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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA E EXECUÇÃO, COMPETÊNCIA E FORO ITINERANTE

CUMPRIMENTO DE SENTENÇA E EXECUÇÃO, COMPETÊNCIA E FORO ITINERANTE

Elpídio Donizetti

 

Tanto no cumprimento da sentença quanto na execução de títulos extrajudiciais a “itinerização” da competência se mostra possível.

O caso motivador

O acórdão proferido no REsp 1.776.382/MT, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, motivou-me a escrever este artigo. Conforme consta do voto da ministra, “o propósito recursal é dizer se, nos termos do art. 516, parágrafo único, do CPC/151, é possível a remessa dos autos ao foro do domicílio do executado após o início do cumprimento da sentença.”

O caso posto em julgamento é o seguinte. A autora, depois de iniciado o cumprimento da sentença proferida em ação de reparação de danos, requereu a remessa dos autos ao juízo da Comarca de São Paulo – SP, ao fundamento de que é neste foro que a devedora tem domicílio e possui bens suscetíveis de expropriação.

O juiz indeferiu o pedido e então, dessa decisão interlocutória, a autora interpôs agravo de instrumento perante o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.

O TJ/MT negou provimento ao recurso ao entendimento de que o pedido de deslocamento da competência para cumprimento da sentença somente pode ser admitido se formulado no momento em que é pleiteado o cumprimento, e não depois de já iniciado e com parte do débito pago.

A autora então interpôs o REsp motivador deste artigo, em cujo acórdão restou assentado que: “Como a  lei não impõe qualquer outra exigência ao exequente, a não ser a prova de que o domicílio do executado, o lugar dos bens ou o lugar do cumprimento da obrigação é em foro diverso de onde decidida a causa originária, não há justificativa para se admitir entraves ao pedido de processamento do cumprimento de sentença no foro de opção do exequente, ainda que o mesmo já tenha se iniciado“.

No direito há muito blá-blá-blá, mas não ensinam as coisas simples

Realmente o parágrafo único do art. 516 não estabelece qualquer condição, muito menos momento processual, para que se possa requerer o deslocamento da competência para o cumprimento da sentença. Para essa constatação, basta apenas e tão somente a leitura da letra da lei, sem qualquer esforço exegético do aplicador da lei, por mínimo que seja. Logo, óbvio é que este não pode condicionar o deslocamento da competência ao estágio do procedimento do cumprimento da sentença.

Não estou a insinuar que a decisão do STJ é pífia, ou, no popular, que o tribunal da cidadania “choveu no molhado“. A magistratura brasileira é de altíssimo nível. Mas há que se retirar o cisco dos olhos de alguns. É um tal de por palavras onde não há e, às vezes, de subtraí-las de onde foram colocadas. Gente, pôr o Carlos[1] no canto da cama ajuda a clarear a mente. As coisas simples são as mais importantes e difíceis de serem aprendidas, até porque a elas se dão pouca atenção. Nas faculdades discursam (blá-blá-blá) até à exaustão sobre “teoria discursiva[2]. Uma pena que esquecemos de lembrar aos estudantes que a lei é ou deveria ser a principal fonte normativa, mormente no nosso sistema, que se diz romano-germânico.  Viva o STJ. Que continue a dizer obviedades.

A lei 11.232/05 deu início à relativização do que absoluto era, o CPC/2015 duplicou as hipóteses que permitem romper o absolutismo (incisos II e III do art. 516) e o STJ confirmou o que a lei havia estabelecido. Há quem afirme que a partir do julgamento do REsp 1.776.382 implantou-se uma verdadeira “itinerização” da competência para o cumprimento da sentença. Em parte, sim. Nas hipóteses mencionadas, o procedimento do cumprimento da sentença pode perambular de um foro a outro, a fim de que se obedeça ao princípio da efetividade. Já requerido o cumprimento de sentença, o executado muda de endereço – ops, domicílio -, remetamos o procedimento para o novo foro. O executado, que não possuía bens, adquiriu um imóvel numa outra comarca, para lá pode ser remetido o cumprimento da sentença. A efetividade é que marca o passo e o lugar da dança. A rigor, em tempos de processo eletrônico, soa fora de moda (anacrônico) falar em remessa de autos. Basta que o juiz de Marcelândia aperte uma tecla e a jurisdição passará a ser exercida pelo juiz de Juscimeira. Simples assim.

