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COPARENTALIDADE: UM NOVO MODELO FAMILIAR QUE SE APROXIMA

Marcial Duarte Coelho

SUMÁRIO: 1 Direito de Família, um Eterno Inconstante. 2 Parceiros Parentais. 3 Encontrando Interessados. 4 Para as Raízes do Direito Civil. 5 Delineando Algumas Diferenças. 6 Será o Fim das Famílias? 7 À Guisa de Conclusão: Seja Como For, que Seja uma Parentalidade Responsável. Referências.

                      

1 Direito de Família, um Eterno Inconstante

Pode-se dizer que o Direito de Família é um dos âmbitos normativos que mais sofreu transformações ditadas pelas mudanças culturais e sociais do mundo contemporâneo (PEREIRA, 2012). No Brasil, a saída de um modelo clássico, baseado em uma estrutura patriarcal e matrimonialista, para um modelo familiar focado no desenvolvimento do indivíduo (LÔBO, 2002) ainda ressoa no tecido social, vez que as condições gerais de tais alterações deram-se apenas com a Constituição Republicana de 1988. Aliás, nem bem aquele antigo modelo ficou superado, já outros aparecem no cenário moderno, desafiando legisladores, julgadores e operadores do Direito de um modo geral.

Exemplos recentes desses novos desafios não faltam: a acomodação das uniões homoafetivas, a definição dos limites da engenharia genética, as questões acerca das paternidades (e também maternidades) biológica, afetiva e registral (inclusive com a possibilidade de elas existirem simultaneamente em diferentes personagens), os direitos sucessórios ligados a uniões estáveis, as possibilidades de adoções por pessoas/casais que não o paradigmático casal heterossexual, as famílias poliafetivas, entre outras coisas. São marcas dessas questões a incerteza jurídica, gerada pela superação do modelo normativo posto, e uma boa dose de polêmica, em geral tributária de divergentes visões de mundo.

Parte dessas novidades surgiu em razão do desenvolvimento tecnológico. É o caso, por exemplo, das questões que se ligam aos exames de DNA e às inseminações artificiais, que se tornaram práticas mais corriqueiras apenas a partir do final do século passado. Outra parte nasceu das próprias modificações culturais a respeito de temas como casamento, laços de afetividade, igualdade entre homens e mulheres, responsabilidades parentais, etc. Ainda se pode enxergar, outrossim, outras questões que se encontram na confluência desses dois fatores – mudanças tecnológicas e sociais. De fato, dessa conjugação é que parece surgir um novo formato de família, na qual existe o liame do pai e da mãe com um filho gerado (a parentalidade), mas deixa de importar o relacionamento amoroso, sexual e até mesmo afetivo entre os pais, pelo menos em seu modelo clássico. É a denominada coparentalidade (no inglês, coparenting) ou parentalidade responsável, produzida a partir do que está sendo chamado de um “contrato de geração de filho” (PEREIRA, 2015). É objetivo desse trabalho lançar algumas luzes sobre essa novíssima configuração familiar (a propósito, poder-se-ia mesmo utilizar o termo “família” para tanto?), que está ganhando o mundo e vem, bem recentemente, despertando sensível interesse em muitos brasileiros.

2 Parceiros Parentais      

Patrícia [1] é uma funcionária pública e exerce um cargo técnico que lhe rende mediana remuneração. Possui atualmente 39 anos e há cerca de quatro anos divorciou-se do marido, com quem permaneceu por seis anos. Em razão de questões circunstanciais, o casal não teve filhos. Patrícia sabe que poderá levar muito tempo até encontrar um novo marido (algo que nem ela mesma pode garantir que irá, de fato, ocorrer), o que a deixa apreensiva tendo em vista a aproximação de uma idade limite, biologicamente falando, que lhe dê condições de engravidar.

