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CONTRADITÓRIO COLABORATIVO E POSTURA DOS SUJEITOS DO PROCESSO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA

CONTRADITÓRIO COLABORATIVO E POSTURA DOS SUJEITOS DO PROCESSO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA

Rafael Calmon Rangel

SUMÁRIO: Introdução. 1 Da Evolução Histórica do Contraditório. 2 O Contraditório no CPC/2015 e a Necessária Mudança de Mentalidade/Postura. Conclusão. Referências.

                       

Introdução  

Um novo Código de Processo Civil se encontra prestes a entrar em vigor no Brasil, consagrando ideias e possibilidades até então inéditas ao sistema.

Os trabalhos da comissão encarregada da elaboração de seu projeto mantiveram forte sintonia com os preceitos constitucionais no afã de proporcionar condições para que o juiz decida a causa de forma mais consentânea com os fatos que lhe subjazem [1]. Como corolário seu texto se mostrou repleto de disposições atributivas de concreção a princípios constitucionais (implícitos e explícitos) e de força normativa a valores consagrados no ordenamento, inovando, em especial, ao impor expressamente o dever de as partes colaborarem com o juiz para a identificação das questões fáticas e jurídicas e o direito de participação ativa no processo.

Parece que o legislador pretendeu e efetivamente conseguiu elevar o contraditório à máxima potência, autorizando as partes a exercerem verdadeira e efetiva influência nas questões a serem enfrentadas e debatidas, nas provas a serem produzidas e na distribuição do encargo pertinente, nos rumos a serem tomados pelo procedimento, enfim, em todo o conjunto de elementos que possa, de qualquer forma, ser considerado pelo magistrado na estruturação de sua decisão.

Mostra disso pode ser obtida em diversos dispositivos, espalhados por praticamente todo o corpo do Código, de que são exemplo os arts. 5º a 9º, 372 e 503, aqui citados apenas a título de amostragem.

A rigor, esse “direito à influência” não chega a ser uma novidade, porquanto o direito de participação dos cidadãos em um Estado Democrático de Direito, assegurado como princípio fundamental pela Constituição da República de 1988 (art. 1º, § 1º), não se restringe à escolha dos representantes políticos, mas se espraia por todas as áreas que compõem a própria noção de Estado, como saúde (art. 198, III), assistência social (art. 204, II), educação (art. 205), cultura (art. 216-A), como forma mesmo de se efetivar direitos e garantias destinados a eles próprios, cidadãos [2], não havendo porque ser diferente no ambiente do processo, que representa um dos mais importantes instrumentos de participação popular. No entanto, não há como negar que o novo Código consagra uma radical mudança de foco na visão tradicional do contraditório, proporcionando que o juiz abandone a “relação de verticalidade” para com as partes, até hoje existente, para se posicionar como que ao lado delas na condução do processo, no debate das questões relevantes para formação de seu convencimento e na produção de provas, atuando em um arranjo interativo destinado à elaboração conjunta do julgado, que, como destinatários últimos, estarão obrigadas a obedecer [3].

Justamente por atribuir tamanho valor ao diálogo crítico, o novo Estatuto talvez requeira uma mudança de mentalidade e postura de todos os sujeitos do processo, numa conjugação de esforços voltada à asseguração do direito de participação na elaboração do julgado, dentro dos limites do necessário, para que abusos de posições processuais sejam evitadas e/ou severamente reprimidas.

É para esse ponto que o presente ensaio pretende chamar a atenção.

1 Da Evolução Histórica do Contraditório    

A noção de se permitir que uma parte influa no convencimento do julgador, mediante a exposição de sua versão dos fatos antes do julgamento, parece ser tão antiga quanto a própria ideia de humanidade, e os registros históricos comprovam tal ilação, bastando ver que a própria Bíblia Sagrada contém passagens indicando a adoção de tal proceder tanto no Antigo (Gênesis 3:9-13) quanto no Novo Testamento (Atos 26:1). Em tempos bem mais recentes, os tratados e as convenções internacionais sobre direitos humanos, ratificados por quase todos os países do globo, incluindo o Brasil, possuem disposições semelhantes, assegurando o direito de a pessoa ser ouvida previamente a toda e qualquer decisão judicial que possa influenciar em sua esfera jurídica [4].

