RKL Escritório de Advocacia

CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA LEITURA FUNDAMENTAL

Lauro Simões de Castro Bisnetto

            Henrique Camacho

O positivista vê apenas a lei, fecha-se perante qualquer momento supralegal do direito e, por isso, é impotente face a qualquer perversão do direito pelo Poder Público, tal como, aliás, experimentamos no nosso século até à náusea.” (A. Kaufmann)    

SUMÁRIO: Inserções Preliminares. Abordagem Objetiva Acerca dos Conceitos e do Precedente no Campo das Relações Consumeristas: Acepções Históricas, Econômicas e Jurídicas. Prelúdio de uma Conclusão. Conclusão. Bibliografia.

                   

Inserções Preliminares

Desde as primeiras edições de sua obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição, J. J. Gomes Canotilho importou-se em ensinar aos seus leitores sobre o que convencionou de dupla dimensão da vinculação do legislador aos direitos fundamentais. Segundo o mestre de Coimbra, o legislador deve se (pré)ocupar de um sentido proibitivo (ou negativo), bem como de um positivo. O primeiro (pré)compreende a abstenção da edição de programas normativos infensos às normas de direitos fundamentais. No seu caráter positivo, a vinculação do legislador implica no compromisso reflexo que os atos normativos editados devem sustentar perante os direitos fundamentais, justamente para concretizá-los [1].

Também ao tratar da limitação própria ao Poder Legislativo (e jurídico) diante dos direitos de assento constitucional – e daí a noção de fundamentalidade -, Ingo Wolfgang Sarlet destaca uma perspectiva jurídico-objetiva e outra, mas complementar, dimensão subjetiva. Aquela tem como um dos mais importantes desdobramentos o que doutrina e jurisprudência constitucional alemã qualificaram de eficácia irradiante ou efeito de irradiação dos direitos fundamentais, ou seja, estes assumem um primeiro plano hermenêutico de aplicação e avaliação dos programas normativos infraconstitucionais – reporta-se ao fenômeno da constitucionalização do direito. A dimensão subjetiva (ou positiva, Robert Alexy [2]), enquanto direito à proteção do Estado, traduz-se na ideia do direito conferido aos seus agentes titulares de gozarem de prestações estatais [3].

Brevemente anotados os estudos dos mestres, de algo não se pode ignorar, as normas de direito fundamental possuem conteúdos complexos, conquanto conexos e reciprocamente complementares. Dessarte, o seu processo hermenêutico de compreensão circundará sob correlatos planos estrutural e normativo, abstrato e concreto, de toda sorte que

não pode ser compreendido como um sistema lógico-dedutivo, autônomo e autossuficiente, mas, sim, como um sistema aberto e flexível, receptivo a novos conteúdos e desenvolvimentos, integrado ao restante da ordem constitucional, além de sujeito aos influxos do mundo circundante.” [4]

Postas estas questões preliminares, ora nos dedicaremos à crítica de recente julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em sede de recurso especial representativo de controvérsia (art. 543-C do CPC/73 ou art. 1.039 do CPC/2015), firmou a seguinte tese:

Nos contratos firmados na vigência da Lei nº 10.931/04, compete ao devedor, no prazo de cinco dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária.” [5]

Como se pode observar, a decisão precisa o regime jurídico da busca e apreensão de bem móvel quando em garantia de alienação fiduciária. Cumpre-nos lembrar que a contenda chegou ao STJ em razão da alteração legislativa imposta pela Lei nº 10.931/04 em face do Decreto-Lei nº 911/69, que regulamenta, em parte, o tema [6].

Em breves linhas, nos termos revogados do Decreto-Lei, caso o devedor fiduciante ocorresse em inadimplemento parcial do contrato, o proprietário fiduciário (credor) poderia pleitear liminarmente a busca e a apreensão do bem móvel, hipótese em que o réu era citado para que em três dias apresentasse contestação e/ou, se já tivesse pago 40{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do preço financiado, purgasse a mora. Em sede de contestação, caberia ao devedor alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais. Para a purgação da mora, o juiz agendaria prazo não superior a 10 dias. Contestada ou não a ação, somente se a mora não fosse purgada caberia ao juiz, após cinco dias do transcurso do prazo de defesa, proferir sentença de modo a consolidar a posse plena e exclusiva do bem em favor do proprietário fiduciário [7].

Entretanto, com o advento da supracitada Lei em 2004, o legislador alterou substancialmente o procedimento ao estabelecer que, cinco dias após a execução da liminar em busca e apreensão, a propriedade plena e exclusiva do bem já é consolidada no patrimônio do credor fiduciário, que poderá requerer a expedição de novo certificado de registro de propriedade em seu próprio nome ou de terceiro por ele indicado. Ao devedor fiduciante restará, nesse prazo de cinco dias, pagar a integralidade da dívida pendente, ou seja, o valor total do contrato que constar da inicial apresentada pelo credor fiduciário, caso em que consolidar-se-á na propriedade do bem livre de qualquer ônus. Ademais, poderá ofertar contestação, independentemente de ter adimplido com a totalidade de suas obrigações – vencidas e vincendas -, dentro do prazo de 15 dias contados da execução da liminar [8].

Do exposto, é patente que a alteração legislativa importou em sério prejuízo para o devedor fiduciante.

Abordagem Objetiva Acerca dos Conceitos e do Precedente no Campo das Relações Consumeristas: Acepções Históricas, Econômicas e Jurídicas          

Nos termos em que o STJ a referendou, se antes da vigência da revogatória Lei era possível a purgação da mora pelo pagamento das prestações vencidas como meio hábil a impedir a imediata consolidação da propriedade e posse plena e exclusiva do bem em garantia nas mãos do credor (caso já pago 40{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do preço financiado) [9], a partir de 2004 exige-se o pagamento da integralidade da dívida, cujo montante deve ser comprovado pelo credor quando do oferecimento da inicial.            Ainda, a contestação que era oportunizada (mesmo que no limite das alegações relativas ao pagamento do débito vencido ou ao cumprimento das obrigações contratuais) no prazo de três dias da execução da liminar em busca e apreensão, mas antes da consolidação da propriedade, ora caberá ao réu ofertá-la no prazo de 15 dias da execução da liminar, ou seja, após a consolidação da propriedade plena em favor do credor fiduciário (que ocorrerá em cinco dias) [10].

Concessa maxima venia, ao nosso juízo, o entendimento atestado pela Corte Superior ao sentenciar o (in)devido cumprimento de lei cuja disciplina reverte em situação de manifesto prejuízo o devedor fiduciante, aliado à constatação de que a prática contratual da alienação fiduciária em garantia volta-se basicamente às relações consumeristas, à luz do compromisso hermenêutico filosófico, não merece prosperar.

Tomemos as justificativas não sem antes recobrar a linha reflexiva desta leitura: o olhar sobre a validade do texto (normativo) não se resume à argumentação lógica (silogismo), mas espraia-se “aos influxos do mundo circundante” (factual e temporal).

