CONTRATAÇÃO DIRETA DE ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Raphael Sodré Cittadino
A advocacia é um ofício em que experiência, conhecimento técnico e especialização exercem papéis fundamentais na repercussão e nos resultados dos casos. Em muitas situações, a complexidade e a natureza dos processos demandam a atuação de profissionais com expertise particular para representar os interesses das partes envolvidas.
Nesse sentido, é comum que o poder público recorra à contratação de advogados, visto que a administração frequentemente se depara com demandas judiciais, consultivas e extrajudiciais com teor altamente complexo. Portanto, a escolha especializada seria, em tese, a medida mais apropriada para benefício do interesse público. Mas como isso se dá na prática? Como a lei e a jurisprudência estabelecem as balizas para essa contratação?
As atividades advocatícias no âmbito da administração pública devem ser desempenhadas em regra por advogados públicos, ou seja, profissionais providos mediante concurso público. Em situações excepcionais, que demandam uma análise de necessidade específica, a regra que se vem a mente, nos termos da lei de licitações, seria a terceirização por intermédio de licitação. Contudo, a própria Constituição Federal ao consagrar a exigência da licitação para as contratações públicas, expressamente possibilita a sua exceção, conforme previsto no inciso XXI do artigo 37[1].
Nesse sentido, de forma geral, conforme a legislação de licitações e contratos administrativos — tanto a Lei nº 8.666/1993 como a nova Lei nº 14.133/2021[2] — o órgão público interessado em contratar determinado serviço inicialmente realiza um planejamento do que será licitado, faz a publicação do edital e depois a habilitação dos participantes que devem comprovar sua capacidade técnica, econômico-financeira e de regularidade fiscal. Após a fase de habilitação, são abertos os envelopes com as propostas de preços dos licitantes habilitados e esses analisados conforme a exigência do edital, avaliando a melhor técnica e o menor preço, para enfim formalizar a contratação.
Processos judiciais ou demandas administrativas, porém, podem envolver prazos apertados, exigindo requerimentos precisos e decisões rápidas para a proteção dos interesses públicos. Sendo a celeridade na prestação dos serviços jurídicos um fator preponderante, a legislação brasileira prevê a especial inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização.
Ou seja, visando garantir a eficiência, celeridade e qualidade na prestação dos serviços jurídicos necessários aos órgãos públicos, por vezes demanda-se a contratação direta de advogados sem a exigência de licitação. Inicialmente a referida previsão legal de inexigibilidade está prevista no inciso II do artigo 25[3] da Lei nº 8.666/1993, tendo a natureza singular do serviço e a notória especialização dos profissionais ou empresas como condicionantes.
Diante disso, evidencia-se que tal disposição é aplicável aos serviços advocatícios, pois esses se enquadram como serviços técnicos especializados nos termos do artigo 13[4] da mesma lei. Apesar da referida previsão legal, com o devido amparo constitucional, ocorreram e ainda ocorrem diversas condenações por improbidade administrativa em virtude da contratação de advogado particular com a Administração Pública sem o procedimento licitatório. Essas decisões vão de encontro à legislação específica, provocam a perda da coercitividade da norma, ofendem o princípio da segurança jurídica e afetam a expectativa de direito.
Ademais, diferentes juízos apenas afastavam a incidência do inciso V do artigo 13 e do inciso II do artigo 25, ambos da mencionada Lei de Licitações e Contratos, o que caracteriza declarações incidentais de inconstitucionalidade e ofensa direta ao teor da Súmula Vinculante nº 10, qual seja: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte“.
Foi nesse contexto que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil — em agosto de 2016 — ajuizou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 45 no Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de restaurar a plena eficácia normativa dos dispositivos mencionados da Lei nº 8.666/1993 em face de sua verificada compatibilidade com os princípios da Constituição Federal. A temática comporta relevante controvérsia jurídica em âmbito nacional, embora o STF já possua entendimento consolidado no sentido de afastar a suposta improbidade administrativa nos casos de contratação de serviço advocatício por inexigibilidade de licitação, desde que observados determinados parâmetros e critérios.
Colacionando decisões judiciais que dão aplicação dúbia, muitas vezes contraditória, e não declaram propriamente constitucional ou inconstitucional o texto dos artigos 13 e 25 da Lei nº 8.666/1993, a ADC 45 tem por objetivo afastar incertezas e harmonizar de modo ainda mais coeso a interpretação judicial. Vale ressaltar que a ação declaratória de constitucionalidade é um postulado de segurança jurídica, estabelecido no controle concentrado, diante da constatação de que atos diversos podem comprometer a presunção de constitucionalidade de determinadas normas e atos do Poder Público.
A ADC 45 foi pautada para julgamento no Plenário Virtual em novembro de 2020, oportunidade em que o ministro relator Roberto Barroso votou pela parcial procedência da ação, para conferir interpretação conforme a Constituição, com a fixação da seguinte tese:
“São constitucionais os artigos 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993, desde que interpretados no sentido de que a contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública, por inexigibilidade de licitação, além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), deve observar: 1) inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e 2) cobrança de preço compatível com o praticado pelo mercado.”
O voto do relator foi acompanhado pelos ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Entretanto, o julgamento virtual do processo foi interrompido com o pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes.