Na literatura, existe farto material a respeito da origem histórica do instituto [5]. Todavia, pela maneira tão condensada quanto completa de análise, aqui merece prestígio o ponto de vista manifestado por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira [6]. Rememorando a fase embrionária, o professor cita, inicialmente, o período do direito romano em que o juiz se via absolutamente impedido de promover o julgamento daquela parte que se recusasse a comparecer voluntariamente à sua presença, se a força física do autor da demanda não fosse suficiente para demovê-lo desse intento. Na sequência, aponta que a superação dessa concepção ocorreu apenas sob a égide do procedimento contumacial do direito romano pós-clássico, quando se passou a admitir o julgamento do réu sem sua presença. A partir daí, reconstrói todo o trajeto perpassado pelo instituto, destacando os períodos em que ele foi “rebaixado a princípio externo e puramente lógico-formal“, quando bastava a mera oportunização de que a parte fosse ouvida para se ter por atendida a “garantia à audiência bilateral” (Grundsatz des beiderseitigen Gehörs), e posteriormente reconduzido à posição de instituto dotado de relevância essencial ao processo, até chegar ao momento atual, no qual o diálogo e a cooperação recíproca entre os sujeitos do processo conjugam-se com o ativismo judicial, na estruturação de um processo democrático.

Veja a transformação: há pouco tempo, o contraditório se satisfazia com a oportunização de que o requerido tomasse conhecimento da demanda e fosse ouvido a respeito [7]. Mais recentemente, essa ideia foi abandonada por completo, devido à percepção de que não bastava proporcionarem-se oportunidades, mas, sim, incentivar-se o exercício de efetiva influência (Einwirkungsmöglichkeit) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa [8].

Houve, por assim dizer, uma verdadeira transformação não só no modo de se enxergar, mas principalmente no de se operacionalizar o instituto.

Esse enfoque parece ser melhor compreendido quando se analisa o direito alemão, no qual, provavelmente, deitam-se suas raízes. De acordo com Gilmar Ferreira Mendes, por exemplo, a Corte Constitucional daquele país julgou um caso paradigmático (BVerfGE, 70, 288-293), no qual foi apreciado o denominado “Anspruch auf rechtliches Gehör” (pretensão à tutela jurídica). Na ocasião, firmou-se o entendimento até hoje aplicável de que essa pretensão “envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito de ver os seus argumentos efetivamente contemplados pelo órgão incumbido de julgar[9].

Não é de hoje que isso ocorre, porém. A bem da verdade, desde os idos de 1940, a literatura jurídica tedesca já vinha trabalhando com a noção de que o processo deveria representar algo semelhante a uma “comunidade de trabalho” (Arbeitsgemeinschaft) [10], na qual as partes, os advogados e o juiz deveriam proporcionar o ambiente ideal para a implementação de um sistema harmônico, fundado no debate e na inexistência de domínio de uns sobre os outros, que implicaria na redução do tempo de duração do processo, na elaboração de decisões mais justas e na consequente diminuição da interposição de recursos [11].

Embora tenha sido incorporada à mentalidade da doutrina nacional há menos tempo, a ideia de se oportunizar uma maior participação das partes na formação do convencimento do magistrado também angariou adeptos por aqui, que passaram a sustentar a necessidade de o processo ser encarado, pensado e aplicado sob as luzes emanadas do Estado Democrático de Direito. Embora o cenário jurídico da época fosse completamente diferente daquele instaurado a partir de 1988, Candido Rangel Dinamarco [12], por exemplo, se posicionava desde os idos de 1982 pela adoção de um contraditório que assegurasse a participação efetiva ao longo de todo o curso do procedimento, a colaboração no exercício da jurisdição, o poder de influência das partes sobre o convencimento do juiz e a informação. José Carlos Barbosa Moreira [13] não destoava desse entendimento ainda naquela década. Mais recentemente o tema passou a representar a pauta de diversos expoentes da literatura, de que são exemplos Rui Portanova [14], Artur César de Souza [15], Carlos Alberto Alvaro de Oliveira [16], Daniel Mitidiero [17] e Lucio Grassi de Gouveia [18], criando-se o ambiente ideal para a aceitação definitiva, senão da própria teoria antes mencionada, das premissas que serviram de base à sua elaboração.

