CONTRATO DE LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL EM TEMPOS DE PANDEMIA – BREVE ANÁLISE JURISPRUDENCIAL SOBRE O ENQUADRAMENTO DA NORMA
Ana Carolina Cordeiro
O novo coronavírus, tecnicamente chamado de COVID-19, afetou profundamente não apenas nossa rotina, nos forçando a evitar o convívio social, mas tem trazido prejuízos incalculáveis à economia e aos negócios jurídicos, em especial os contratos em geral, tendo em vista o fechamento temporário dos estabelecimentos comerciais, a necessidade de redução de salários e até mesmo a demissão de diversos brasileiros.
Dentre os diversos anseios e indagações no âmbito jurídico, verifica-se a crescente procura de soluções para manutenção e/ou extinção de contratos de locação comercial, tendo em vista a evidente afetação destas relações jurídicas devido a orientações sanitárias exigidas por múltiplos Estados e munícipios em todo o país, com consequente suspensão de diversas atividades consideradas não essenciais pelo poder público.
Assim, de um lado temos os locatários, que estão impedidos de desenvolver normalmente suas atividades empresariais, seja por decreto municipal que determina seu fechamento ou mesmo porque, apesar de permitido seu funcionamento, os funcionários por eles contratados não conseguem chegar ao trabalho ou demandam um período reduzido devido à diminuição da frota de veículos de transporte público, ou, ainda, em razão da queda de venda/demanda. Veja que todos os fatores de forma isolada ou mesmo conjunta afetam profundamente o balanço financeiro da empresa e por consequência, o poder financeiro para pagamento do aluguel.
Por outro lado, e não menos importante, temos os locadores que dependem dos valores percebidos por meio da locação para a sua subsistência. Ora, veja que nos casos dos shoppings de pequeno e grande porte, a atividade empresarial destes está associada de forma direta ao desenvolvimento das atividades empresariais de seus lojistas locatários.
Assim, em observância a situação fática de ambas as partes contratantes, como se resolveria o imbróglio? É cabível a revisão do aluguel ou mesmo a rescisão do contrato de locação sem o pagamento de multa? O objetivo deste breve artigo é entender a regulamentação jurídica desta relação contratual e o posicionamento que nossos tribunais vêm adotando.
Por primeiro, importante ressaltar que a relação jurídica em questão é devidamente regulamentada pela Lei nº 8.245/91, a qual prevê em seu artigo 18 a possibilidade de revisão do aluguel em caso de consenso de ambas as partes, facultando, ainda, ao locatário em seu artigo 4º a rescisão antecipada do contrato de locação, desde que realizado o pagamento da multa pactuada entre as partes de forma proporcional, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.
Entretanto, em que pese as previsões específicas, a norma especial em questão não dispõe, se analisada de forma isolada, acerca de possível direito à revisão e/ou suspensão do aluguel ou mesmo a rescisão do contrato por impossibilidade superveniente não imputável aos obrigados em decorrência da diminuição do faturamento, resposta esta que cabe ao Código Civil, também aplicável à relação contratual de forma subsidiária.
O Código Civil contempla o instituto da impossibilidade superveniente de cumprir a obrigação contratual, disciplinando-a em seus artigos 234 e seguintes; dispõe acerca da impossibilidade decorrente do caso fortuito ou força maior, prevista no art. 393; regulamenta as hipóteses de mora do devedor em seus artigos 394 a seguintes, e dispõe acerca das hipóteses de resolução unilateral por onerosidade excessiva em seu artigo 478.
Assim, no que se refere à eventual interesse do locatário em revisar ou mesmo suspender temporariamente o pagamento do aluguel devido a diminuição ou ausência de faturamento da empresa, em decorrência de ato da administração pública – Fato do príncipe – é possível qualificar a situação como hipótese de caso fortuito externo, o que dá azo ao locatário a propor demanda pleiteando a revisão ou a suspensão temporária do pagamento do aluguel em caráter liminar, com fulcro nos artigos 317, 396, 399 e 422 do Código Civil.
Ainda, em complementação as normativas acima expostas e na hipótese de impossibilidade de uso normal do imóvel por força de decisão governamental, embora por tempo determinado, faz-se possível o enquadramento da situação fática ao artigo 567 do Código Civil[1].
Destaca-se, nesse sentido, que o pedido de revisão do valor do aluguel depende da existência de “fato superveniente, diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva”[2], bem como à comprovada impossibilidade de cumprimento da obrigação da forma inicialmente pactuada, com consequente alteração da base objetiva do contrato do momento da celebração deste para o de sua execução.
Nessa linha de raciocínio e em observância as normas acima apontadas, a 31ª, 33ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo[3], bem como da 26ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[4] e 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul[5], proferiram recentes acórdãos deferindo pedido liminar para redução do aluguel por prazo determinado até a cessação da impossibilidade de utilização dos bens imóveis.
Entretanto, o entendimento pela possibilidade de revisão do locatício devido à queda de faturamento não se encontra pacificado, sendo proferido também pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[6] decisões, em contrapartida, negando pedidos de revisão/diminuição do aluguel durante o período de pandemia.
Nesse sentido, verifica-se que o principal fundamento para negativa dos pedidos formulados em caráter liminar para revisão/diminuição do aluguel se consubstancia no artigo 478 e artigo 480 do Código Civil, que regulamenta a possibilidade de resolução ou alteração do modo de execução do contrato, desde que, a onerosidade excessiva ao contratante esteja cumulada com a ocorrência de extrema vantagem ao outro contratante.
Outrossim, parte das decisões interpretam que o art. 317 do diploma civil refere-se ao “valor real da prestação”, aferido pelo valor de mercado, numa clara convergência com o critério do “preço de mercado” do art. 19 da Lei n. 8.245/1991, indicando que em análise à normativa não é possível chegar à conclusão de que há a possibilidade de suspender ou ajustar liminarmente o valor do aluguel.