Por sua vez, André e Vitor formam um casal homoafetivo. Tendo ambos atingidos a faixa dos 40 anos, viram crescer neles a vontade de ter um filho. Por coincidência, vieram a conhecer Mariana e Camila, também um casal homoafetivo, que se mudou recentemente para o mesmo prédio onde moravam. Embora Mariana seja indiferente, Camila, com seus 29 anos recém-completos, sonha fortemente em exercer a maternidade.

Já Daniel e Eduarda, ambos na casa dos 35 anos, são heterossexuais e se conhecem desde a faculdade, quando estabeleceram uma forte relação de amizade. Àquela época, então em tom de brincadeira, prometeram-se mutuamente que, se não encontrassem um parceiro amoroso em suas vidas, iriam ter, ambos, um filho em parceria. Com o passar do tempo, Daniel e Eduarda passaram a considerar, pouco a pouco, a brincadeira cada vez mais séria.

Histórias como essas, comuns nos dias atuais, poderiam muito bem despertar em seus protagonistas a vontade de estabelecer uma coparentalidade.

Isso porque a coparentalidade nasce do desejo de exercer a paternidade e/ou a maternidade, vale dizer, a vontade de ter um filho, mas sem que isso implique em assumir uma relação afetiva ou ainda que meramente sexual com o sexo oposto. É, na prática, uma parceria que, embora nasça em bases essencialmente contratuais, possui um importante fundo afetivo – o desejo de gerar uma criança e participar conjuntamente (coparticipar) de sua criação e educação.

O poder parental [2] compartilhado nasce do ajuste prévio realizado entre as partes de diferentes sexos envolvidas, mas sem produzir uma relação familiar horizontal entre essas. Opera-se, assim, a completa separação entre parentalidade e conjugalidade.

A coparentalidade é fruto, em última análise, do reforço conferido às liberdades individuais do moderno Direito de Família, com o qual se sobrelevou a dignidade do ser humano a uma posição de absoluta primazia (LÔBO, 2004). Em contrapartida, decaíram – com vigor – as clássicas proteções de caráter meramente institucional, e muitas vezes religioso, das famílias formadas tão somente pelo casamento entre duas pessoas de sexo oposto. De fato, o atual cenário traz a possibilidade de indivíduos poderem exercer o papel materno ou paterno, mas sem que isso venha a implicar, necessariamente, no estabelecimento de um vínculo amoroso, romântico ou mesmo meramente sexual entre eles.

Pereira (2012), com perspicácia, assim anota sobre o ponto:

“(…) o tripé que sempre esteiou o Direito de Família, sexo – casamento – reprodução, ficou totalmente alterado. O casamento deixou de ser o legitimador dos atos sexuais e não é mais necessário sexo para haver reprodução. Em outras palavras, ter filhos, criá-los e educá-los não está necessariamente atrelado a uma relação conjugal ou amorosa. Há pessoas que não querem ter filhos e só querem estabelecer uma relação conjugal; outras querem estabelecer uma família conjugal e parental. E há outras que querem ter filhos sem estabelecer relação conjugal.

Com efeito, o liame sexual nem mesmo é necessário. Em verdade, em casos de coparentalidade ele é mesmo a exceção. A maioria dos parceiros parentais optam pela inseminação artificial, evitando o contato sexual. Tal inseminação muitas vezes é “caseira“, feita com o uso de seringas. Em outras tantas vezes, lança-se mão de métodos mais complexos e caros, notadamente aqueles que se utilizam da intermediação de um profissional médico. Nesses casos, mais uma vez a tecnologia mostra-se a serviço das novas formações do Direito de Família. Mas não somente: a internet tem sido uma outra grande parceira dos “pais parceiros“.

3 Encontrando Interessados    

Na busca pelo(a) parceiro(a) ideal para gerar e criar um filho, a internet tem sido a maior responsável pelos encontros (SPAGNOL, 2016). Atualmente, cresce a existência de sites especializados em congregar e reunir futuros parceiros de parentalidade. No exterior, é possível encontrar páginas já com excelentes níveis de construção e organização, tais como a “Modamily[3], a “Coparents.com[4], a “Co-ParentMatch[5] e a “FamilyByDesign[6].

