CPC PERMITE USO ESTRATÉGICO DA TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE PELOS ADVOGADOS
José Roberto Mello Porto
Dentre os temas verdadeiramente inaugurados pelo Código de Processo Civil de 2015 está a possibilidade de requerimento de tutela antecipada em caráter antecedente (artigos 303 e 304). No diploma anterior, uma tutela provisória só podia ser pedida antes de iniciado o processo principal caso tivesse natureza cautelar.
A propósito, é sempre didático rememorar a estruturação da tutela provisória feita pelo legislador. Tal gênero, que se caracteriza por algumas características como a provisoriedade e a cognição sumária, se ramifica em duas espécies: a tutela da evidência e a de urgência, onde se inserem a tutela antecipada e a tutela cautelar.
A distinção entre ambas é antiga: a tutela jurisdicional antecipada satisfaz a parte a quem seu deferimento beneficia, antecipando os efeitos de uma (provável) tutela final, enquanto a jurisdição cautelar garante que, ao cabo do processo, a resposta judicial ainda se afigure útil e viável, não se confundindo consigo.
Cada uma delas pode, por sua vez, ser requerida em caráter incidental (no bojo de um processo principal — aí incluído o pedido na petição inicial) ou antecedente (pretérito à relação processual de cognição exauriente, de forma destacada). Quanto à cautelar, não há qualquer novidade: o CPC/1973 previa a dicotomia. No caso da tutela antecipada, porém, o pleito divorciado da petição inicial se revela inédito em nosso ordenamento, embora preexistente no Direito estrangeiro[1].
A inserção, como é natural, vem gerando inquietação doutrinária e prática, fazendo pulular dúvidas. Principiemos nossa reflexão pela dinâmica de funcionamento da técnica.
Basicamente, o legislador autoriza um pedido exclusivo de concessão de tutela antecipada. O requerente provoca a jurisdição voltado apenas à tutela antecipada — por isso há doutrina que prefere evitar as denominações “autor” e “petição inicial”[2].
Passo seguinte é a análise pelo magistrado, que poderá (i) determinar a emenda do requerimento, por vício formal[3], (ii) deferir ou (iii) indeferir a tutela.
Caso entenda ausentes o requisitos do artigo 300 (probabilidade do direito e perigo de dano ou risco à utilidade do processo), o julgador considerará improcedente o pedido, oportunizando, apenas, que o requerente emende (adite) a petição, em cinco dias, completando-a, nos moldes do artigo 319. Na hipótese de inércia, o processo será extinto sem resolução do mérito, evidentemente.
Por outro lado, e esta é a hipótese mais interessante, se preenchidos os fatores autorizadores da antecipação de tutela, o juiz a concederá. A partir daí, instaura-se uma autêntica análise combinatória.
Isso porque tanto o autor como o réu terão duas saídas. O beneficiado pela concessão optará por se satisfazer com a decisão, quedando-se inerte, ou por aditar a petição, inclusive adicionando argumentos, provas e delineando, em definitivo, o pedido final (acrescentando a pretensão de compensação por danos morais, por exemplo).
Por sua vez, o réu, citado e intimado acerca da decisão antecipatória e para comparecer, sendo hipótese, à audiência de conciliação ou de mediação, elegerá entre a postura inerte, ponderando a (in)conveniência no prosseguimento do custoso processo judicial, e a insurgência contra o pronunciamento do magistrado — pela lei, o recurso de agravo de instrumento.
Os cenários resultantes são os seguintes:
Se o autor adita seu pedido e o réu agrava da decisão, o processo segue, normalmente, como se a tutela tivesse sido requerida na inicial;
Se o autor não adita o pedido e o réu agrava, o recurso perde o objeto, e a tutela, seus efeitos, extinguindo-se o processo sem resolução meritória;
Se o autor adita e o réu não age, pela lei, deveria seguir o processo. Contudo, a doutrina[4] sustenta que, em homenagem ao princípio da cooperação, deverá o magistrado ouvir o autor e esclarecê-lo de que, em querendo, a tutela poderia se estabilizar. A hipótese é bem crível, já que, embora os dois prazos coincidam, em abstrato (15 dias), no plano concreto as intimações têm marcos diversos: o autor fica ciente da concessão antes do réu, muito provavelmente;
Se ambos permanecerem inertes — o autor não aditar e o réu não reagir —, a tutela se estabilizará.