Pois bem. Quando em trato as relações de consumo, vale recuperarmos preciosa frase atribuída a Henry Ford: “O consumidor é o elo mais fraco da economia, e nenhuma corrente pode ser mais forte do que seu elo mais fraco“. Bem retratam essa mensagem a desprovida posição comercial em geral assumida pelo consumidor e, por conseguinte, a preocupação histórica que nos deve afligir.

Olhemos, então, mesmo que brevemente, o contexto de mundo em que se desenha a caminhada consumerista. Afinal, um digno juízo de lei atinente às relações de consumo pressupõe (pré)compreender a sociedade a que nós pertencemos. Se pontuarmos, notadamente em um período pós-Revolução Industrial, ocorre uma intensificação da demanda e, assim, uma cobrança por maior oferta. Estamos diante de uma sociedade de massa que oportunizou a produção em série (Henry Ford).

Dessarte, mormente a partir do século XX, somos apresentados à produção standartizada, que passa a ditar o ritmo das engrenagens comerciais. Nesse imperdoável sistema de produção em massa fomentado pela insaciável sociedade capitalista contemporânea, a montagem é pensada unilateralmente pelo fabricante em vistas de alimentar o adiantado consumismo; firmava-se, assim, o modelo de produção industrial [11].

Corolário a esse ambiente cultural de massa, também pensadas as tratativas contratuais, não há mais tempo para a discussão clausular bilateral. Assim, a exemplo do ideário difundido no planejamento da comercialização, do fabrico, da produção e da prestação de serviços, o modelo contratual será unilateralmente articulado [12]. O contrato de adesão consolida-se, então, como distúrbio irremediável ao estado da arte consumerista [13].

Encerra particular inteligência no domínio do direito contratual, pois, enquanto forma de contratação, o contrato de adesão foi antes pensado (Raymond Saleilles, De la Déclaration de Volonté, 1901) e depois batizado no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), sob ditames apartados do nosso legado privatista orientado pela autonomia da vontade de ambos contratantes condutora do brocardo pacta sunt servanda, haja vista que entabula meio negocial em que ao consumidor é cerceado declarar suas intenções, restando-lhe apenas anuir ao disciplinado previamente pelo fornecedor [14].

Então esta era foi e ainda é o desenho da caminhada consumerista. Vale dizer, a história do consumidor mais das vezes lhe reservou, acostumada às contingências, um segundo posto nas tratativas comerciais. Caso não nos atentemos a essa pré-compreensão narrativa-existencial, de certo não seremos capazes de chegar a uma autêntica compreensão de sociedade hodierna, bem como de seu coligado ordenamento jurídico. Isto é, a interpretação legislativa consumerista, elevada a paradigma constitucional ou definida ordinariamente, começa naquilo que a levou a ser e alcança suas próprias condições contemplativas. Nesse contexto se retratam a Constituição Federal de 1988 e o Código de Defesa do Consumidor, diplomas que passaremos a apontar e a entender.

Com efeito, ao indagarmos o programa normativo fundamental (Hans-Georg Gadamer) [15], logramos perceber essa harmonia perante o âmbito normativo que lhe carrega e concretiza na aplicação da norma jurídica (Friedrich Müller) [16]. Ou seja, com Müller, podemos dizer que o texto normativo, entidade outra, mas determinante da norma (concreta), disposto na Constituição Federal brasileira, tem história e esta é condição de sua (autêntica) compreensão-aplicação ao caso individual. Trata-se de paradigma hermenêutico que entende a norma como law in action [17].

A nossa Constituição Federal inteligentemente aprendeu com a história consumerista e, na seção que lhe coube falar, erigiu a defesa do consumidor à garantia fundamental, outorgando ao Estado tal compromisso (art. 5º, XXXII). Ademais, ao estabelecer os parâmetros da ordem econômica nacional, precisou a defesa do consumidor como um de seus pilares intransponíveis (art. 170, V). Como antes acordado, se “o consumidor é o elo mais fraco da economia e nenhuma corrente pode ser mais forte do que seu elo mais fraco“, a Magna Carta veio a sufragar o cuidado histórico que nos recai.

Em sintonia e decorrência a esse zelo constitucional, em 1990 foi concebido o Código de Defesa do Consumidor [18]. Eis o marco na história consumerista, sobretudo por um aspecto que não pode olvidar o intérprete, nos termos em que sempre ensinou Nelson Nery Junior, o CDC tem natureza principiológica:

O Código de Defesa do Consumidor, por outro lado, é lei principiológica. Não é analítica, mas sintética. Nem seria de boa técnica legislativa aprovar-se lei de relações de consumo que regulamentasse cada divisão do setor produtivo (automóveis, cosméticos, eletroeletrônicos, vestuário, etc.). Optou-se por aprovar lei que contivesse preceitos gerais, que fixasse os princípios fundamentais das relações de consumo. É isso que significa ser uma lei principiológica. Todas as demais leis que destinarem, de forma específica, a regular determinado setor das relações de consumo deverão submeter-se aos preceitos gerais da lei principiológica, que é o Código de Defesa do Consumidor (…). Destarte, o princípio de que a lei especial derroga a geral não se aplica ao caso em análise, porquanto o CDC não é apenas lei geral das relações de consumo, mas, sim, lei principiológica das relações de consumo. Pensar-se o contrário é desconhecer o que significa o microssistema do Código de Defesa do Consumidor, como lei especial sobre relações de consumo e lei geral, principiológica, à qual todas as demais leis especiais setorizadas das relações de consumo, presentes e futuras, estão subordinadas.[19]

Percebem? Toda lei que pretender carrear em seu bojo disciplina relativa à matéria consumerista deve referenciar o CDC, sob pena de nulidade, não importando sua hierarquia (art. 59 da CF). Isto porque o CDC foi justamente idealizado e, então, deve ser compreendido em sua natureza principiológica. Assim como frequentemente escreve Lenio Streck, “princípios consubstanciam a institucionalização do mundo prático no direito[20]; o CDC é diploma que conhece a história do consumidor e, portanto, a comunica a lume de suas disposições. Simples, pois.

Assimilados esses fundamentos, quais sejam a defesa do consumidor ganhar status de garantia fundamental com a Constituição Federal de 1988 e, corolário a esta distinta consideração, o Código de Defesa do Consumidor de 1990 despontar em sua essência principiológica, somado a todo contexto de mundo que isso representa, com toda lhaneza, não podemos concordar com a procedência da alteração legislativa em tela.

Primeiro porque a estima do consumidor ao posto de figura fundamental sela a evolução de sua cadeia narrativa historial, ao passo que lhe consagra a garantia da vedação ao retrocesso social (Untermassverbot). Eis um olhar de princípios. O art. 5º, XXXII, da CF representa muito mais que um (mero) programa estatal, não se basta em uma análise semântica, mas radicaliza-se à (pré)compreensão pragmática da marcha consumerista.