Em tais sites, todos de fácil interface, o usuário basicamente preenche um cadastro e cria um “perfil“, que conterá fotos, vídeos e dados a respeito de sua vida atual, o tipo de parceiro(a) que procura e como pretende conduzir a vida do filho. Outro usuário, caso se interesse, pode iniciar um contato e, talvez havendo sintonia e compatibilidades, evoluir para as tratativas a respeito de como se vai gerar, criar e educar a criança fruto de tal parceria. A parte da formalização contratual já costuma se dar não mais no mundo virtual, e conta com a assistência de profissionais advogados.

No Brasil, esta pesquisa não encontrou (ainda) nenhum website com finalidade comercial nos moldes que já existem lá fora. Aqui, o liame entre possíveis parceiros parentais dá-se, por enquanto, mediante comunidades no Facebook. A maior delas, denominada “Coparentalidade Responsável e Planejada[7], possui atualmente quase 1.800 membros. Por ser emblemático, merece destaque um excerto da “descrição” da comunidade naquela rede social:

Você quer muito ter um filho mas ainda não tem com quem?        

Então seu sonho está com os dias contados para se tornar realidade, mesmo sem relacionamento afetivo/amoroso/romântico e sem tirar do filho o direito de ter um pai e uma mãe.         

Essa nova configuração familiar não se trata de produção independente, mas sim de uma parceria de parentalidade (coparentalidade) firmada entre um homem e uma mulher que têm o desejo de compartilhar o amor, educação e criação de uma criança em comum de forma extremamente planejada e responsável.        

Assim como, no século passado, o casamento por amor fez uma grande revolução nas relações de família, que deixaram de ser essencialmente núcleos econômicos e reprodutivos, e o divórcio ‘surgiu’ para mostrar que, às vezes, o amor também acaba, não sendo mais garantia de manutenção da família tradicional; agora, outra grande revolução está começando.

No Brasil, já se materializava essa ideia, em pequena escala, é claro, por meio de contratos de geração de filhos. A diferença das famílias comuns é que, em vez de se escolher um parceiro para estabelecer uma relação amorosa ou conjugal, escolhe-se um parceiro apenas para compartilhar a paternidade/maternidade.

Em princípio, estas novas famílias parentais podem causar uma grande estranheza. Certamente não faltará quem entenda isso como o fim da ‘família tradicional’. Mas se engana quem pensa que esse é o surgimento de pais errantes e mães desvairadas. Muito pelo contrário. 

PARENTALIDADE RESPONSÁVEL    

Na modalidade de paternidade compartilhada, certamente, os filhos terão pais muito mais responsáveis e comprometidos com a sua criação e educação do que os muitos filhos de famílias constituídas nos moldes tradicionais, que muitas vezes não desejam ou planejam a vinda do bebê ou que, pior, os abandonam ou não se responsabilizam por eles.      

Muito em breve se tornará comum um novo modelo familiar parental, no qual os filhos não são frutos de uma relação conjugal ou sexual. A maioria dos interessados na parceria busca guarda compartilhada. A forma de concepção, natural ou artificial, será estipulada entre os parceiros, que se escolhem por afinidades e interesses em comum num espaço virtual que proporciona esse encontro.          

Na contramão do cada vez maior número de divórcios e, consequentemente, de filhos prejudicados pela alienação parental, a parceria de paternidade chega para proteger as crianças de um dos principais danos psicológicos causado na infância ou adolescência.”

