CRÉDITO DE ICMS SOBRE INSUMOS E A TRANSFERÊNCIA DE CRÉDITOS NA FORMA DO CONVÊNIO 178/23 E LC 204/23
Adolpho Bergamini
Desde a criação do ICMS, contribuintes e Fiscos se enfrentam em debates acalorados em torno dos itens utilizados na fabricação de bens que podem, ou não, serem fontes de créditos do imposto. O tema foi recentemente decidido em 11/10/2023 pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar os Embargos de Divergência no REsp nº 1.775.781/SP, no qual decidiu que o conceito é amplo e abrange não só os bens que sofrem desgastes imediatos, mas, também, aqueles que são consumidos ou desgastados gradativamente no processo produtivo, desde que comprovada a necessidade de sua utilização para a realização do objeto social (atividade-fim) do estabelecimento empresarial.
Tendo em vista que a decisão do STJ foi dada em recurso proveniente de São Paulo, permito-me fazer breves digressões a respeito da discussão a partir das normas paulistas.
No início da década de 1980, a Sefaz-SP editou a Decisão Normativa CAT 2/1982 com o intuito de normatizar regras à tomada de créditos do então ICM sobre a entrada de feltros utilizados na fabricação de papel. Embora versava sobre tema bem específico, a Consultoria Tributária da Sefaz-SP buscou definir conceitos mais abstratos para determinação de quais insumos estavam, ou não, autorizados ser fontes de créditos do imposto, já que tais regras não poderiam ser obtidas à partir do próprio texto constitucional e também não havia norma estadual dispondo sobre os critérios ao crédito por indústrias. A solução foi encontrar amparo no artigo 32, I, do Ripi/72, cujo texto era no sentido de que era possível a tomada de créditos de IPI sobre “matérias-primas, produtos intermediários e material de embalagem (…), compreendidos, entre as matérias-primas e produtos intermediários, aqueles que, embora não se integrando no novo produto, forem consumidos, imediata e integralmente, no processo de industrialização”.
A Decisão Normativa CAT 2/1982 explorou dois temas fundamentai: diferença entre produtos intermediários e produtos secundários; o consumo imediato e integral do insumo no processo de industrialização como dado relevante à definição do direito ao crédito.
A respeito das classificações produtos intermediários e produtos secundários, a Decisão Normativa CAT 2/1982 diz que o produto intermediário integra a estrutura físico-química do novo produto, sem que haja alteração em sua estrutura intrínseca. Deu como exemplo os pneus que integram o automóvel industrializado e as dobradiças que, na marcenaria, irão compor o móvel fabricado. Em ambos os casos os bens integrantes dos produtos não perderam suas propriedades físicas e/ou químicas. Isto, para a Sefaz-SP, é produto intermediário. Já os produtos secundários são aqueles que se consomem no processo de industrialização, mas, não se integram ao novo produto. Para ilustrar seu conceito, a Sefaz-SP deu como exemplo o calcáreo, que na indústria de cimento é matéria-prima, mas na siderurgia é produto secundário porque é usado somente para extração das impurezas do minério de ferro, com as quais se transforma em escória se consumo no processo industrial sem integrar o novo produto.
Havia, portanto, certa relevância em se diferenciar produtos intermediários e produtos secundário, já que a base legal tomada de empréstimos — o artigo 32, I, do Ripi/72, fazia menção explícita ao vocábulo produtos intermediários. Logo, se o texto legal fez essa referência, passou a ser importante conceituá-lo adequadamente e diferenciá-lo de outros grupos de bens — como os produtos secundários.
Outro elemento explorado pela Sefaz-SP foi o consumo imediato e integral do bem no processo de industrialização. Ao citar decisão proferida pelo Tribunal Federal de Recursos na Apelação 44.781/SP, que se funda exatamente no artigo 32, I, do Ripi/72, o Fisco Paulista tomou para si o entendimento de que, para fins do então ICM, para que houvesse o crédito era necessário que o bem tenha desgaste imediato e integral no processo produtivo. O estado de São Paulo nunca teve em seu repertório legal, seja em leis propriamente, seja em Regulamentos de ICMS, qualquer disposição sobre regras acerca do tempo em que os bens devem ser desgastados no processo produtivo. Foi justamente em razão dessa ausência que a Decisão Normativa CAT 2/82 buscou fundamento no Ripi/72.
Os Regulamentos de IPI posteriores ao de 1972 deixaram de prever o desgaste imediato e integral como requisito à definição de produtos intermediários. Desde o Decreto 83.263/79 até o atual Decreto 7.212/10 não há nada a respeito. Mas, ainda assim, mesmo após a retirada do fundamento normativo que dava esteio ao entendimento firmado na Decisão Normativa CAT 02/82, o Fisco Paulista manteve o seu entendimento sobre a necessidade de haver o tal desgaste integral e imediato ao dizer que “o vigente Regulamento do IPI, aprovado pelo Decreto Federal 82.263-79, em seu artigo 66, não mais utiliza os advérbios ‘imediata e integralmente’. É exato. Entretanto, conforme salientamos na Resposta à Consulta 626-80, aprovada pelo CAT-G, a legislação estadual não foi, nesse passo, alterada”.