Isto é, o Estado, em seus três poderes, ao promover a defesa do consumidor, compromisso outorgado-lhe pela Constituição Federal, não pode olvidar da pré-compreensão de mundo consumerista. Não pode incorrer na contramão da história. Consignada a razão principiológica (cadeia discursiva) dirigida à defesa do consumidor, as menções estatais antagônicas à marcha devem ser entendidas desarrazoáveis [21].

Fazendo nossas as palavras de Heidegger:

O que tem ‘história’ encontra-se inserido num devir (…). O que, desse modo, ‘tem uma história’ pode, ao mesmo tempo, ‘fazer história’. É ‘fazendo época’ que, no ‘presente’, se determina um ‘futuro’. História significa, aqui, um ‘conjunto de acontecimentos e influências’ que atravessa ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’.[22]

Ora, nos termos da alteração legislativa proposta pela Lei nº 10.931/04 em face do Decreto-Lei nº 911/69, a perspectiva do consumidor (devedor fiduciante) que contrata sob forma de alienação fiduciária em garantia bem móvel é deveras agravada; dentre o exposto, ressalta-se a revogação da prerrogativa que lhe cabia consistente na purgação da mora como maneira a impedir a consolidação da posse plena e exclusiva do bem nas mãos do credor fiduciário.

É verdade que o legislador propôs-se a revisar o instituto jurídico sob argumento de apressar a venda dos bens retomados do devedor parcialmente inadimplente, assim imprimindo maior fluidez e dinamicidade ao mercado [23]. Contudo, o propósito carece em legitimidade quando orquestrado em detrimento da evolução da tutela consumerista. Vale insistir, a moção legislativa joga contra os princípios informantes do sistema de proteção ao consumidor, consistindo em verdadeira reformatio in pejus para este [24].

Ao estendermos a discussão ao compasso do que disciplina o Código de Defesa do Consumidor, melhor percebemos o arrazoado. No que tange aos aspectos contratuais, destaca-se o CDC prezar pelo seu equilíbrio e conservação [25]. Dessarte, haja vista sua natureza principiológica, faz-se cogente que as demais leis que também tratem de matéria consumerista primem pelos baluartes.

Pois bem. Qual é a lógica da alteração legislativa, no ponto? Vale dizer, como fica o respeito ao equilíbrio e à conservação dos contratos de alienação fiduciária em garantia? Fácil, não ficam, ora. A razão é simples, ao passo que a lei autoriza ao credor fiduciário exigir a satisfação integral do valor pactuado como única maneira viável ao devedor fiduciante de conseguir afastar a imediata busca e apreensão do bem afetado, ela provoca o fornecedor a tornar impossível o cumprimento da obrigação pelo consumidor. Bingo!

Holmes diria: “Elementar, meu caro Watson!”. É óbvio que o consumidor, nos mais das vezes, só contrai financiamento na pretensão de se tornar proprietário de certo bem, por não gozar de recursos suficientes a adquiri-lo à vista. Afinal, como andam os juros em Brazil? Arremataria o investigador britânico.

Insisto, a possibilidade de cobrança in totum do valor convencionado – consideradas as parcelas vendidas e vincendas -, de forma insofismável, torna impossível o cumprimento da obrigação, atenta contra os fundamentos do equilíbrio e da conservação contratual, primados da principiologia consumerista.

Nesse sentido, manifestou-se o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor Bancário (Ibdconb) nos autos do recurso especial em tela, valendo acentuar:

Considerar vencidas todas as prestações, antes mesmo de dar ao devedor a oportunidade de purgar a mora, seria o mesmo que negar o direito ao inadimplente de redimir-se frente ao credor, quitando os valores já efetivamente devidos“.

E concluiu:

Neste contexto, em consonância com a finalidade da Lei do Consumidor, a partir da qual deve ser interpretado o contrato firmado entre as partes, deve-se exigir do devedor o adimplemento das parcelas vencidas, acrescidas de correção monetária e juros de mora, a fim de purgar a mora e retomar a normalidade do pacto, sob pena de enriquecimento ilícito da instituição bancária.” [26]

Eis o escorreito pensamento que recai sobre a tutela consumerista (e não somente a ela), mediante um olhar compromissado com os princípios que a informam, ou seja, através do modo-de-ser-no-mundo (Streck) que a constrói (Hesse) [27].

Prelúdio de uma Conclusão

Do exposto, poderíamos fechar nossa defesa. Não obstante, talvez seria um tanto precipitado sem que trouxéssemos à discussão alguns pontos levantados pelo Sr. Ministro-Relator que merecem total destaque, pois muito bem representam o estado da arte hermenêutico ora criticado.

Antes, permita-nos mais uma vez acentuar o escopo deste estudo, qual seja a denúncia de vetusto, porém ainda dominante, paradigma hermenêutico no direto maculado pela “fetichização do discurso jurídico(Streck), isto é, um discurso dogmático-burocrata em que a linguagem (condição de acesso ao mundo) falece na sua instrumentalização semântica-metodológica e, assim, os conceitos (leis) – carentes de razão prática – (des)aparecem graças a uma metafísica concepção de sentido em-si-mesmos(as). Lembrando, enfim, com Antonio Gramsci, que “a crise consiste exatamente no fato de que o velho morre e o novo não consegue nascer[28].

Pois bem. Realizada a digressão, acreditamos na pronta percepção dessa “hermenêutica jurídica e(m) crise” (Streck) refletida nos termos em que decidiu o STJ. Senão, vejamos os trechos extraídos do respectivo acórdão [29]:

O texto atual do art. 3º, §§ 1º e 2º, do Decreto-Lei nº 911/69 é de clareza solar no tocante à necessidade de quitação de todo o débito, inclusive as prestações vincendas.           

Realizando o cotejo entre a redação originária e a atual, fica límpido que a Lei não faculta mais ao devedor a purgação de mora, expressão inclusive suprimida das disposições atuais, não se extraindo do texto legal a interpretação de que é possível o pagamento apenas da dívida vencida.” (grifo nosso)

Em primeiro lugar, nos causa espécie (para usarmos expressão em moda na ordem tribunalística) que no excerto, a exemplo de todo o acórdão, a Constituição Federal parece perder pauta. Com efeito, o compromisso fundamental assumido pelo Estado em favor da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII) é suscitado apenas em uma oportunidade no corpo da decisão, pelo Ministro Marco Buzzi, a fim de ressalvar seu posicionamento contrário à reformatio in pejus consumerista, todavia, ato contínuo, Vossa Excelência cede o entendimento em prol da função uniformizadora daquela Corte de Justiça. Na esteira, quando aventado o fomento à agilidade das transações econômicas promovido pela “exegese” da nova lei, olvidou-se em dizer que a CF impõe como parâmetro da ordem econômica nacional justamente a defesa do consumidor (art. 170, V).

Nada obstante, conquanto não se vislumbre os argumentos de princípios (Dworkin) (pré)constituírem a interpretação legal, a CF é rememorada em duas oportunidades que, com todo respeito, não merecem prosperar. O primeiro momento ocorre quando o Sr. Ministro-Relator suscita certa “autonomia do direito privado em face da Constituição“. Depois, ao chamar à exposição as lições da Professora Cláudia Lima Marques, argui que “em caso de antinomia travada entre o CDC e lei posterior, caso este texto normativo não afronte a CF, deve preponderar sobre aquele, haja vista os critérios da especialidade e da cronologia“.