Spagnol (2016) anota que a maioria dos participantes dessa espécie de site é composta por mulheres que possuem entre 30 e 45 anos. Muitas delas são profissionais talentosas e que abdicaram da maternidade na época mais produtiva de suas vidas e agora lutam contra o relógio biológico para realizar o sonho de ter filhos. Nada obstante, há muitos homens que também desejam transmitir seus genes sem se vincular emocionalmente à futura mãe de seus filhos.

4 Para as Raízes do Direito Civil          

Nada obstante a novidade, nota-se que a base da coparentalidade nasce de uma velha conhecida do ramo civilístico: a autonomia da vontade. De fato, do consenso das partes nasce não só o acordo de conceber (e até de como será essa concepção) um filho, como também de que forma se dará a criação, a guarda e a educação dessa criança.

Espera-se que haja uma guarda compartilhada do filho, mas a total igualdade de obrigações parentais não é imprescindível. Valerá o acordado, desde que ele esteja situado dentro das possibilidades legais atualmente já admitidas pelo Direito de Família. Nesse sentido, há uma certa semelhança com a situação de um casal separado que necessita disciplinar a guarda do filho. Todavia, uma grande diferença se faz presente: nunca houve qualquer relacionamento afetivo, notadamente no intuito de constituir família, entre o casal; e de um modo geral não há a perspectiva disso vir a ocorrer.

A concepção, regra geral, acontece mediante inseminação artificial. Todavia, é possível que o acordo estipule a concepção natural. Normalmente, tal opção é a escolhida por praticamente não requerer custos financeiros ou quando já há certo nível de afetividade entre o casal gerador.

É de se registrar que na atual configuração do Direito de Família brasileiro, notadamente após a Constituição Republicana de 1988, ganhou importância a liberdade individual, fruto do pleno reconhecimento da dignidade da pessoa humana. A última Carta Constitucional colocou o indivíduo como o seu principal vetor axiológico, o que terminou por impor uma ampla constitucionalização do Direito Privado nacional (ENGELMANN; WÜNSCH, 2017). Ao lado disso, tomou corpo o entendimento de que, dentro do máximo possível, o Estado não deve intervir em decisões ligadas ao íntimo familiar. Passou-se a exigir uma espécie de mínima intervenção estatal possível, desconectando o Direito de Família de exigências formais, morais, religiosas, ou meramente costumeiras.

O que não se pode alterar, é bom frisar, é o dever de responsabilidade exigido dos parceiros parentais em relação ao filho concebido. Acaso haja algum ajuste que implique, na prática, na exclusão das responsabilidades de um dos parceiros genitores, estar-se-á diante mais da denominada “produção independente” do que da coparentalidade propriamente dita. A coparentalidade, ao revés, quer implicar necessariamente em responsabilidade de ambos os genitores, desde a concepção até o fim da vida.

5 Delineando Algumas Diferenças     

A coparentalidade distingue-se de figuras mais tradicionais referidas ao Direito de Família, embora também guarde certas semelhanças aqui e acolá. Tais figuras seriam:

  1. a) Produção independente

Na denominada “produção independente“, uma pessoa (seja um homem ou uma mulher) resolve – de forma isolada – realizar o sonho da paternidade ou da maternidade. No caso mais comum, o de “mães independentes“, geralmente estas se valem de bancos de esperma (de doadores anônimos) e de inseminações in vitro. Já no caso dos pais, opta-se pelas ditas “barrigas de aluguel“.

A grande e principal diferença da coparentalidade para a chamada “produção independente” é o fato de haver, na primeira, uma outra pessoa envolvida na criação do filho. Necessariamente, ao menos um pai e uma mãe estarão comprometidos com os deveres referentes ao poder familiar, enquanto que na produção independente só haverá um dos lados. A criança crescerá, então, apenas com a figura ou do pai ou da mãe.