Não há dúvida de que a potencialização ao máximo do contraditório acaba incentivando os direitos de influência e de debate, reforçando, com isso, a credibilidade no Judiciário pelo fato de imbuir nos jurisdicionados a crença de que apenas e tão somente os argumentos submetidos previamente à discussão no curso do processo, do qual tenham participado ativa e criticamente, foram considerados pelo Estado-juiz como razões de decidir [19].

Afere-se, por assim dizer, maior legitimidade aos julgados, na medida em que todos os sujeitos do processo exercem uma verdadeira “atividade cocriadora” das decisões emanadas do Poder Judiciário [20].

Mas se esse aumento de possibilidades pode ser visto como algo positivo em um ambiente democrático, seu uso desmedido pode representar abuso, ato ilícito, portanto (CC, art. 185), daí advindo a necessidade de que os profissionais que atuam no cotidiano forense se engajem no compromisso de exercitar suas mais diversas situações jurídicas processuais dentro da legalidade estrita.

2 O Contraditório no CPC/2015 e a Necessária Mudança de Mentalidade/Postura

As ideias de colaboração e participação ativa das partes em todas as etapas do processo parecem ter se vinculado de forma indissociável à noção de devido processo legal, encontrando campo fértil de aplicação nos Tribunais de sobreposição, mesmo antes da entrada em vigor do novo CPC. Mostra disso pode ser extraída do seguinte julgado:

1. Mandado de segurança. 2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da doação por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há vinte anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação do processo. 4. Direito Constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. (…) 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. (…) 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV).” (STF, MS 24.268/MG, Relª Minª Ellen Gracie Nothfleet, DJU 17.09.04)

Ao menos em aparência, o novo Código incorporou a concepção moderna de processo civil, pois revestiu o Capítulo I de sua Parte Geral de dispositivos impregnados de alto teor cooperativista. Observe, para tanto, que logo em seu art. 6º o legislador enuncia que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva“. Na sequência, assegura paridade de tratamento às partes no exercício das situações jurídicas processuais e na aplicação de sanções processuais, incumbindo ao juiz o dever de zelar pelo efetivo contraditório (art. 7º). Ressalvadas pouquíssimas exceções, impede que qualquer decisão seja proferida contra a parte que não tenha sido previamente ouvida e/ou com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado a ela oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria passível de conhecimento oficioso (arts. 9º e 10).

A mesma métrica é seguida por todo o Código, dando a entender que a opção do legislador foi mesmo incorporar aquela tão propalada “comunidade de trabalho” defendida pelo direito alemão (Arbeitsgemeinschaft) [21] ao ordenamento jurídico nacional.

Nesse cenário, poderia ser questionado se a ideia de cooperação entre os participantes do processo, levada a extremos, não poderia conduzir a situações um tanto delicadas, haja vista as características inerentes ao próprio ambiente sobre o qual o processo se desenvolve serem marcadas pela falta de base comum de entendimento e pela acirrada disputa entre partes, na ininterrupta tentativa de dominação de argumentos contrapostos.

É justamente por isso que se alertou no início desse trabalho para a necessidade de mudança de mentalidade e de postura dos profissionais do Direito, pois a imensidão de poderes conferidos às partes pela nova lei parece não ter sido acompanhado do mesmo nível de responsabilidades.

Para se aferir a veracidade dessa assertiva, basta ver que o sistema de responsabilidades pelos atos ímprobos inaugurado pelo novo Código (arts. 77 e ss.) nada ou muito pouco alterou o panorama deficitário e pouco utilizado do Código revogado (arts. 14 e ss.).

Não se pode negar que a noção de cooperação (ou colaboração) dentro de uma “comunidade de trabalho” traga consigo a necessidade de uma verdadeira reeducação comportamental de todos os participantes do processo, com reflexos imediatos em suas postulações, decisões e insurgências. Por isso, talvez tenha chegado o momento de se repensar atitudes e ideias em prol desse “processo cooperativo[22], e até mesmo de se redimensionar as possibilidades abertas ao juiz, para que se valha mais dos poderes saneadores, no caso de isso se mostrar necessário.

Não haveria, por óbvio, a menor possibilidade de se analisarem todas as hipóteses de atos “anticooperativos” neste ensaio. Por opção metodológica, portanto, as atenções se voltarão à singela situação hipotética abaixo retratada.