Volta Kelsen, volta. Eu não aguento mais esse cipoal de princípios

Quando me assentava nos bancos da faculdade, o que valia era a regra. O Código era soberano. Os princípios, no máximo, serviam para potencializar a aplicação das regras. De uns tempos para cá as regras passaram a ser hostilizadas. Em objeto de chacota se transformou o juiz que estudou em Kelsen.  Os princípios sempre existiram, aliás serviam de pilar mestre do jusnaturalismo. No positivismo kelseniano, serviam de fonte interpretativa. Hoje, há sempre um princípio na cartola. Ele pode servir de justificativa para tudo, até para afastar a lei.

Bem, neste artigo, com base no princípio da efetividade da execução, não pretendo afastar a lei, mas tão somente dar a ela interpretação extensiva, de modo a contemplar hipóteses deixadas de fora pelo legislador. O STJ, acertadamente, utilizou do referido princípio para confirmar a norma legislativa. Sigo a esteira desse Tribunal para afirmar que a relativização da competência e consequente “itinerização” do procedimento executivo (execução estrito senso ou cumprimento de sentença) também se mostra viável na hipótese do inciso I do art. 516, bem como na execução de título executivo extrajudicial. Nem precisa afastar a lei. Basta utilizar o argumento da efetividade e todo o arcabouço principiológico do Código para se chegar a essa conclusão. Essa é a tese que nas linhas abaixo pretendo demonstrar.

Às vezes, para que a efetividade do processo se torne mais visível – ainda que em alguns aspectos – é preciso romper com dogmas. A junção do conhecimento com a execução num só processo moeu o dogma da dicotomia, resultando num procedimento no mínimo mais racional. No que tange à competência para o cumprimento da sentença a lei 11.232/05 quebrou o dogma da perpetuatio jurisdicionis, ou seja, que a competência é fixada no momento do ajuizamento da ação, pouco importando as alterações de fato ou de direito ocorridas posteriormente. Mas apenas uma parte da noz foi rompida – essa expressão me faz lembrar o professor Rosemiro Pereira Leal.  Há que se quebrar o restante do rígido fruto.

15 minutos por 7 reais. Isso é que é efetividade.

Vou falar aqui sobre como as coisas se passavam na vigência do Código de 73. Já adianto que não me apego ao passado. Parafraseando Carlos Drummond, não serei o jurista de um mundo caduco, tampouco de um Código revogado. Encaro a realidade sócio-jurídica do nosso país e a interpretação que sobre ela confere os precedentes, no intuito de entender o presente e fazer um esboço útil de como as coisas podem vir a ser no futuro.

Se você é daqueles que detesta preliminares e a exacerbada objetividade faz com que vá direto ao mérito, pode pular essa parte. Entretanto, fique sabendo que a sua compreensão ficará reduzida. Hoje tudo é rápido e objetivo. Não se escreve mais, manda-se um emotion. A jabuticaba produz em seis meses, as sentenças são diminutas e os motéis anunciam vantajosas promoções de 15 minutos por 7 reais. Nas decisões judiciais essa efetividade malsã pode ensejar embargos de declaração, para não falar do prejuízo às partes. Na área amorosa, a ausência de preliminares pode significar um pé na bunda do apressadinho, acostumado com instagram, whatsapp e quejandos. Nessa parte, vale uma constatação. Muito se conspira a favor da burrice.

O processo sincretizou, a competência foi relativizada e o foro de estático passou a itinerante. Um pouco de história ajuda a situar o tema e a compreender o presente.

A competência para a execução de título judicial era absoluta, ou seja, deveria ser processada perante o juízo onde foi proferida a sentença. Tratava-se de competência funcional, portanto, absoluta.  A lei que aboliu a então denominada execução fundada em título judicial e introduziu o cumprimento de sentença no CPC/73 como uma das fases do processo de conhecimento (lei 11.232/05) relativizou a competência. Foi essa lei que, entre tantos outros dispositivos, inseriu o art. 475-P, cujo parágrafo único previa que “o exequente poderá optar pelo juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo atual domicílio do executado, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de origem”.

Essa estrutura sincrética (conhecimento e execução num só processo) foi preservada no CPC de 2015, bem como a competência relativa, com a opção de o exequente escolher outro foro, quando, originariamente a competência fosse do “juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição” (inciso I do parágrafo único do art. 516) e “juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória, de sentença arbitral, de sentença estrangeira ou de acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo[3] (inciso III).