Os sites que cuidam de informar e propagar a coparentalidade anunciam a dupla presença (materna e paterna) como algo vantajoso em relação à uniparentalidade, inclusive de um ponto de vista médico:

We feel that co-parenting provides more support to the child because it involves two parents that are physically, financially, and emotionally committed. Healthy, happy, and balanced children are what we are trying to achieve and statistically, having both a mother and father within a child’s life dramatically improves chances for a happy and balanced upbringing. Also, donor conceived children sometimes develop health problems related to their father’s genetic makeup, for example they pass down the genes which may make them more susceptible to certain diseases such as diabetes or cancer. Knowing this information can help with diagnosis and even preventative treatment. Therefore knowing the identity of a donor has many benefits for the child, through to when they become adults.” [8]

Do ponto de vista das similitudes, pode-se perceber que em ambos os casos há uma grande vontade de exercer a paternidade ou a maternidade. Pessoas que querem realizar o sonho de ter um filho, mas sem o (tradicional) envolvimento com uma outra pessoa. Tal escolha dá-se quer por opção mesmo, quer por não se ter encontrado um(a) parceiro(a) para tanto.

  1. b) Família de pais separados

A coparentalidade guarda semelhanças com as famílias de pais separados especialmente na fase de criação e educação conjunta da criança, vez que em ambas as figuras se espera que haja uma guarda compartilhada ou, em sendo esta impossível, a guarda unilateral com o devido supervisionamento (art. 1.583, § 5º, do Código Civil). A criança e o adolescente devem (ou, pelo menos, deveriam) crescer tendo as duas figuras, materna e paterna, presentes em sua vida, embora não num mesmo lar. As bases de tal compartilhamento também não diferem: melhor interesse da criança e o acordo de vontades das partes. Em caso de impasse inquebrantável, a via judicial dará a última palavra.

Por outro lado, o entorno da fase de concepção do futuro filho pode ser bem diferente. Na coparentalidade, esse momento dá-se quase sempre de um mesmo jeito: duas pessoas, de sexo opostos, manifestam o desejo de ter um filho em conjunto (mas sem a produção de uma relação familiar lateral entre elas). A vontade do exercício da parentalidade é sempre patente. O filho, incontestavelmente, é desejado. E há outra (provável) certeza: o pai e a mãe não viverão sob o mesmo teto durante o crescimento da criança, nada obstante permaneçam íntegros os deveres/poderes familiares.

Já na família de pais separados, a fase de concepção tem múltiplas formas. Varia desde o clássico casal homem e mulher, unidos pelo casamento, que resolveram um dia ter um filho (mas depois vieram a se separar), até um sexo casual entre dois quase desconhecidos que terminou em gravidez. Haverá sempre a possibilidade, assim, de termos crianças desejadas ou não; programadas ou nem um pouco isso. Poderá existir um relacionamento de anos entre os parceiros, mas também pode ter ocorrido apenas um fortuito encontro sexual, que resultou numa concepção acidental. O trato entre pai e mãe separados, outrossim, poderá variar bastante: desde muito próximo, respeitador e harmonioso, até o extremo oposto, no qual estariam a distância, a absoluta desconexão ou os constantes desacordos e brigas.

Defensores da coparentalidade argumentam que há, muita das vezes, vantagens em comparação com a família nas quais os pais se separaram. Basicamente isso se deve a dois fatores: (i) o fato de a criança ser sempre planejada/desejada; e (ii) a retirada do fator “amor/ódio” e de possíveis ressentimentos em razão da separação ocorrida com o casal. Haveria, assim, mais foco na criança, sem que o desgaste da falida relação entre pai e mãe viesse a interferir no objetivo principal de melhor proteger os interesses do filho.

  1. c) Família homoafetiva

Embora a coparentalidade possa socorrer às famílias homoafetivas no seu intuito de terem um filho, a correlação entre elas não é necessária. Poderá haver uma família homoafetiva, aquela formada por um casal gay, seja homem e homem, ou mulher e mulher, que seja integral por si só, com ou sem filhos presentes. Vale lembrar que o atual estágio de desenvolvimento do Direito de Família considera a mera relação entre o casal homoafetivo como geradora de uma unidade familiar, independente da presença de filhos. Nada obstante, pode haver também filhos presentes, especialmente de relacionamentos anteriores de um ou de ambos(as) os(as) parceiros(as), provenientes de adoção ou fruto de uma produção independente.