Quanto à primeira tese, solicitamos licença para melhor observá-la nas próximas linhas. Em relação à segunda, cumpre-nos novamente evocar as preeminentes notas de Nelson Nery Junior no sentido de que o CDC tem natureza principiológica. Dessarte, com o mestre, nos foi oportuno assinalar que “(…) o princípio de que a lei especial derroga a geral não se aplica ao caso em análise, porquanto o CDC não é apenas lei geral das relações de consumo, mas, sim, lei principiológica das relações de consumo[30]. Ou seja, os princípios gerais do direito, notadamente lex posterior derogat legi priori e lex specialis derogat legi generali, sucumbem diante do princípio constitucional da proteção ao consumidor e seus corolários preceitos encerrados pelo CDC [31].

Em segundo lugar, indagamos: o que se deve entender por “extração do texto legal à interpretação”? Quer dizer que há um pré-dado sentido imanente às palavras (da lei)? Ora, se há algo (existentia) a ser extraído, então há uma realidade efetiva pré-disposta no ente, pois não? Disto, como fica a diferença ontológica entre ser e ente? Ou de como se vela o ser da existência ontológico-historial (Heidegger) “desa(pré)ndido” sob a existentia metafísica (aristotélica-tomista).

Notem, neste contexto, a confusão existente entre validade e vigência do texto normativo. O pensar “(jus)metafísico“, ao deixar-se ainda iludir por clássicas promessas interpretativas como “a vontade da norma” ou “o espírito do legislador“, continua a buscar em uma suposta essência permanente às palavras os reais sentidos destas, assim as objetificando porquanto ignora a dobra da linguagem (logos apofântico e logos hermenêutico) que as estrutura intersubjetivamente (ontologia-historial-heideggeriana). O senso comum teórico (Warat) faz com que objetivemos, insisto.

Dessarte, em nosso singelo juízo, a decisão sub judice proferida pelo STJ não (pré)compreende a estruturante problematização de cunho pragmatista-ontológico que subsidia uma autêntica interpretação de mundo consumerista hodierno. É famosa a frase de Eduardo Galeano em que o escritor explica a história na metáfora de um profeta que, “com o olhar voltado para trás, pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será“. Pois bem, ao ignorar a principiologia (mundo prático) da tutela do consumidor, o intérprete lança seu olhar a um futuro incerto (relativismo), aventurando-se a sorte de compreensões inautênticas à tradição existente a si próprio.

Esta perspectiva analítica-metodológica embasou o acórdão. Realmente, quando o Ministro-Relator coteja aos autos a doutrina clássica de Carlos Maximiliano, de modo a garantir suporte hermenêutico ao que decidiu, fica claro o horizonte interpretativo eleito [32]. Com efeito, cuidemos dos seguintes excertos colacionados por V. Exa.:

Jamais poderá o juiz transpor os limites estabelecidos pelo Código (…). Não considera a lei como rígida, sem lacunas e sem elastério, inadaptável às circunstâncias; completa o texto; porém, não lhe corrige a essência, nem o substitui jamais.” [33] (grifo nosso)

Ainda:

Timbram em evitar que se aplique menos do que a norma admite; porém, não pretendem o oposto – ir além do que o texto prescreve. O seu intento é tirar da regra tudo o que na mesma se contém, nem mais, nem menos. Essa interpretação bastante se aproxima da que os clássicos apelidavam declarativa; denomina-se estrita: busca o sentido exato; não dilata, nem restringe.[34] (grifo nosso)

O processo de exegese das leis de tal natureza é sintetizado na parêmia célebre de que seria imprudência eliminar sem maior exame – “interpretam-se restritamente as disposições derrogatórias do direito comum[35] (grifo nosso).

É verdade que a hermenêutica de Maximiliano reclama a interpretação como inexorável condição ao esclarecimento de como se entende e aplica a norma jurídica, portanto, o autor vence a vetusta tese do in claris cessat interpretatio (lei clara não carece de interpretação) [36][37].

Todavia, a doutrina objetivista do douto jurista, se contraposta à luz da hermenêutica-filosófica que este ensaio se propõe a validar como legítimo acesso ao conhecimento (à verdade – Heidegger), se apresenta (filosoficamente) superada, por isso, em crise.

Percebam: a hermenêutica (clássica) objetivista ignora a pré-compreensão fática de mundo. Logo, aposta em uma imediata interpretação da essência natural às coisas (palavras) que lhes garante de sentido. Isto é, não liberto dos grilhões metafísicos, o hermeneuta interpreta metodologicamente (silogisticamente) sem pré-compreender o interpretado, com Streck podemos dizer que ele parte de um grau zero de sentido, exatamente porque ignora o logos hermenêutico, permanecendo na (in)suficiência

Nesse ensejo, ao traduzirmos essas notas críticas de hermenêutica objetivista à decisão do STJ, entendemos: enquanto ignora a pré-compreensão principiológica (mundo fático/temporal) construída à defesa do consumidor e representada na CF como no CDC, a Corte aposta em uma objetiva essência imanente aos termos da lei cujos sentidos estão prêt à porter, prêt à parler, prêt à penser (Streck). Um pacote significante. Assim, basta interpretar através de silogismos (método dedutivo) para extrair a compreensão.

Ou seja, a Lei nº 10.931/04 alterou a disciplina da busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 911/69, nos seguintes termos: onde antes se dispunha que o réu poderia requerer a purgação da mora caso houvesse pago 40{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do preço financiado, com a alteração exige-se o pagamento da integralidade da dívida como único meio hábil para a restituição do bem livre de ônus. Logo, todos os vindouros casos concretos serão dirimidos judicialmente neste teor normativo. Discussão encerrada. Despicienda a problematização constitucional e da lei consumerista. Aplicar-se-á o raciocínio lógico-subsuntivo. Se a “nova lei” assim dispõe, assim será. Afinal:

O texto atual do art. 3º, §§ 1º e 2º, do Decreto-Lei nº 911/69 é de clareza solar (…), não se extraindo do texto legal a interpretação de que é possível o pagamento apenas da dívida vencida. (…) [Ademais:] jamais poderá o juiz transpor os limites estabelecidos pelo Código, (…) [pois deve] tirar da regra tudo o que na mesma se contém, [de maneira a] buscar seu sentido exato.” [38]

Reparem, enfim, que a fala desta crítica não tem por finalidade veicular descrença aos programas normativos em geral. De modo algum este texto é incentivado por um “pré-conceito ceticista da norma[39].

