“CONTRATOS DE PARCERIA” E IMPROPRIEDADE SEMÂNTICA
José dos Santos Carvalho Filho
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A Lei nº 13.334, de 13.9.2016, instituiu, no âmbito da Presidência da República, o Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, com o objetivo de ampliar e fortalecer o inter-relacionamento entre o Estado e o setor privado por meio de negócio jurídico cooperativo celebrado entre pessoas públicas e privadas.
Em que pese ter o legislador atrelado o programa à Chefia do Executivo federal, a própria lei comportou maior alcance dentro da federação, admitindo a integração, no referido programa, (a) de empreendimentos públicos de infraestrutura da competência da administração direta e indireta federal; (b) de idênticos empreendimentos a cargo dos Estados, Distrito Federal e Municípios; e (c) de medidas do Programa Nacional de Desestatização, alinhavado pela Lei nº 9.491/1997.
Na prática, o citado programa tem o propósito de resgatar as ações públicas, diretamente ou por delegação, no segmento da infraestrutura, propiciando a oferta de fomento aos empreendimentos que se direcionem a esse objetivo. Não se desconhece que em tal setor se situam as mais intensas reclamações da população e o natural inconformismo com a ausência ou lentidão do Poder Público para alcançar suas finalidades.
Noutro giro, pretende-se fomentar as ações e estratégias delineadas na Lei nº 9.491/1997, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização, com o objetivo de afastar o Estado de determinadas atividades econômicas suscetíveis de melhor execução pela iniciativa privada, reservando-se-lhe, contudo, a prestação dos serviços públicos essenciais e, normalmente, indelegáveis.
Sobre a desestatização, já tivemos a oportunidade de afirmar que “o Estado, depois de abraçar, por vários anos, a execução de muitas atividades empresariais e serviços públicos, com os quais sempre teve gastos infindáveis e pouca eficiência quanto aos resultados, resolveu imprimir nova estratégia governamental: seu afastamento e a transferência das atividades e serviços para sociedades e grupos empresariais”. [1]
Ocorre que o legislador previu que o programa deverá ser executado “por meio da celebração de contratos de parceria” (art. 1º), completando o sentido no § 2º do mesmo artigo, com o seguinte teor:
“§ 2º Para os fins desta Lei, consideram-se contratos de parceria a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante.”
Não é difícil observar que o legislador cometeu uma grande impropriedade técnica ao denominar os ajustes de “contratos de parceria”. E, nesse aspecto, confundiu o fato jurídico “parceria” com os instrumentos jurídicos através dos quais ela se formaliza.
Com efeito, a parceria em si não traduz espécie de contrato, mas, ao contrário, reflete uma conjugação de esforços entre os parceiros, na busca de objetivos comuns fundados em interesses recíprocos. Trata-se, portanto, de um fato jurídico e, como tal, passível de produzir efeitos no mundo jurídico. Essa é que é a verdadeira ideia da parceria.
Discorrendo sobre a terminologia das parcerias público-privadas, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO deixou expresso que o termo parceria indica um fato genérico, no qual se incluem várias ferramentas específicas. Diz a autora que “o vocábulo parceria continuará a ser utilizado em sentido amplo, para designar as várias modalidades tratadas neste livro”. [2]
Idêntica ideia é apontada por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: “Parceria também é uma expressão genérica, prestante para indicar qualquer modalidade de colaboração entre entidade pública e particulares; logo, também insuficiente para permitir identificar o instituto jurídico que estaria em causa”. [3]
Fica, por conseguinte, bem claro que não há que falar em “contrato de parceria”, mas sim em “parceria”, fato jurídico cuja materialização se processa por vários tipos de contrato – estes, sim, constituindo as espécies de contratação que traduzem parceria entre os setores público e privado.
O próprio dispositivo refere-se a várias modalidades de contrato, como os de concessão comum, concessão especial (patrocinada e administrativa), concessão regida por legislação setorial, permissão de serviço público, arrendamento de bem público, concessão de direito real, fazendo, ainda, referência a outros negócios similares.
Quer dizer, para concretizar o propósito de conjugar seus esforços com a iniciativa privada através das parcerias, o Estado se socorrerá dos diversos instrumentos atualmente existentes por meio dos quais tal associação se formaliza. Em todos eles, o núcleo do negócio jurídico é a cooperação mútua e a busca de objetivos comuns e do interesse dos pactuantes. A ideia é a mesma, ou seja, a de que é melhor que duas pessoas se associem somando seus esforços, do que uma só delas tentar isoladamente o mesmo objetivo, o que decerto encerrará a interposição de maiores obstáculos.
Semelhante cenário permite inferir que a União não celebrará qualquer negócio jurídico nominado de “contrato de parceria”. Recorrerá, isto sim, a alguma das espécies contratuais que espelhem parceria entre os setores público e privado.
O legislador, portanto, não adotou a melhor técnica ao prever que o programa de parceria de investimentos se formalizaria através de “contratos de parceria”. A expressão aqui é totalmente distorcida, não auxilia em nada a inteligência da norma e ainda provoca confusão nos intérpretes, sabido que as terminologias, se não são definitivas para a interpretação, representam importante dado para perscrutar a teleologia da norma.
Mais técnico seria dizer que o programa será realizado por meio de parcerias, o que é bem diferente de dizer que será efetivado pela celebração de contratos de parceria. São pequenos detalhes, mas que usualmente provocam dúvidas nos estudiosos e operadores jurídicos – estes sempre em busca da ideia mais simples de representação da mens legis.
Cabem aqui duas últimas – e breves – observações. Primeiramente, a expressão parceria público-privada não indica tecnicamente o nome do contrato. A denominação efetiva é contrato de concessão especial, patrocinada ou administrativa (art. 2º, Lei nº 11.079/2004).
A outra observação é que, a despeito da nomenclatura, a parceria público-privada não reflete uma verdadeira parceria. Sobre esse aspecto, já averbamos em obra de nossa autoria: “A expressão ‘contrato de parceria’ é tecnicamente imprópria. Primeiramente, há inegável contradição nos termos: onde há contrato (tipicamente considerado) não há parceria em seu sentido verdadeiro”. [4] De fato, a verdadeira parceria não comporta interesses econômicos, como é o caso das concessões, mas sim um ajuste em que os pactuantes têm interesses comuns e visam à cooperação recíproca.
De qualquer modo, ainda que se considerassem parcerias as concessões de serviços públicos, em qualquer de suas modalidades, e outros contratos afins, a denominação “contrato de parceria” estaria inadequada, pois que, repetimos, parceria é o fato jurídico, o que é diverso das espécies de contrato que a formalizam.
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NOTAS
- JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de direito administrativo, Gen/Atlas, 30ª ed., 2016, pág. 369.
- MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Parcerias na administração pública, Atlas, 9ª ed., 2012, pág. 65.
- CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de direito administrativo, Malheiros, 32ª ed., 2015, pág. 228.
- JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual cit., pág. 454.