CRISE FINANCEIRA E SOCIEDADE LIMITADA: QUEM SENTA À CABECEIRA PAGA A CONTA?
Luciano Ramos de Oliveira
Há muito se conhece a expressão “quem senta à ponta (cabeceira) paga a conta” ou a expressão “pagar o pato” — oriunda da obra “Facetiae”, de Giovanni Bracciolini, de 1450. A primeira expressão remete àquele sujeito poderoso e que, por tal razão, se senta à ponta da mesa e sempre paga a conta. Já a segunda reflete a situação em que um sujeito, de boa-fé, é enganado e acaba sofrendo as consequências de atos cometidos por outrem.
Vale mencionar que a realidade das sociedades limitadas no Brasil, desde o ano de 2020, apresenta, de forma sintética, o seguinte cenário: 4.123.979 sociedades limitadas ativas[1]; exercício da atividade empresarial sem administrador profissional (cerca de 98,34% das limitadas); e crise econômica derivada da pandemia da Covid-19. Elementos que configuram “terreno fértil” para ascensão de conflitos societários.
Assim, conectando as expressões populares à realidade das sociedades limitadas, é pertinente o seguinte questionamento: quem paga a conta (ou o “pato”) em tempos de crise financeira da empresa? Em outros termos: quem deve suportar as dívidas sociais tidas no desenrolar das atividades empresariais nas sociedades limitadas?
A vivência empresarial brasileira tem demonstrado que, em casos de alto endividamento das limitadas, os sócios acabam por optar pela dissolução irregular da sociedade em prejuízo aos credores, seja o Fisco, sejam os credores em geral.
Contudo, poderá ocorrer a hipótese em que apenas parcela dos sócios foge à obrigação de dissolver e liquidar a sociedade (artigo 1.033 e seguintes do Código Civil), restando apenas aos sócios conscientes do dever legal imposto a responsabilidade pelo adimplemento das dívidas sociais para regular dissolução. Quanto à situação hipotética, o Código Civil e a própria sistemática das sociedades empresariais asseguram o direito de regresso em face dos demais sócios evasivos.
Por óbvio, não se está a dissertar acerca da solidariedade da integralização do capital social capitulada no artigo 1.052 do Código Civil, mas, sim, nas situações em que, a despeito da integralização do capital social, remanescem dívidas sociais da sociedade.
É fundamental apontar que, além da contribuição para o capital social do empreendimento e da affectio societatis, a participação nos lucros e nas perdas constitui elemento específico (e essencial) das sociedades[2].
A legislação civil busca garantir, a todos os sócios, a participação nos lucros quanto a participação nas perdas, uma vez que as duas são correlativas. É dizer: “(É) Contraditório que um sócio seja excluído da participação dos ganhos, e corra o risco de perder sua contribuição sem uma utilidade correspondente, ou que seja completamente excluído das perdas, de modo que possa conseguir lucros sem arriscar nada“[3].
Como se vê, não encontra guarida na legislação, nem no acervo doutrinário, o fato de que só alguns dos sócios venham a ter seu patrimônio atingido para pagamento de dívida pertencente à empresa que todos, incluindo-se os sócios evasivos, na proporção de suas quotas, exerciam. Isso porque a previsão normativa do artigo 283 do Código Civil assegura que o “devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos codevedores a sua quota“.
Portanto, mesmo que existente parca jurisprudência enfrentando a temática [4], avista-se que, por não se tratar de responsabilidade dos sócios perante terceiros, mas perante os demais sócios, parece hígido o direito de regresso do sócio probo que adimpliu com dívida comum da sociedade então havida com aqueles sujeitos evasivos.
Dessa forma, no caso de sociedades limitadas em que todos participam dos lucros e das perdas, conforme as respectivas quotas, o emprego das expressões populares acima mencionadas não são verdades absolutas.
O sócio majoritário que “senta à cabeceira” poderá exigir do minoritário o devido ressarcimento, bem como o sócio minoritário que “pagou o pato” poderá direcionar pretensão indenizatória ao majoritário por ter arcado com o pagamento de dívidas comuns. Claro, sempre na proporcionalidade de suas quotas sociais (artigo 1.052 do Código Civil)
É necessário e salutar o direito de regresso no âmbito das sociedades limitadas para se evitar enriquecimento sem causa e posturas aventureiras de sócios descompromissados com a função social da empresa.
Em passo de conclusão, a temática do direito de regresso, frente ao cenário de crise econômica que assola o universo empresarial brasileiro, merece maior atenção por parte dos empresários para evitar que assumam, isoladamente, encargos financeiros que devem ser distribuídos aos demais sócios, e repelir a pecha das expressões populares no âmbito societário.
[1] Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletim-do-mapa-de-empresas/boletim-mapa-de-empresas-1o-quad-2020.pdf.
[2] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário, v.1, 9.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 235-238.
[3] FERRARA JUNIOR, Francesco; CORSI, Francesco. Gli imprenditori e le societá. 11. Ed. Milano: Giuffré, 1999, p.287.
[4] TJSP: Apelação Cível 1018512-32.2015.8.26.0602; relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Sorocaba — 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/09/2021;); e TJDFT: Acórdão 1202304, 07167122520188070001, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 18/9/2019, publicado no DJE: 27/9/2019.