                                   

Conclusão  

Nossa mensagem está em provocar o desassossego na comunidade jurídica, fazendo-a enxergar que não basta que algo esteja na lei para “valer como regra do jogo” (Herbert Hart). Portanto, não basta que a Lei nº 10.931/04 institua verdadeira reformatio in pejus na proteção do consumidor para que nos faça calar a crítica em face de interesses outros que não os homenageados na Constituição Federal (arts. 5º, XXXII, e 170, V) e no Código de Defesa do Consumidor. A questão tem de ser radicalizada: estariam tais dispositivos da Lei de 2004 harmônicos perante as regras do jogo ditadas pela Constituição e diante do que representa o novo constitucionalismo em termos paradigmáticos? Eis um antigo dilema: o novo e o velho, o velho e novo [40].

Percebam: Código de Defesa do Consumidor, isso só pode ser sintomático! Se temos a necessidade de uma legislação protetiva específica, é porque existe um mercado que há muito ataca, agride, lesa. Pois, não? Então é preciso termos a consciência de que há um mercado predador a nossa volta. Não é com raridade que o STJ tem de enfrentar ações tanto de cariz individual como coletivo que denunciam a realidade de consumidores que tiveram, pasmem, desconto integral do salário depositado em suas contas-correntes, tudo para a satisfação de débitos oriundos de contratos bancários [41]. Essa prática, no mais das vezes, é o mesmo que negar subsistência ao ser humano. Não foi sem razão que quando de uma dessas sandices a Ministra Nancy Andrighi bem acentuou: “Se nem mesmo ao Judiciário é lícito penhorar salários, não será a instituição privada autorizada a fazê-lo[42].

Nessas notas fechamos a problematização do caso concreto (REsp 1.418.593/MS) e cumprimos com o nosso prometido enquanto abordamos para abortarmos qualquer pretensa “autonomia do direito privado em face da Constituição“. Eis que nos faz sempre presente as lições de Lenio Streck:

É evidente que – em face da crise paradigmática por que passa o direito – é (ainda) absolutamente necessário que se estude o direito constitucional a partir de reflexões extremamente rigorosas a partir de um plano de pesquisa institucionalizado em disciplina específica. A preocupação aqui exposta é semelhante ao problema da hermenêutica jurídica entendida como ‘método’, isto porque o método objetifica o direito. (…) Não há um direito penal autônomo e tampouco é aconselhável falar em um direito civil constitucional; o direito penal deve ser sempre direito penal compreendido a partir da Constituição, assim como qualquer texto do Código Civil somente será válido se estiver filtrado/compreendido a partir de uma adequada análise à luz do fundamento de validade que é a Constituição, sob pena de incorrermos em outro problema metafísico, que é a ‘equiparação’ da (mera) vigência com a validade. Direito constitucional, mais do que disciplina autônoma, é modo de ser, é modo de agir; é uma construção, como bem diz Hesse; mais do que isto, é condição de possibilidade do processo interpretativo. Nenhum texto poderá ter sentido válido se esse sentido não estiver de acordo com a Constituição. Do mesmo modo, hermenêutica também não é método; é modo-de-ser-no-mundo.” [43]

                                  

Bibliografia

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[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2006. p. 592-593.

[2] Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 419 e ss.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Notas introdutórias ao sistema constitucional de direitos e deveres fundamentais. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 186-188.

[4] Ibid., p. 185.

[5] “ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. DECRETO-LEI Nº 911/69. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI Nº 10.931/04. PURGAÇÃO DA MORA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA NO PRAZO DE 5 DIAS APÓS A EXECUÇÃO DA LIMINAR. 1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil, ‘nos contratos firmados na vigência da Lei nº 10.931/04, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária’. 2. Recurso especial provido.” (STJ, REsp 1.418.593/MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, j. 14.05.2014)

[6] Ainda em azo reformatório, não olvidamos da promulgação da Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014, que também pontualmente alterou a disciplina da alienação fiduciária de bens móveis. Nada obstante, para o que a nossa crítica se serve, esta mudança legislativa não importa maior reflexão senão a de notarmos que a lei prorroga o entusiasmo a um mercado cada vez mais dinâmico, nem que para isto a segurança das relações jurídicas tipicamente dialéticas seja relegada a um segundo plano de intenções. De efeito, destaca-se do novel texto normativo a dispensa da notificação via Cartório de Títulos e Documentos ou protesto de título para a constituição em mora do devedor, bastando carta registrada com aviso de recebimento, não sendo inclusive exigido que a assinatura do documento seja a do próprio destinatário; ainda no mote, prevê a possibilidade de a liminar em ação de busca e apreensão ser apreciada durante o plantão judicial, de todo modo a garantir um exame ininterrupto; e, ademais, quando da decretação da busca e apreensão do veículo, determina que o juiz insira restrição judicial diretamente na base de dados do Renavam, assim o bem tornar-se-á automaticamente inalienável até a retirada da constrição após a apreensão do veículo (arts. 2º, §§ 2º e 3º, caput e § 9º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, com redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014, respectivamente).

[7] Cf. redação original do art. 3º e parágrafos do Decreto-Lei nº 911/69.

[8] Cf. art. 56 da Lei nº 10.931/04.

[9] Este, aliás, era o entendimento consolidado na Súmula nº 284 da Casa, verbis: “Purgação da mora. Alienação fiduciária. A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é permitida quando já pagos pelo menos 40{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} (quarenta por cento) do valor financiado”. O montante da dívida cobrada, objeto da purgação da mora, deveria compreender somente as prestações vencidas no momento do cálculo (nesse sentido: REsp 882.384/GO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, j. 18.02.2010, DJe 01.03.2010; REsp 904.752/MG, Relª Minª Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 20.10.09, DJe 11.11.09; AgRg no Ag 1.132.334/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 15.03.2011, DJe 18.03.2011).

[10] Neste ponto, vale lembrarmos das críticas tecidas por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira e Daniel Mitidiero (Curso de processo civil: teoria geral do processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010. v. 1. p. 15) e Lenio Streck (Um debate com [e sobre] o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero, ou “colaboração no processo civil” é um princípio? Revista de Processo, São Paulo, RT, nov. 2012, p. 213, v. 213) sobre a inconstitucionalidade da liminar prevista no art. 3º do Decreto-Lei nº 911/69, com as quais concordamos. Para os autores, texto normativo que estabeleça a possibilidade de antecipar busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, sem que antes se oportunize a palavra ao devedor executado, não se harmoniza com a compreensão democrática da garantia fundamental do contraditório. É verdade que Streck, de um lado, debate os fundamentos que levaram Alvaro de Oliveira e Mitidiero, de outro, a também impugnarem a constitucionalidade da liminar em tela. Neste ponto, concordamos com ele. Assim, ao verticalizarmos um pouco o debate, encontraremos crítica de Streck, amparado em paradigma hermenêutico (filosófico), em face do formalismo-valorativo de Alvaro de Oliveira e Mitidiero. A discussão é proveitosa e por isso remetemos o leitor para os textos mencionados, uma vez que por ora não nos é oportuno impulsioná-la, haja vista que nossa atual crítica aponta, sobretudo, para outro norte, qual seja a possibilidade da purgação de mora neste tipo de contrato, desautorizada pela alteração legislativa de 2004 e referendada pelo STJ.