Ainda, no que se refere à pretensão de rescisão do contrato sem o pagamento de multa devido à impossibilidade de uso do bem e abrupta diminuição do faturamento do comerciante locatário, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal[7] já pronunciou seu entendimento pela impossibilidade de se deferir tal pedido de maneira liminar, fundamentando sob a mesma premissa acima narrada prevista no artigo 478 do Código Civil, que estabelece como requisito legal à extrema vantagem de um contratante sob o outro.
Destaca-se que este posicionamento também não é pacificado, sendo proferida decisão em sentido contrário pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que deferiu pedido liminar suspendendo a exigibilidade da multa por rescisão antecipada do contrato, fundamentando seu entendimento em atenção à comprovação de inexistência de culpa por parte do locatário na desocupação e consequente rescisão do contrato, que se deu por Caso Fortuito externo[8].
Cumpre destacar que a multa por rescisão antecipada visa imputar mora a aquele que escolhe encerrar, prematuramente, a relação locatícia, sendo certo que, se mantida a ratio decidendi do julgado supra até o trânsito em julgado do processo de conhecimento, a referida penalidade seria afastada com fulcro no artigo 396 do Código Civil.
Assim, verifica-se a gritante ausência de pacificação do entendimento dos tribunais a respeito da possibilidade de revisão ou mesmo rescisão do contrato sem pagamento de multa moratória, até mesmo devido ao curto período de tempo desde o início das determinações governamentais, se analisado sob à ótica de tempo médio de tramitação dos processos judiciais, sendo que somente será possível indicar com precisão o entendimento majoritário dos tribunais pátrios em momento futuro, não tão distante.
De qualquer forma, independente de medida judicial, que sempre deve ser tomada em caráter excepcional, o presente momento, por certo, pode ser uma oportunidade para uma mudança cultural que vai, finalmente, fazer com que as boas intenções inseridas na reforma da lei processual em 2015, que dispõem a respeito da conciliação e da mediação, sejam aplicadas de forma mais eficaz.
Lembram Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald que é nas obrigações duradouras que se encontra o caráter integrativo da boa-fé, haja vista a situação de confiança criada pelo credor no cumprimento futuro da obrigação. “A integração do conteúdo contratual pela boa-fé respeitará a “ética da situação”. Haverá constante mutação dos deveres de conduta no tempo e no espaço, pois sua concretização respeitará o sentido do contrato conforme aferição casuística dos fins comuns.”[9]
Por fim, não custa recordar que toda relação contratual, regida pelo Código Civil, estabelece deveres da boa-fé objetiva, cooperação e solidariedade, principalmente na solução de problemas mútuos, razão pela qual resta evidente que é passada, portanto, a hora de aplicar técnicas corretas de negociação, em especial no ambiente da mediação e conciliação, ainda a engatinhar em nosso País, de formar a garantir soluções jurídica mais satisfatórias e eficazes.
[1] TERRA, Alice de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas, 23 de março de 2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-centerL>. Acesso em: 18 de agosto de 2020.
[2] TARTUCE, Flávio. “Direito civil, v. 2: direitos das obrigações e responsabilidade civil”, 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método; 2013. p. 129
[3] TJSP- AI: 214022337120208260000 SP 2140223-71.20202.8.26.0000, Relator: Antônio Rigolin, Data de Julgamento: 06/07/2020, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/07/2020); TJSP – AI 210198228220208260000 SP 2101982-28.2020.8.26.000, Relator: Antônio Rigolin, Data de Julgamento: 30/06/2020, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/06/2020). TJSP- AI: 20844183620208260000 SP 2084418-36.2020.8.26.0000, Relator: Luiz Eurico, Data de Julgamento: 22/06/2020, 33ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/06/2020); TJ-SP – AI 21299622062020826000 SP 2129622-06.2020.8.26.000, Relator: Mario A. Silveira, Data de Julgamento: 21/07/2020, 33ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/07/2020).
[4] TJ-RJ AI: 00350993120208190000, Relator: Des(a) Sandra Santarém Cardinalli, Data de Julgamento: 13/08/2020, Vigésima Sexta Câmara Cível, Data de Publicação: 14-08-2020..
[5] TJ-MS – AI: 14089050420208120000, Relator: Des. Divoncir Schreiner Maran, Data de Julgamento: 15/07/2020, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 17/07/2020
[6] TJSP, AI 2142209-60.8.26.0000 SP, 29ª Câm. de Dir. Priv., Rel. Des. Silvia Rocha, Data de Julgamento: 13/07/2020, Publicação em 13/97/2020; TJ-SP – AI 2152207-52.2020.8.26.0000 SP, Relator Carlos Nunes, Data de Julgamento: 13/07/2020, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/07/2020. Registre-se a existência de decisões nesse sentido, vendando, entretanto, o protesto do título representativo do crédito em consideração aos seus “imediatos efeitos deletérios” no exercício da atividade do locatário (TJSP, AI n. 2063701-03.2020.8.26.0000, 36ª Câm. de Dir. Priv., Rel. Des. Arantes Theodoro, j. 06/04/2020).
[7] TJ-DF 070106925202080790000, Relator: Getúlio de Moraes Oliveira, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: 03/08/2020
[8] TJ-SP – AI: 21649959820208260000 SP 2164995-98.2020.8.26.0000, Relator: Adilson de Araújo, Data de Julgamento: 30/07/2020, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/07/2020
[9] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Contratos. Teoria Geral e Contratos em Espécie. Vol 4. 9 ed. JusPodium: Salvador, 2019, p. 197