A estabilidade da referida tutela[5] é questão bastante intrigante. Na prática, o diploma processual garante que continuará a produzir efeitos, apenas sendo impugnável nos dois anos a seguir do deferimento, por uma ação autônoma para reforma, modificação ou invalidação da decisão interlocutória.
Curioso é que o dispositivo afirma que qualquer das partes poderia mover tal ação, sendo de se questionar se o autor, satisfeito na pretensão, efetivamente teria interesse processual para tanto. Buscando responder afirmativamente, parte da doutrina entende que essa ação serviria também para confirmar a tutela, isto é, para atribuí-la cognição exauriente, formando coisa julgada material[6].
Essa saída só se justifica porque, ao menos de acordo com a maioria dos autores e com a própria lei, a decisão que se estabiliza não faz coisa julgada[7]. Embora, em termos de eficácia, os dois institutos não se diferenciem, a coisa julgada pressupõe cognição exauriente. Também se aponta, como uma segunda distinção, o efeito positivo desta, a vincular outros juízos sobre a questão, o que inexistiria na estabilidade criada pelo legislador[8].
A esse respeito, cabe um parêntesis. A maior discussão sobre o instituto consiste, precisamente, na extensão da manifestação de desaprovação do réu. Em outras palavras: apenas o recurso será capaz de impedir a estabilização ou outras manifestações extrínsecas de discordância podem bastar?
Na doutrina, se encontram decisões para todos os lados. Um primeiro grupo[9] prefere a interpretação literal, exigindo a interposição do agravo. Outra linha, repleta de adeptos, advoga a abertura do termo “recurso”.
Nesse grupo, há quem entenda que a contestação[10] apresentada pelo réu ou a mera manifestação pela audiência de conciliação e mediação[11] bastariam para afastar o efeito estabilizador, enquanto outros [12]extraem do comando que meios impugnativos em geral atenderiam à exigência do artigo 304, como o pedido de suspensão de liminar, a reclamação, o mandado de segurança ou o pedido de reconsideração da decisão[13].
O Superior Tribunal de Justiça, na oportunidade que já teve de se manifestar a respeito, concluiu pelo afastamento da estabilização quando, sem interpor o agravo, o requerido contestou a pretensão, questionando, inclusive, o deferimento da tutela antecipada[14].
Como o tema ainda será muito debatido nos tribunais, estando mesmo longe de estar pacificado na própria corte da cidadania, a prudência recomenda que se recorra da decisão concessiva.
Esse cenário prático justifica um uso estratégico da técnica de requerimento antecipado, para além da motivação mais corriqueira, normalmente atrelada à falta de tempo para elaborar uma petição inicial completa, mas suficiente para desenhar um requerimento exclusivo de tutela satisfativa provisória.
Basta imaginar os casos de plantão judiciário, notadamente o noturno, nos quais o pedido dirigido ao Estado-juiz goza de tão clamorosa urgência que sequer poderia esperar o início do expediente forense para ser formulado. A questão é, como regra, de vida ou morte, não sendo viável ou recomendável, pelas circunstâncias extrajurídicas, que se aguarde a busca de toda a documentação específica.
Veja-se, por exemplo, o litígio entre segurado de plano de saúde que, ilegalmente, deixa de autorizar cirurgia delicadíssima ou internação em um centro de tratamento intensivo. Soa razoável exigir o contrato celebrado pelo consumidor, tantas vezes por adesão? Por óbvio que não.
O jogo processual, contudo, viabiliza uma segunda justificativa para o requerimento antecedente, calcada na estratégia processual. É o caso de pedido autoral que não inspire confiança suficiente para o deferimento de tutela final, mas que baste para um juízo de probabilidade positivo. Por vezes, mesmo o direito é discutível, podendo se afigurar desfavorável ao requerente — o risco de dano, no entanto, é que se mostra maior, justificando a concessão liminar.
O mesmo exemplo, do litígio entre o plano de saúde e o segurado, é capaz de possuir nuances mais complexas, como o fato de se tratar ou não de doença pré-existente. Outros pedidos vão na mesma linha, como o de restabelecimento do serviço de iluminação em razão de existir pessoa acamada que necessite de cuidados como remédios que devem permanecer refrigerados, havendo discussão quanto ao pagamento de faturas pretéritas.