A coparentalidade entra para esse último rol de possibilidades, como mais uma alternativa para driblar a limitação biológica de casais homossexuais. Um representante do casal homoafetivo será o pai ou a mãe da criança, biologicamente falando, enquanto que do outro lado, como parceiro(a) parental, haverá uma mãe ou um pai que poderão ser héteros ou gays, solteiros ou não. Amplia-se o leque de opções para aqueles que desejam tornar-se pais ou mães.

6 Será o Fim das Famílias?                               

Colocado a par o processo de gênese da criança, o grande questionamento que se faz é se seria a coparentalidade uma nova modalidade familiar. Vale dizer, poderia ela ser relacionada como um novo modelo de “família“? Na ótica desse trabalho a resposta que se impõe é afirmativa. A coparentalidade é, sim, um modelo familiar, preenchendo os requisitos que atualmente se espera de tal conceito. Explica-se.

Nada obstante os pais parceiros não tenham uma relação sexual, romântica ou afetiva, há vínculos recíprocos que nascem da ligação com o filho em comum. Há, portanto, uma relação jurídica lateral, que surge desde o acordo de vontades pré-concepção e que se estende por toda a vida do filho, do(s) neto(s), etc. De fato, a coparentalidade não afeta, como não poderia deixar de ser, os deveres parentais em relação à prole. A propósito, a novel redação do art. 1.634 do Código Civil brasileiro [9] parece já estar ajustada à novel situação (ainda que possivelmente não tenha sido esse, expressamente, o desejo do legislador), quando dispõe que: “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (…)” (grifou-se).

Pode-se indagar, igualmente, sobre se o uso da nomenclatura “poder familiar” seria aconselhável ou se se deveria falar apenas em “poder parental“. Respondendo à indagação, o uso do termo parece ainda apropriado, especialmente quando se leva em conta o ponto de vista da criança, fruto dessa relação de vontades. Com efeito, nada obstante a peculiaridade da (não) relação entre os pais, para a criança nada se alterará em relação a dizer que possui: (a) ou uma família formada por pai e mãe que nunca estiveram juntos; ou (b) por duas famílias, ligadas pelo laço da coparentalidade. Aliás, é mesmo direito ligado à sua dignidade humana mencionar que possui íntegros seus laços familiares, ainda que não haja (e nunca tenha havido) uma relação afetuosa propriamente dita entre seus genitores. Pode não ter ocorrido entre eles, mas em relação ao filho gerado há. E isso é suficiente, até por analogia às famílias monoparentais, para a configuração de uma família. Afinal, a parentalidade é elemento distinto da conjugalidade (PEREIRA; FERNANDES; MENDES; MARTINS, 2016). O conceito “família“, assim, não deixa de existir, permanecendo íntegro do ponto de vista e em relação à prole gerada.

Vale destacar que o caput do art. 226 da Constituição brasileira, que prediz que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado“, é considerado uma “cláusula geral de inclusão“, bastando para a configuração familiar a presença dos requisitos da afetividade, estabilidade e ostensibilidade (LÔBO, 2002). Não se pode negar que é plenamente possível a existência dos três nas relações coparentais – especialmente nos vínculos que conectam o parceiro parental ao filho gerado. Não só é possível, como se espera que seja a regra de tal liame, uma vez que a criança é sempre desejada e fruto de um planejamento.