Neste ponto, para melhor compreensão, vale a transcrição comparada dos artigos 475-P do CPC/73 e 516 do CPC/2015:

Anteriormente ao advento da lei 11.232/05, a competência para a execução do título judicial era absolutíssima. A execução – até então não se falava em cumprimento da sentença, e sim em execução – da decisão judicial era levada a efeito perante o juízo que a prolatou. Em se tratando de sentença, competente era o juízo de primeiro grau onde a sentença foi proferida. No caso de causa de competência originária (ação rescisória, por exemplo), a competência era (e ainda é) do tribunal que originariamente decidiu a demanda.

Após a edição da lei 11.232/05 o panorama foi em parte alterado. O CPC/73 passou a prever que, na hipótese de a competência ser fixada no “juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição” (inciso II do art. 475-P), era permitida a escolha do exequente pelo juízo do local onde se encontravam bens sujeitos à expropriação ou pelo do atual domicílio do executado. Na hipótese do inciso I, os tribunais continuaram a ser absolutamente competentes (hipótese de competência funcional) para o cumprimento do julgado em causas da sua competência originária. Exemplificativamente, a competência para cumprimento do julgado proferido em uma ação rescisória que tramitou perante o TJ/MG é desse tribunal, sem possibilidade de escolha de qualquer outro foro. Também na hipótese do inciso III (execução de sentença penal condenatória, de sentença arbitral ou de sentença estrangeira), embora a competência interna seja relativa, não se permitia a possibilidade de escolha.

Na Comissão de Juristas do Senado Federal, incumbida da elaboração do novo CPC, quando da redação do art. 516, cheguei a sustentar a conveniência de autorizar a escolha do foro de cumprimento da sentença pelo exequente em todas as hipóteses previstas nos incisos I, II e III. Assim, tanto naquelas causas de competência originária de tribunal, quanto nas que foram decididas no primeiro grau de jurisdição e nas execuções de sentença penal, arbitral, estrangeira e acórdão de tribunal marítimo, poderia o exequente, sempre tendo em vista a economia e efetividade da execução, optar pelo juízo do atual domicílio do executado, quando o domicílio tivesse sido mudado no curso do processo, ou pelo juízo do local onde se encontram os bens.

O argumento da “competência funcional” havia caído por terra, uma vez que a própria Comissão havia deliberado que na hipótese do inciso II (juiz que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição) a competência, de funcional-absoluta transmudou-se para relativa e itinerante. Como não há distinção ontológica entre decisões proferidas no primeiro e no segundo grau de jurisdição (ambas são aptas à formação da coisa julgada), também não havia sentido de diferenciá-las no que respeita à possibilidade de deslocamento, fenômeno aqui chamado de “itinerização“. O argumento que preponderou é que, no caso de decisões proferidas pelos tribunais nas causas de sua competência originária não era conveniente permitir que o cumprimento fosse feito perante juízo de primeiro grau. Obviamente que, se a decisão foi proferida em uma ação rescisória julgada pelo TJ/MG, caso permitido o deslocamento para o foro da comarca de Uberlândia, local onde o devedor (dos honorários, por exemplo) possui bens, o procedimento referente ao cumprimento desenvolver-se-ia, na sua integralidade, perante o juízo cível da comarca de Uberlândia.

 

EXECUÇÃO NO TRIBUNAL OU NO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU, QUE DIFERENÇA FAZ?

É de indagar: do ponto de vista da preservação da competência do tribunal, que diferença faz o processamento do cumprimento dos seus julgados, proferido em causas de sua competência originária, se dar perante o próprio tribunal ou em outro juízo, ainda que de grau inferior? Na primeira hipótese (é o que manda a literalidade da lei), a execução seria levada a efeito por carta de ordem; na segunda, o próprio juízo de primeiro grau, independentemente de qualquer ordem ou delegação, praticaria os atos necessários à realização do crédito. Apenas mais um dogma seria rompido. Nada mais. Sequer o argumento da localização dos autos prevalece. Processo em papel, que deva ser mantido no tribunal, porque ali tramitou a causa de competência originária, é algo jurássico, coisa de um passado tão distante quanto os hieróglifos.