Sobre esses dizeres, é importante apontar que a escusa apresentada pelo Fisco Paulista, sobre o fato de não haver modificação da legislação estadual, não tem nenhuma justificativa. É que, conforme já dito, as normas paulistas jamais definiram o desgaste imediato ou integral como elemento determinante ao crédito, tanto assim que houve a busca de amparo na legislação do IPI. A eventual ausência de modificação na legislação estadual, mencionada na Decisão Normativa CAT 2/1982, dizia respeito às normas gerais do imposto, não à disposição específica sobre os créditos no contexto do processo produtivo.
Pois bem. Em 2001 a Sefaz-SP editou a Decisão Normativa CAT 1/2001. Simplificou o regime ao equiparar material secundário e intermediário e trazer ambos ao campo dos bens creditáveis, abandonando, portanto, a diferenciação estabelecida em 1982. Mas, a novel Decisão Normativa não se pronunciou sobre eventual necessidade de o insumo se desgastar imediata e integralmente no processo produtivo. Ao citar Aliomar Baleeiro, diz apenas que “insumos são os ingredientes da produção, mas há quem limite a palavra aos ‘produtos intermediários’ que, não sendo matérias-primas, são empregados ou se consomem no processo de produção” (Direito Tributário Brasileiro, Forense Rio de janeiro, 1980, 9ª edição, pág.214). Nessa linha, como tais têm-se a matéria-prima, o material secundário ou intermediário, o material de embalagem, o combustível e a energia elétrica, consumidos no processo industrial ou empregados para integrar o produto objeto da atividade de industrialização, própria do contribuinte ou para terceiros, ou empregados na atividade de prestação de serviços”. Depois, traz alguns exemplos do que poderia ser tido como insumo creditável pelo ICMS. Muitos deles entram em contato diretamente com o bem em produção, tal como o instrumento de corte, que podem, ou não, ter desgaste imediato. Mas, outros certamente não entram em contato com o bem em fabricação, como os bens utilizados nos efluentes e no controle de qualidade e de teste de produtos.
É exatamente aqui que reside a discórdia entre Fisco e contribuintes: a falta de definições claras, pela legislação positiva, da necessidade de haver, ou não, desgaste imediato do bem, aliada a definições genéricas por parte do Fisco.
Após anos de embates, a discussão chegou ao STJ e a Corte entendeu que o direito ao crédito será validado quando comprovada a necessidade do uso de produtos intermediários para a atividade-fim do contribuinte. Ou seja, os custos de produção que viabilizam o direito ao crédito de ICMS aos contribuintes é amplo e será verificado a partir da análise de sua necessidade ao processo produtivo.
O tema ganha mais relevância ainda quando se analisam as normas advindas depois do julgamento da ADC nº 49 pelo STF, que decidiu pela não incidência de ICMS sobre transferências entre estabelecimentos da mesma empresa, mas, deixou em aberto maiores detalhes quanto aos créditos do imposto existentes nas contas gráficas dos estabelecimentos.
De acordo com a Cláusula Quarta, inciso II, do Convênio ICMS nº 178/2023, publicado em 1º/12/2023, a fórmula de cálculo do crédito de ICMS a ser transferido terá como base “o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento”. Esse texto é idêntico ao que dispunha o artigo 13, §4º, inciso II, da LC nº 87/1996, que versava sobre a base de cálculo de ICMS nas transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, que gerou incontáveis acusações fiscais pelo país justamente por conta da interpretação restritiva da expressão “material secundário”. A LC nº 204/2023, publicada em 29/12/2023, poderia ter se debruçado sobre a questão, mas, a base de transferência dos créditos sequer foi abordada.
Esse cenário traz inseguranças. Afinal, ambas as normas são posteriores ao julgamento do Embargos de Divergência no REsp nº 1.775.781/SP, que, consoante já informado, é de 11/10/2023. Ou seja, já poderiam ter sido editadas com nova versão de redação para deixar claro que a base dos créditos de ICMS a serem transferidos é formada, no que tangem aos materiais secundários, pelos valores que são necessários ao desenvolvimento do processo produtivo do contribuinte. Mas, ao invés disso, o texto do Convênio ICMS nº 178/2023, corroborado pela omissão da LC nº 204/2023, preferiu replicar, literalmente, os dizeres restritivos do artigo 13, §4º, inciso II, da LC nº 87/1996.
É provável que, em decorrência disso, sejam lavradas novas acusações fiscais com glosas de créditos de ICMS contra contribuintes que tenham incluído, sob a rubrica “material secundário”, valores relativos a insumos que não atendem às definições restritivas adotadas pelos Fiscos. É possível que aí esteja o embrião de um novo contencioso tributário. Aguardemos.