Outrossim, é interessante destacar que a coparentalidade pode assumir uma configuração híbrida. Serão as peculiaridades do caso concreto que terminarão por apontar qual dos dois modelos se realizou naquela espécie familiar, talvez até pela adoção de uma espécie de “autodeclaração” ou “autoreconhecimento“. Haverá famílias que se considerarão um “bloco único“: uma única família, que conta com “pais parceiros” e com o filho em comum a funcionar de elo familiar. Mas por certo haverá também famílias que manterão uma certa linha de independência, nas quais o filho poderá mesmo dizer que possui “duas famílias” independentes, nada obstante na relação entre elas igualmente existirá a conexão decorrente do filho em comum.

Seja como for, a prevalência do melhor interesse do filho e da afetuosidade não se alteram diante desse novo modelo familiar. De fato, as famílias deixaram de ser essencialmente um núcleo econômico e de reprodução (PEREIRA, 2012), para se reconhecerem por conexões de afeto (MADALENO, 2007).

E as famílias? Será o fim delas? Com um olhar otimista, Rodrigo da Cunha Pereira (2012) registra esse momento de metamorfose das famílias, igualmente produtor da coparentalidade:

Com todas essas mudanças, especialmente nos costumes e na ‘liberalização sexual’, começou-se a pensar que a família entrou em crise, em desordem. É natural que em meio a um processo histórico, e que ainda estamos vivenciando, tenhamos um olhar medroso e pessimista às mudanças. É compreensível que as coisas novas amedrontem, mas o processo é de evolução histórica e não de decadência. As turbulências do caminho são decorrências naturais. Hoje, constatamos que a família, além de plural, está em movimento, desenvolvendo-se para a superação de valores e impasses antigos. Todas as mudanças na estrutura da organização familiar, cujas raízes vinculam-se ao declínio do patriarcalismo, significam, também, o ápice das rupturas de um processo de dissociação iniciado há muitos séculos.”

De fato, o que se entende por “família” vem sofrendo variações, afastando-se do mero vínculo biológico ou institucionalizado pelo casamento, para chegar até onde o afeto alcance. Move-se a um segundo plano o “paradigma da legitimidade“, passando a imperar o “paradigma da afetividade” (CALDERÓN, 2017). A família é produto da cultura, e não um dado da natureza. Se a cultura se altera, como vem se alterando, é natural que o que se entende por família também se transforme. Passa-se a falar na existência até de um “princípio da pluralidade das formas de família“, derivado do reconhecimento de que novas estruturas parentais e conjugais estão em curso (PEREIRA, 2012). Isso não é mais do que o reconhecimento de que a família atual rege-se pela liberdade, pela igualdade e pela afetividade (LÔBO, 2004), sendo a coparentalidade fruto direto do peso atual dessas três figuras.

7 À Guisa de Conclusão: Seja Como For, que Seja uma Parentalidade Responsável       

Diante do crescimento tecnológico, da importância cada vez maior dada ao desenvolvimento das carreiras nas atividades profissionais, das novas configurações familiares e dos princípios da autonomia individual e da menor intervenção estatal no âmbito do Direito de Família, a coparentalidade parece ser uma opção que surge no cenário mundial e nacional com ótimas chances de crescimento. Aparece ela como mais uma opção familiar a indicar novos modelos que bem diferenciam a relação de conjugalidade da relação de parentalidade, não exigindo que uma esteja presente necessariamente com a outra.

A forma como a sociedade ocidental atual está se configurando torna cada vez menor a ocorrência dos modelos “tradicionais” de família, calcados em um liame amoroso entre um homem e uma mulher heterossexuais, embora por certo esses modelos também permanecerão existindo. O que há agora é uma multiplicidade, crescente, de formações familiares.

De fato, sendo o afeto o principal vínculo necessário para a formação do conceito familiar, e na medida em que este pode se notar na relação entre pais e filhos, torna-se despiciendo verificar a presença de qualificativos conectados ao casal genitor, tais como formalização da relação, tratos amorosos ou sexuais, possibilidades biológicas de procriação, etc. Outrossim, há que se lembrar que não existe hierarquização axiológica entre os modelos familiares, como bem apontado por Lôbo (2002).