O vetor que norteia a distribuição dos processos não mais pode ser os dogmas cultuados no processo chiovendiano. Hoje estamos preocupados com acesso à justiça, com o devido processo legal, que implica efetividade, ou seja, o máximo de resultado com o mínimo custo. É um processo que tem em mira o custo/benefício. O máximo de garantias e de economia. Processo desnecessariamente demorado é processo que fere o princípio da economia de tempo e dinheiro; é processo inefetivo sob todos os aspectos, principalmente sob o ângulo do resultado útil.

O escopo da norma é realmente viabilizar a efetividade da pretensão executiva“, afirma o STJ, no citado REsp, para sustentar a possibilidade de o exequente optar pelo foro que seja mais prático para a realização dos atos executivos. Na linha sustentada, nada impede que o cumprimento de sentença se inicie no foro da comarca de Brasília e, a requerimento do exequente, sob o fundamento de que o executado adquiriu bens de mais fácil execução no território da comarca de Diamantina, para lá se desloque o procedimento. Posteriormente, de acordo com a conveniência para a execução (binômio economia e efetividade), nada obsta que a competência seja deslocada para a comarca de Goiânia, sempre a requerimento do exequente, porque no território dessa comarca, o executado fundou uma faculdade. É mais racional proceder à penhora das cotas da sociedade mantenedora da faculdade, que tem sede em Goiânia, na comarca de Goiânia.

Vamos encaminhando para fechar a leitura do art. 516, à luz do princípio da efetividade. Esse princípio serviu de medida para afastar qualquer óbice à “itinerização” do cumprimento da sentença na hipótese do inciso II. Nem preciso dizer que a medida utilizada para o inciso II também se aplica ao inciso III, uma vez que a previsão de deslocamento da competência em ambas as hipóteses conta com texto expresso no parágrafo único do mesmo artigo. O STJ apenas disse o que a lei não vedava, isto é, o deslocamento da competência pode se dar mesmo depois de iniciado o procedimento.

Quanto ao inciso I do art. 516, pode-se argumentar que não há previsão legal. Concordo. Realmente o parágrafo único do art. 516 não menciona a possibilidade de deslocamento da competência quando se tratar de execução de decisão proferida por tribunal em causa de sua competência originária. De qualquer forma, a ratio decidendi do referido julgado aplica-se ao inciso I e pode ser invocado como precedente. Ora, se o escopo da norma é viabilizar a efetividade da pretensão executiva, também na hipótese do inciso I pode-se aplicar o mesmo princípio.

Não se pode negar que em certos casos os órgãos judiciais utilizam-se de parâmetros principiológicos em detrimento da regra. Mesmo havendo regra, não é incomum, ainda que paradoxalmente, o tribunal afastá-la, para aplicar um princípio. Aqui nem se pretende afastar a regra, mas apenas potencializar o seu escopo, a fim de que a execução de decisões de tribunais, em causa de sua competência originária, seja mais efetiva, menos custosa e mais rápida. É o caso de se interpretar extensivamente o parágrafo único do art. 516, para contemplar também o inciso I do caput. O legislador disse menos do que pretendia. Cabe a nós juristas alcançar a vontade tanto da lei, quanto do legislador. E creio que hoje também seria a vontade da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto do novo CPC.

Pegando um gancho. Como já defendi a tese da “itinerização” de todo e qualquer cumprimento de sentença, pego um gancho para sustentar o tal fenômeno processual também para a execução de título extrajudicial.

O art. 781, em cinco incisos, dispõe sobre os foros competentes para a execução. A regra geral, inserta no inciso I basta para a nossa análise. Segundo essa regra, a execução pode ser proposta no foro: a) de domicílio do executado; b) de eleição constante do título; ou, de c) de situação dos bens a ela sujeitos.

A autonomia da vontade leva a supor que o foro de eleição prevalece sobre todos os outros. Mas o STJ já decidiu (CC 107.769/AL, de relatoria da ministra Nancy Andrighi) que essa competência é concorrente. Em sendo assim, o exequente no momento do ajuizamento da ação pode optar por qualquer um desses foros.

Os demais incisos do art. 781 (II a V) tratam de foros concorrentes, que se juntam às hipóteses gerais previstas no inciso I, não havendo interesse para o que aqui se pretende demonstrar.

Embora não constitua objeto deste artigo dissecar as regras sobre competência, mas apenas demonstrar, nesta parte, que também a competência para a execução de títulos extrajudiciais pode sofrer alterações ao longo do procedimento, vou dar uma palhinha aos meus leitores.