[11] Cf. NUNES, Rizzato. Comentário ao artigo 5º, XXXII. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 346-348.

[12] Cf. NERY Jr., Nelson. Da proteção contratual. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev., atual. e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 1. Direito material (arts. 1º a 80 e 105 a 108). p. 528-530.

[13] Do contexto, também escreve Tercio Sampaio Ferraz Junior: “O contrato sofre, inevitavelmente, com estas transformações sociais, um processo significativo de estandartização. Nesse sentido é típico o aparecimento dos contratos de adesão. A estandartização dos contratos é uma das consequências do aparecimento das sociedades de massa. A segunda consequência é a substituição, progressiva, das relações de trocas individuais numa sociedade dada por relações de trocas coletivas. O aparecimento dos contratos coletivos é típico para este tipo de transformação social” (Destino do contrato. Revista do Advogado, ano III, n. 9, 1980, p. 53).

[14] Nada obstante a divergência sistêmica considerada, é verdade que as bases contratuais privatistas fundadas na “autonomia da vontade” encontram gradativas resistências na evolução da teoria contratual. Se pontuarmos, em um primeiro momento, no período pós-Revolução Francesa os Códigos Civis oitocentistas simbolizavam o individualismo burguês e as liberdades políticas antiabsolutistas. Neste contexto se verificou o apogeu da liberdade contratual, as partes eram quase soberanas em suas vontades, de todo modo que encontravam restrições apenas na lei, que, por sua vez, entendia os ideais burgueses dominantes à época. É como explica o jurista italiano Guido Alpa, ao introduzir a filosofia-normativa do Código Civil italiano de 1865: “(…) i redattori impressero al Code civil una matrice individualista (…) per affermare il principio di autonomia della persona. Ciò si evincerebbe dalle disposizioni che erigono la voluntà delle parti alla sovranità quasi assoluta dell’individuo (…). Insomma, il Codice appare quello che era veramente, un codice cioè borghese, fatto per individui che disponevano o amministravano un patrimonio” (Trattato di diritto civile: storia, fonti, interpretazione. Milano: Giuffrè, 2000. v. 1. p. 21-22). Nesse ensejo, também escreve Bonavides: “A burguesia triunfante, ao soar esse ensejo histórico, enfeixava todos os poderes e se justificava socialmente como se fora o denominador comum de todas as classes, por cuja liberdade – uma liberdade que de modo concreto só a ela aproveita em grande parte – havia traçado armas com o despotismo vencido” (Do Estado liberal ao Estado social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 76). Todavia, esse cânone jusracionalista de liberdade contratual viria a abalar-se com o advento do Estado Social de Direito na virada do século. A abertura dos juristas às ciências sociais, à reflexão crítica, evidenciou o individualismo discriminatório que embasava os Códigos Civis oitocentistas, de maneira a fazê-los repensar um sistema jurídico agora igualitário. Era o tempo em que a atenção estatal voltava-se à consagração de políticas públicas através de uma política social intervencionista. Dessarte, esta ideologia influenciou uma recapitulação da normatividade constitucional ora voltada à consagração de direitos sociais (e.g., Constituição alemã de Weimar de 1919) e, assim, a dogmática do direito contratual pautou-se em novos contornos que priorizavam um olhar social às custas da autonomia individual do liberalismo. Em Alpa: “(…) il diritto era espressione di un patrimonio monolitico e giuridico borguese che, ingigantito dagli apporti giusnaturalistici, fortificato dai consolidamenti positivistici, sacralizzato dai suoi legami con la mitica Rivoluzione e con le istanze nazionalpatriottarde, pareva, a fine Ottocento, più un oggeto di culto che di possibile discussione e revisione (…). L’ansia per le riforme imboca dunque prima la strada delle proposte di ricodificazione, poi la strada degli interventi sociali di marca rigorosamente statalista (…) dignità, lavoro, solidarietà sono i pilastri del socialismo giuridico e dei progetti di riforma; limiti alla proprietà e alla libertà contratuale por ragioni sociali sono i nuovi confini del diritto privato” (op. cit., p. 121-122). Por último, o constitucionalismo do segundo pós-guerra, ciente das atrozes sequelas marcadas na história do Estado Liberal e Social de Direito, instaura o Estado Democrático de Direito. Pela primeira vez a participação pública é erigida a fundamento de Estado no projeto de construção de uma sociedade que contemple o justo equilíbrio entre o indivíduo e a coletividade, entre a liberdade e a autoridade, entre as garantias individuais e os direitos coletivos. Neste contexto estão a Constituição francesa de 1946, a Constituição italiana de 1948, a Lei Fundamental alemã de 1949 e a Constituição brasileira de 1988, e.g. E neste propósito se desenha a legislação infraconstitucional mediante a um fenômeno designado por parte da doutrina sobre a “constitucionalização do direito privado”, é como estabelece o italiano Alpa: “(…) la Constituzione della republica constituisca un segno di frattura con il passato, per la tavola di valori che essa incorpora e per le numerose disposizioni che riguarda i rapporti tra privati (…) con diversi metodi gli studiosi del diritto civile si interrogano sulla attualità e sulla utilità distinzione tra diritti pubblico e diritto privato, se ne tracciano i nuovi confini, se ne individuano le radici filosofiche e sociologiche, se ne discute la necessità e se ne sottolineano i presupposti ideologici ed economici. In termini riassuntivi, si apre il dibattito sulla crisi della distinzione, che, per i civilisti, significa vera e propria ‘crise del diritto privato’. Dai manuali ocorre pertanto risalire alle elaborazioni dottrinali più appronfondite (…). La ‘costituzionalizzazione’ del diritto privato assume nuovi contenuti e nuovi contorni: si trasforma in codificazione dei limiti all’iniziativa privata dettati dall’interesse publico, dei limiti all’autonomia negoziale, dei controlli nell’orbita privatistica”. Pelo que conclui: “La costituzionalizzazione del diritto privato è espressione di nuove garanzie, sia per prevenire gli abusi del legislatore, sia per riconoscere nel quadro della organizzazione sociale e politica i principi gli instituti essenziale che attengono ai rapporti interprivati e più in generale alla dignità della persona” (Ibid., p. 188-190). Assentida ou criticada a designação, fato é que, sob a perspectiva do Estado Democrático de Direito e pelo que se depreende de um alvissareiro pensar “neoconstitucionalista” (constitucionalismo contemporâneo, Streck), o ordenamento jurídico volta-se à atenção substancial do conteúdo principiológico constitucional. Com efeito, a ressaltar o propósito desta nota, está o art. 421 do nosso Código Civil (Lei nº 10.406/02), verbis: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