O que não pode deixar de existir e nem se pode alterar é o dever que incumbe ao pai e a mãe, seja em que modelo familiar estiverem inseridos, de realizarem uma parentalidade responsável. Já se disse que a responsabilidade transformou-se numa espécie de “palavra de ordem” do mundo contemporâneo (PEREIRA, 2012), e no que pertine à responsabilidade pela paternidade/maternidade ela se faz ainda mais robusta – poderia se dizer que inegociável. Interessa mais do que às meras relações privadas, importando também por seu caráter político e social (PEREIRA, 2012).

Por isso, o qualificador “responsável” é tão bem-vindo ao termo coparentalidade. Falar em coparentalidade responsável destaca o fato de que esse passo deve ser dado com muita segurança e certeza. Não se trata do estabelecimento de uma sociedade para a aquisição de um bem, como um carro, um imóvel, ou para a formação de uma empresa. É muito mais sério, delicado, complexo e, o mais importante, em hipótese nenhuma suscetível a arrependimento. Embora o objetivo de realização do sonho da parentalidade seja nobre, a escolha do(a) parceiro(a) deve ser feita com muito critério e serenidade. Nunca se deve esquecer que o acordo celebrado estabelecerá um liame para o restante da vida dos participantes, gerando importantes e indeclináveis obrigações de ambas as partes. E o que é fundamental: a maioria das obrigações, especialmente a mais importante – a de afeto – será devida por toda uma vida a uma terceira pessoa, a maior interessada no respeito a essa responsabilidade, o filho gerado. Que venha o sonho; que venha a coparentalidade, mas que venha com plenitude de responsabilidade.

Referências                                    

CALDERÓN, Ricardo. Afetividade e cuidado sob as lentes do direito. In: COLTRO, Antônio Carlos Mathias; OLIVEIRA, Guilherme de; PEREIRA, Tânia da Silva (Org.). Cuidado e afetividade: Projeto Brasil/Portugal 2016-2017. São Paulo: Atlas, 2017.

ENGELMANN, Wilson; WÜNSCH, Guilherme. Com quantos gigabytes se faz uma família: a reconfiguração da teoria do fato jurídico, de Pontes de Miranda, no Direito das famílias a partir das relações virtuais. Revista Pensar, Fortaleza, v. 22, n. 1, jan./abr. 2017, p. 381-424.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 307, 10 maio 2004. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/5201>. Acesso em: 2 ago. 2017.

______. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, Síntese, n. 12, jan./mar. 2002, p. 40-55.

MADALENO, Rolf. Filiação sucessória. Revista de Direito de Família e Sucessões, Porto Alegre, Magister/IBDFAM, v. 0, out./nov. 2007.

PEREIRA, Marina; FERNANDES, Rosina; MENDES, Francisco; MARTINS, Emília. Coparentalidade e alienação parental numa amostra de mães/pais portugueses. Revista de Psicologia da Criança e do Adolescente, 7:1-2, 2016, p. 263-270.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015.

______. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

SPAGNOL, Débora. Novos arranjos familiares: a co-parentalidade. Disponível em: <https://deboraspagnol.jusbrasil.com.br/artigos/412146047/novos-arranjos-familiares-a-co-parentalidade>. Acesso em: 22 jul. 2017.

[1] Todos os nomes mencionados e as histórias adiante reproduzidas são fictícios.

[2] Apesar do uso dessa expressão, entende-se neste artigo ainda ser cabível o termo “poder familiar”.

[3] <www.modamily.com>.

[4] < www.coparents.com>.

[5] <www.co-parentmatch.com>.

[6] <www.familybydesign.com>.

[7] Encontrada no seguinte endereço eletrônico: <https://www.facebook.com/groups/co.paternidade/>.

[8] Trecho retirado do site: <www.modamily.com>.

[9] Dada pela Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014.

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