Palhinha. Aplica-se ao processo de execução as regras constantes no art. 63 e seus parágrafos. A competência territorial para ajuizamento do processo de execução é relativa e, portanto, pode ser modificada pelas partes, via convenção (eleição de foro). O juiz, de ofício, antes da citação, na hipótese de cláusula abusiva, pode declará-la ineficaz.

Em se tratando de duplicata, o foro competente para a execução “é o da praça de pagamento constante do título, ou outra de domicílio do comprador e, no caso de ação regressiva, a dos sacadores, dos endossantes e respectivos avalistas” (art. 17 da lei 5.474/68). Caso o título executivo seja um cheque, o protesto ou a execução devem ocorrer “no lugar de pagamento ou do domicílio do emitente” (artigo 48, da lei 7.357/85).

Voltemos à competência definida no inciso I do art. 781. O STJ já afirmou que se trata de competência concorrente, assim, pode o exequente optar por ajuizar a execução no domicílio do executado, no foro eleito pelas partes, ou no foro de situação dos bens a ela sujeitos.

Suponhamos que a execução foi ajuizada no domicílio do executado, na cidade de Pedro Leopoldo-MG, mas posteriormente veio a verificar que ele não possuía bens passíveis de execução naquele local, mas adquiriu uma belíssima cobertura na Avenida Vieira Souto, no Rio de Janeiro. Será que o exequente pode requer a remessa da execução para o foro do Rio de Janeiro?

Não há regra sobre essa possibilidade de deslocamento, ou pelo menos ela não é clara. É aqui que entra a hermenêutica. As normas do processo de execução aplicam-se subsidiariamente ao cumprimento de sentença (arts. 513 e 771). Igualmente, aplicam-se subsidiariamente ao processo de execução as disposições que regem o processo de conhecimento (parágrafo único do art. 771). Não há incompletude no ordenamento jurídico. As normas fluem de um para outro espaço, como se líquido fossem. Entre a execução e o processo de conhecimento essa comunicabilidade é ainda mais patente. Ora, se assim é, as normas do art. 516, que autorizam o deslocamento de competência, também se aplicam à execução do título extrajudicial.

Mas há um argumento mais forte, utilizado pelo STJ para autorizar a remessa de procedimento de cumprimento de sentença para outro foro, seja porque ele, o executado, mudou o seu domicílio, seja porque nele foram encontrados bens passíveis de execução. Trata-se da efetividade da execução. As normas devem viabilizar a efetividade da pretensão executiva, disse o STJ. Pouco importa se trata de cumprimento de sentença ou de execução de título extrajudicial, digo eu. Em dias de hoje, os princípios tomam até o lugar das regras. Eles têm a força e são manejados com muita habilidade, dependendo da conveniência deste ou daquele argumento. Aqui não se trata de afastar a regra, mas apenas de se aplicar à execução de títulos extrajudiciais as regras, com a principiologia que lhe é pertinente, do cumprimento da sentença.

Conclusão. Tanto no cumprimento da sentença quanto na execução de títulos extrajudiciais a “itinerização” da competência se mostra possível. Desde que mais econômico e mais efetivo o deslocamento da competência, o exequente fica à vontade para requerer ao juiz que aperte o botão do processo eletrônico e remeta (com uma decisão interlocutória, obviamente) os autos do procedimento para outro juízo. Xô perpetuatio jurisdicionis! Quantas palavras – em vão – disseram-me sobre você nos tempos de faculdade.  Naqueles tempos, piamente acreditava na lei e cultuava dogmas. Quanta ingenuidade.  Agora sei que dura lex, sede latex. Em Português, “a lei é dura, mas pode ceder.” Quanto aos dogmas, depois de infindáveis sessões de psicodescarrego, nutro a esperança de merecer alta. Em homenagem aos queridos mestres, batizei a minha égua campolina de Perpetuatio.

[1] Trata-se de uma metonímia. A sugestão é para que voltemos imediatamente a ler Hermenêutica e aplicação do direito, de Carlos Maximiliano.

[2] A teoria discursiva do direito (ou direito discursivo) foi desenvolvida por Jürgen Habermas e Robert Alexy. Em termos sintéticos, trata da aplicação d princípios e regras da teoria geral do discurso no campo do direito

[3] O inciso X, do artigo 515 do CPC/2015 foi vetado pela Presidência da República, logo o “o acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo” não tem  natureza de título executivo judicial.