.0000, TJRJ, 3ª C.Cív., J. 22.05.2015; AI 1.0145.08.436165-/1004, TJMG, 18ª C.Cív., J. 24.09.2013; AI 2036546-69.2013.8.26.0000, TJSP, 10ª CDPriv., J. 11.03.2014.
[8] RJTJSP, 63/74; RT, 352/131, 422/152.
[9] RJTJSP, 88/333. No mesmo sentido, cf.: SILVA, Paulo P. Faria e. Op. cit.
[10] Cf. SANTOS, Emane Fidélis dos. Comentários ao código de processo civil. Forense, v. 6, n. 75, 1978; FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Op. cit.