[15] Quando indagamos, buscamos fazê-lo a partir do que ensinara Hans-Georg Gadamer sobre a primazia hermenêutica da pergunta: “Compreender a questionabilidade de algo é, antes, sempre perguntar. Em face do perguntar cabe um comportamento potencial, de simples teste, porque perguntar não é pôr, mas provar possibilidades (…). Aquele que quer pensar tem de perguntar. Quando alguém diz ‘aqui caberia uma pergunta’, isto já é uma verdadeira pergunta, disfarçada pela prudência ou cortesia (…). A dialética da pergunta e resposta que descobrimos na estrutura da experiência hermenêutica nos permitirá agora determinar mais detidamente a classe de consciência que é a consciência da história efeitual, pois a dialética da pergunta e resposta que pusemos a descoberto permite que a relação da compreensão se manifeste como uma relação recíproca, semelhante a uma conversação. É verdade que um texto não nos fala como faria tu. Somos nós, os que o compreendemos, os que temos de trazê-lo à fala, a partir de nós. No entanto, já vimos que este trazer-à-fala, próprio da compreensão, não é uma intervenção arbitrária, nascida da origem própria, mas está referida, enquanto pergunta, à resposta latente no texto. A latência de uma resposta pressupõe, por sua vez, que aquele que pergunta é alcançado e interpelado pela própria tradição. Esta é a verdade da consciência da história efeitual. A consciência com experiência histórica, na medida em que nega o fantasma de um esclarecimento total, justo por isso, está aberta para a experiência histórica. Descrevemos sua maneira de realizar-se como a fusão de horizontes do compreender que faz a intermediação entre o texto e o intérprete” (Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 551-555).

[16] Cf. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Vários tradutores. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013. Especialmente ponto 7.4, Concretização da Constituição. Trad. Peter Naumann. p. 122-124. Em parte: “Tradicionalmente estava em jogo a ‘aplicação’ de leis. Estas deviam ter um conteúdo, determinado pela vontade do seu autor (legislante). É, portanto, o legislador (por intermédio da boca do juiz) que fala, decide, assume a responsabilidade (…). Esse paradigma familiar opera com pressupostos toscos (…). O juiz ou outro jurista que decide, ‘subsume’ de acordo com o paradigma de Montesquieu. Ele faz isso à maneira ‘silogística’, subsumindo o caso jurídico aos conceitos de uma norma jurídica previamente dada, que deve ser justamente idêntica com o texto contido no código legal. A lei é lex ante casum, ‘devendo ser aplicada’ por meio do silogismo judicial. Aqui supõe-se o ordenamento jurídico como sistema manuseável sem dificuldades fundamentais: ‘Trata-se (…) das três suposições fundamentais de coerência [Geschlossenheit], ao menos da possibilidade de concluir por via lógica (…). Em oposição a esse mito a teoria estruturante do direito desenvolveu desde meados dos anos 1960 uma concepção nova, pós-positivista da teoria do direito: a norma jurídica não está já contida no código legal (…). A ‘norma jurídica’ se transforma assim em um conceito complexo, composto de programas da norma e âmbito da norma. E ‘atividade concretizante’ não significa mais tornar mais concreta uma norma jurídica genérica, que já estaria contida no código legal, mas significa, a partir de uma ótica e uma reflexão realistas, construção da norma jurídica no caso individual (…). Isso dinamiza ao mesmo tempo o trabalho dos juristas no eixo norma-caso, apreende esse trabalho de modo realista como um processo também temporal: texto da narrativa do caso e textos das normas na codificação, textos do programa da norma e do âmbito da norma, texto da norma jurídica e da norma decisória (a parte dispositiva da decisão). (…) o âmbito da norma coconstitui a norma jurídica”.

[17] Ibid., p. 65.

[18] ADCT: “Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.

[19] NERY Jr., Nelson. Op. cit., p. 515-516.

[20] Com efeito: “(…) princípios são a institucionalização do mundo prático no direito. Os princípios constitucionais são o modo de superação do mundo das regras do positivismo. Por isso o neoconstitucionalismo resgata a ‘realidade perdida’, trazendo para dentro do direito os conflitos sociais e todos os demais elementos que não faziam parte, até então, das ‘preocupações do positivismo” (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e[m] crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 253). Ainda, a correlacionar esta alvissareira percepção principiológica aos ditames da hermenêutica filosófica, destaca-se: “(…) a hermenêutica filosófica torna mais nítido o facto de a compreensão se fundar na praxis da vida. É justamente o conceito de pré-compreensão, comum na hermenêutica, que deve documentar que a compreensão radica na praxis da vida. A hermenêutica filosófica mostra, assim, que as hipóteses apresentadas para a interpretação de um texto não são descobertas através de um processo orientado por regras, antes têm origem no viver quotidiano, sendo trazidas para o texto que se pretende compreender” (ULRICH, Schroth. Hermenêutica filosófica e jurídica. In: KAUFMANN, Arthur; HASSERMER, Winfried [Org.]. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002. p. 385).

[21] Despiciente dizer que o atual caminhar dos direitos do consumidor não encontra-se tensionado ao princípio da proibição de excesso (Übermassverbot).

[22] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo II. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti Schuback. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 183-184. No ponto, também vale colacionar as lições de Maurício Ramires quando, através de uma leitura crítica sobre a aplicação dos “precedentes” no direito brasileiro, escreve: “O fundamento de toda uma teoria dos precedentes é o de que o direito rejeita os casuísmos e tende à integração e à coerência. Ainda que um julgador histórico tenha pretendido decidir fora da história – produzindo uma decisão com ambição expressa de absoluta individualidade e unicidade, que não tenha história, que não faça época e que fique no presente, sem atravessar o futuro -, sua tarefa será frustrada, porque ele está desde já sempre jogado no mundo” (Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 93).

[23] Cf. a Exposição de Motivos relativa à Lei nº 10.931/04, subscrita pelo então Ministro de Estado da Fazenda, Antonio Palocci Filho.

[24] Nesse sentido escreve Vitor Frederico Kümpel, verbis: “Apesar de o instituto ora tratado [alienação fiduciária de bem móvel] ser pura relação de consumo, entre os muitos direitos do consumidor suprimidos, é possível destacar mais do que um direito, um princípio que não pode ser esquecido, que é o da vedação ao retrocesso social. Na medida em que os direitos do consumidor constituem garantia fundamental impera o princípio da vedação ao retrocesso social. (…) a reforma legislativa abordada pela Lei nº 10.931/04 acabou por constituir verdadeira reformatio in pejus em prejuízo do réu, com grande falha do sistema que deixa de se preocupar com seus resultados e com a necessidade de cada parte, em prejuízo de seu objetivo fundamental, isto é, como diria Chiovenda, dar a quem tem razão tudo aquilo e precisamente aquilo a que essa pessoa tem direito” (Alienação fiduciária de automóveis e a reformatio in pejus no novo procedimento de busca e apreensão do bem móvel. Migalhas [online]. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI202427,51045Alienacao+fiduciaria+de+automoveis+e+a+reformatio+in+pejus+no+novo>. Acesso em: 15 jul. 2014).

[25] CDC, art. 51, § 1º: “Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (…) II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual”.