Nesse contexto, analisando a jurisprudência do Supremo, o postulado que consta na tese do relatório é semelhante à decisão decorrente do julgamento do Inquérito 3.074, concluído no ano de 2014, em que se estabeleceu que a contratação direta de escritório de advocacia, sem licitação, deve observar os seguintes parâmetros: 1) existência de procedimento administrativo formal; 2) notória especialização profissional; 3) natureza singular do serviço; 4) demonstração da inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e 5) cobrança de preço compatível com o praticado pelo mercado[5].
É relevante destacar que inexigibilidade de licitação não significa a ausência de controle, pois persiste a indispensabilidade de procedimento administrativo formal para publicizar a motivação da contratação e o não afastamento da possibilidade de verificação, caso a caso, dos pressupostos legais e limites constitucionais da terceirização. É o processo administrativo formalizado que possibilita a reunião de documentos e elementos necessários para apreciar se determinada contratação direta ocorreu a contento, o que facilitaria o controle posterior.
Para determinar se há notória especialização profissional, o §1º do artigo 25 da Lei de Licitações e Contratos, dispõe que se deve observar o conceito do profissional ou empresa no campo de sua especialidade a partir do seu desempenho em trabalhos anteriores, estudos, experiências, publicações, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com sua atividade. A partir de tais considerações, é possível inferir se o trabalho do profissional ou da empresa é indiscutivelmente essencial e o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Visando reproduzir e particularizar essa compreensão no âmbito da advocacia, em agosto de 2020 foi promulgada a Lei nº 14.039, acrescentando ao Estatuto da OAB o artigo 3º-A e seu parágrafo único que, basicamente, repete o que está disposto no supramencionado artigo 25.
Diante da advocacia pública, que conta com uma seção completa na Constituição e tem por função a tutela dos interesses públicos, a demonstração da inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público é também um parâmetro a ser observado antes da contratação direta de serviços advocatícios. Se por um lado a existência de entidade pública com quadro próprio de procuradores não obsta, por si só, a contratação de advogado particular para a prestação de determinado serviço, por outro lado, faz-se necessária a exposição de relevante inconveniência ou inadequação da prestação do serviço pelos membros da advocacia pública, em razão da especificidade da matéria ou relevante deficiência da estrutura estatal, sob pena de usurpação de função e violação ao mandamento constitucional do concurso público.
Sobre o preço desses serviços, o ministro Roberto Barroso, em seu voto na ADC 45, assinala que é preciso que a Administração “demonstre que os honorários ajustados encontrem-se dentro de uma faixa de razoabilidade, segundo os padrões do mercado, observadas às características próprias do serviço singular e o grau de especialização profissional”. Dessa forma, a justificativa do preço deve ser lastreada em elementos que confiram objetividade à análise, contendo comparação da proposta apresentada pelo profissional que se pretende contratar com os preços praticados em outros contratos cujo objeto seja análogo.
No que compete ao serviço a ser prestado, demanda-se que seja uma tarefa ou situação alheia à rotina do órgão contratante e da advocacia pública que o atenda, sendo inadmissível a contratação de um profissional especializado para um serviço simples ou habitual. Portanto, o objeto do contrato, como prevê o inciso II do artigo 25 da Lei nº 8.999/1993, deve ter natureza singular, ou seja, o serviço a ser realizado deve envolver complexidade que demanda por peculiar expertise.
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, “um serviço deve ser havido como singular quando nele tem de inferir, como requisito de satisfatório entendimento da necessidade administrativa, um componente criativo de seu autor, envolvendo o estilo, o traço, a engenhosidade, a especial habilidade, a contribuição intelectual, artística, ou a argúcia de quem o executa, atributos, estes, que são precisamente os que a Administração reputa convenientes e necessita para a satisfação do interesse público em causa“[6].
Mesmo com essas ponderações, o parâmetro da natureza singular é de difícil concepção e amplo arbítrio, por essa razão a Lei nº 14.133/2021, a nova Lei de Licitações, substitui o termo “singularidade” por “natureza predominantemente intelectual dos profissionais”. De acordo com o inciso III do artigo 74 da citada norma, é inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação.
A previsão de parâmetros e critérios para a inexigibilidade de licitação na contratação de advogados tem como principal propósito estabelecer limites claros para reduzir o número de opções aceitáveis e já descartar aquelas de aptidões controversas ou ilegítimas indicações baseadas puramente em interesses pessoais dos administradores públicos. Em síntese, a contratação direta deve ser fundamentada em critérios objetivos que comprovem a necessidade de expertise singular para o eficiente desempenho da atividade contratada.
Principalmente quando os casos envolvem temas inéditos ou altamente complexos, não é razoável exigir que os advogados públicos possuam competências específicas para lidar com todas as nuances dos processos. Nesse contexto, visando à devida eficiência do serviço do Estado, a contratação, dentro da legalidade, de advogados especializados emerge como a única abordagem adequada para assegurar uma atuação jurídica conduzida com excelência em nome da Administração Pública, primando pelo princípio da celeridade e respeitando o interesse público.
[1] CF/1988. “Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (…) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Regulamento)”.
[2] A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, é a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que entrou em vigor na data de sua publicação e manteve a vigência da norma anterior, Lei nº 8.666/1993, pelo prazo de dois anos.
[3] Lei nº 8.666/1993. “Artigo 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: (…) II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no artigo 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação”.
[4] Lei nº 8.666/1993. “Artigo 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a: (…) V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas”.
[5] STF. INQ 3074, relator ministro Roberto Barroso, 1º Turma, julgado em 26.08.2014. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4018618>.
[6] DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. Ed. 2006. P. 527.