Adentra-se, nesses hard cases, no campo da ponderação. Fato é que, em se convencendo o juiz que o mal menor é a antecipação de tutela, mesmo sem a fundamentação em patamar desejado, e em se quedando inerte o réu, a tutela se tornará estável.
O Direito, é bom lembrar, não socorre aos que dormem. Nem aos que deixam de recorrer (ou contestar).
[1] Costuma-se mencionar o référé francês como inspiração, embora existam naturais distinções. A respeito, ver o texto de Pedro Valim em <https://jus.com.br/artigos/60593/refere-frances-e-o-instituto-da-estabilizacao-da-tutela-antecipada>.
[2] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 210.
[3] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; MELLO PORTO, José Roberto Sotero de. Tutela antecipada antecedentes e sua estabilização: um panorama das principais questões controvertidas. Revista de Processo, v. 278, p. 215-233, 2018.
[4] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 175.
[5] Marinoni restringe as hipóteses em que pode haver estabilização. Com acerto, afirma o autor que a tutela declaratória, por exigir juízo de certeza, não pode alcançar esse patamar de imutabilidade (caso da declaração de paternidade), ao contrário da constitutiva — reajuste de aluguel, por exemplo (MARINONI, Luiz Guilherme. Estabilização de tutela. Revista de processo, vol. 279, p. 225-243, 2018).
[6] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 213. GODINHO, Robson Renault. GODINHO, Robson Renault. Comentário ao artigo 303. In CABRAL, Antonio do Passo. CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 478.
[7] Há quem pense diversamente, como o professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro já confidenciou em suas aulas na pós-graduação em Direito da Uerj.
[8] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Comentário ao artigo 304. In STRECK, Lenio Luiz et al. (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 428-430.
[9] MACHADO, Marcelo Pacheco. Novo CPC, tutela antecipada e os três pecados capitais. Disponível em: <http://jota.info/novo-cpc-tutela-antecipada-e-os-tres-pecados-capitais>.
[10] GODINHO, Robson Renault. Comentário ao artigo 304. In CABRAL, Antonio do Passo et al. (coords.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 479.
[11] MITIDIERO, Daniel. Comentário ao artigo 304. In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (coords.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 789.
[12] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos et al. (coords). Processo em jornadas. Salvador: JusPodivm, 2016., p. 421.
[13] Falando em sinal exteriorizante de resistência: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Comentário ao artigo 304. In STRECK, Lenio Luiz et al. (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 427.
[14] RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE. ARTS. 303 E 304 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU QUE REVOGOU A DECISÃO CONCESSIVA DA TUTELA, APÓS A APRESENTAÇÃO DA CONTESTAÇÃO PELO RÉU, A DESPEITO DA AUSÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRETENDIDA ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA. IMPOSSIBILIDADE. EFETIVA IMPUGNAÇÃO DO RÉU. NECESSIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO FEITO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. A controvérsia discutida neste recurso especial consiste em saber se poderia o Juízo de primeiro grau, após analisar as razões apresentadas na contestação, reconsiderar a decisão que havia deferido o pedido de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, nos termos dos arts. 303 e 304 do CPC/2015, a despeito da ausência de interposição de recurso pela parte ré no momento oportuno. (…) 3.2. É de se observar, porém, que, embora o caput do art. 304 do CPC/2015 determine que “a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”, a leitura que deve ser feita do dispositivo legal, tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, é que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação pela parte contrária, sob pena de se estimular a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os Tribunais, além do ajuizamento da ação autônoma, prevista no art. 304, § 2º, do CPC/2015, a fim de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada. 4. Na hipótese dos autos, conquanto não tenha havido a interposição de agravo de instrumento contra a decisão que deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela requerida em caráter antecedente, na forma do art. 303 do CPC/2015, a ré se antecipou e apresentou contestação, na qual pleiteou, inclusive, a revogação da tutela provisória concedida, sob o argumento de ser impossível o seu cumprimento, razão pela qual não há que se falar em estabilização da tutela antecipada, devendo, por isso, o feito prosseguir normalmente até a prolação da sentença. 5. Recurso especial desprovido. (REsp 1760966/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 04/12/2018)