CDC, art. 6º: “São direitos básicos do consumidor: (…) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

[26] Cf. REsp 1.418.593/MS (2013/0381036-4), cit. Ainda, está a precisa arguição esposada pela Defensoria Pública da União (DPU), enquanto amicus curiae, verbis: “Então, excluídas as parcelas vincendas, o conceito/valor atribuível à expressão ‘integralidade da dívida pendente’ deve estar diretamente relacionado ao valor das parcelas vencidas, acrescidos dos juros e multa pactuados, bem como da correção monetária, solução essa, aliás, que espelha também aquela fórmula referida no art. 401 do CCB e que mais uma vez contribui para a manutenção do equilíbrio contratual”.

[27] Ao reportarmo-nos ao mestre Konrad Hesse, vale realçar passagem de sua importante obra para o direito (constitucional), na qual na busca pela força normativa da Constituição “desvela” um “novo” modo de interpretar, já compromissado com o paradigma pós-positivista de “resgate à realidade perdida” (Streck), verbis: “Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebotoptimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição têm a sua eficácia condicionados pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação (…). A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade (…). Em síntese, pode-se afirmar: a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo” (A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 22-24).

[28] GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere: a cura di V. Gerratana. Torino: Einaudi, 1975. Q 3, § 34, v. 4. p. 311.

[29] REsp 1.418.593/MS (2013/0381036-4), cit.

[30] NERY Jr., Nelson. Op. cit., p. 516.

[31] Para uma pertinente compreensão e, assim, distinção entre princípios gerais do direito e princípios constitucionais, cf. ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: RT, 2013. p. 248-255.

[32] De oportuno, está a crítica da pena de Lenio Streck sobre a importante doutrina hermenêutica assinada pelo douto Carlos Maximiliano: “Carlos Maximiliano, autor da clássica obra sobre hermenêutica, entendia que interpretar é a busca do esclarecimento, do significado verdadeiro de uma expressão; é extrair de uma frase, de uma sentença, de uma norma, tudo o que na mesma se contém. Aproximava-se – e não é temerário afirmar isto – da tese objetivo-idealista defendida por Emilio Betti, pela qual era possível a reprodução do sentido originário da norma” (Hermenêutica jurídica e[m] crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 116).

[33] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 69.

[34] Ibid., p. 192.

[35] Ibid., p. 191.

[36] Nesse sentido, com apoio no jurista Paul Vander Eycken (Méthode positive de l’lnterprétation juridique, 1907. p. 346), escreve Maximiliano: “Que lei é clara? É aquela cujo sentido é expresso pela letra do texto. Para saber se isto acontece, é força procurar conhecer o sentido, isto é, interpretar. A verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma (…). Demais se às vezes à primeira vista se acha translúcido um dispositivo, é pura impressão pessoal, contingente, sem base sólida” (Ibid., p. 30-31).

[37] Nesse ensejo, só pode nos mal impressionar os enquilosados discursos sufragados na tese do in claris cessat interpretatio que ainda insistem soar nos Tribunais de Pindorama, a valer: “Daí ser no mínimo defasada a decisão do Ministro Ricardo Lewandowski, que no ano de 2012 ainda lançou mão do brocardo que afirma inexistir interpretação diante da clareza do texto, ressaltando e elogiando esse legado da Escola da Exegese. Verbis: ‘Nessa linha de raciocínio, a tão criticada – e de há muito superada – Escola da Exegese, que pontificou na França no século XIX, na esteira da edição do Código Civil Napoleônico, legou-nos uma assertiva de difícil, senão impossível, contestação in claris cessat interpretatio. Ou seja, quando a lei é clara não há espaço para a interpretação’ (decisão do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da ADPF 54). Na mesma linha de raciocínio pode ser exposta a manifestação da Ministra Ellen Gracie, que durante o debate da Súmula Vinculante nº 14 afirmou que ‘a súmula vinculante é algo que não deve ser passível de interpretação, deve ser suficientemente clara para ser aplicada sem maior tergiversação’ (Plenário edita 14ª Súmula Vinculante e permite acesso de advogado a inquérito policial sigiloso. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=102548>. Acesso em: 9 dez. 2014)” (STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto: o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 56-57).

[38] Outrossim, notem esta (in)suficiência ôntica interpretativa representada por um discurso lógico-dogmático no porte da fala da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), que assim se manifestou nos autos do recurso em tela: “Não é necessário, no entanto, acudir à intenção do legislador para chegar a essa conclusão. Os mais diversos métodos de interpretação conduzem ao mesmo entendimento. Deve-se atentar, inicialmente, para a circunstância de que o dispositivo legal vincula a purgação da mora ao fato de o devedor fiduciante (…) pagar a integralidade da dívida pendente. A expressão ‘dívida pendente’ remete, inequivocamente, a toda a obrigação pecuniária ainda não paga pelo devedor e não apenas às prestações vencidas (…). Desafia, assim, o texto e a lógica pensar que teria havido um esforço legislativo para alterar a redação do § 2 do art. 3º para que tudo permanecesse como estava, para permitir a purgação da mora no processo de busca e apreensão” (grifo nosso). Nada obstante, é certo que a associação civil tem claros interesses (econômicos) na causa, haja vista representar instituições que diariamente outorgam contratos de alienação fiduciária em garantia no mercado. Em verdade, o “estado de exceção hermenêutico” agrava-se quando evidenciado em renomadas doutrinas que pregam visão (a)crítica compromissada unicamente com a (des)ordem jurídica formalista-burocrata. Neste diapasão: “Purga da mora: era admissível ao devedor escapar da busca e apreensão, no sistema do Decreto-Lei nº 911/69, recolhendo apenas as prestações vencidas, mas isto só se permitia caso já tivessem sido pagos pelo menos 40{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} da dívida. Pela nova sistemática implantada pela Lei nº 10.931/04, não existe mais a antiga purga da mora. O devedor executado só escapa da busca e apreensão pagando o valor integral do saldo do contrato, e isto haverá de acontecer nos primeiros cinco dias após a execução da liminar” (THEODORO Jr., Humberto. Curso de direito processual civil: procedimentos especiais. 43. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 3. p. 575).

[39] Para um abalizado esclarecimento sobre a corrente filosófica que se convencionou chamar de ceticismo, cf. ADEODATO, João Maurício. Ceticismo, direito e tolerância. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 1º ago. 2014.

[40] STRECK, Lenio Luiz. Um sintoma do atraso de nosso direito: acreditar que basta estar na lei. Consultor Jurídico (online), São Paulo, 17 jul. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-17/senso-incomum-sintoma-nosso-atraso-nao-basta-estar-lei>. Acesso em: 17 jul. 2014.

[41] Cf., neste sentido: REsp 492.777/RS, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 01.09.03; REsp 901.561/SC, Relª Minª Hélia Quaglia Barbosa, DJ 01.09.08; REsp 1.012.915/PR, Relª Minª Nancy Andrighi, DJe 03.02.09; AgRg no Ag 959.112/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 28.04.08; REsp 507.044/AC, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 03.05.04; REsp 595.006/RS, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 18.09.06.

[42] REsp 1.021.578/SP, Relª Minª Nancy Andrighi, DJe 18.06.09.

[43] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 236-237.

 

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