Em uma demanda tramitando sob o rito comum, é chegado o momento de o juiz sanear e organizar o processo, tal qual determinado pelo art. 357 do Código.

De forma muito mais analítica do que o sistema revogado, o Código enuncia que, por meio dessa decisão, o juiz pode, com o auxílio das partes, delimitar “as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos” e “as questões de direito relevantes para a decisão do mérito” (art. 357, II e IV).

Logo, com seu auxílio e sob sua supervisão, poderiam ser fixadas, no mínimo, as bases comuns sobre as principais questões a serem enfrentadas para a prolação da decisão, facilitando sobremaneira o trabalho de todos os sujeitos envolvidos naquela demanda específica. O Código autoriza, inclusive, a designação de audiência específica para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, ocasião em que, conforme o caso, elas poderiam ser convidadas pelo órgão decisor para integrar ou esclarecer suas respectivas alegações (art. 357, § 3º) [23].

A aceleração e a simplificação acarretadas ao procedimento parecem mesmo incentivar a designação desse ato.

O que chama especial atenção é o fato de que, nesse ponto do procedimento, o magistrado atua em posição relativamente simétrica às partes, pois sua atuação se volta muito mais à orientação e à oportunização de debate e ao esclarecimento dos pontos porventura duvidosos ou controversos [24].

É dizer: sua relação, nesse instante, apresentaria maior “horizontalização” para com as partes, sem prejuízo de vir a advertir seriamente ou impor penalidades àqueles que eventualmente se inclinem pela adoção de comportamento incoerente com o processo colaborativo.

Longe de representar algo utópico, a criação de um ambiente harmônico pelo órgão julgador e, sobretudo, a adoção de um comportamento leal pelas partes e seus respectivos advogados não significaria nada mais do que a contribuição de todos para a construção do processo colaborativo, pois mesmo imbuídas do desejo de fazer valer seus argumentos, estas poderiam perfeitamente compreender que uma verdadeira comunidade de trabalho depende do posicionamento e especialmente da reeducação comportamental de todos os seus integrantes, os quais devem assumir posturas destinadas à obtenção do pronunciamento judicial (preferencialmente de mérito), para que possam usufruir do fim último do Estado Democrático de Direito, que é a ideia de os endereçados da norma poderem se considerar também como seus autores [25].

Isso não importa dizer que as partes abandonariam seu intento de se sagrarem vencedoras na demanda. Absolutamente, não. Elas e os profissionais encarregados de sua representação se comprometeriam apenas a formar as bases comuns para que o procedimento pudesse se desenrolar sem percalços e as provas a respeito de suas respectivas alegações pudessem encontrar ambiente saudável para serem produzidas.

Por outro lado, a liberdade assegurada pelo novo Código pode levar a abusos que devem ser contidos, sob pena de se romper por completo o “panorama comunitário” indispensável para o prosseguimento do feito sob as bases já alcançadas.

Estabelecidas as bases mínimas comuns sobre as principais questões a serem enfrentadas para a prolação da decisão, a necessidade e até o interesse na interposição de recursos seriam seriamente questionáveis. Pelo mesmo motivo, os requerimentos de esclarecimentos deveriam se limitar ao indispensável apenas. Novos requerimentos muito provavelmente seriam desnecessários a partir de então, exceto naquilo que fosse absolutamente necessário para a efetiva realização das provas. Como resultado, em ocorrendo qualquer intempérie que extrapole o exercício regular do direito de postular em juízo, o juiz deve abandonar a posição de “horizontalidade” para ocupar o posto de vértice nessa relação, advertindo o litigante improbo e sancionando-o na eventualidade de ele se manter firme nesse propósito (arts. 77, III, e 80, IV e VII).

O posicionamento ora defendido, por óbvio, não é isolado. Na literatura, Maria Carolina Beraldo é uma das que defendem a necessidade de que “os julgadores se deem conta de quão necessária é a aplicação dos mecanismos que reprimem a conduta irregular das partes e façam valer as regras“, pois “não se pode admitir que as técnicas e recursos processuais se prestem a proporcionar a vitória à parte que esteja assistida pelo advogado ‘malicioso’ em detrimento da parte que litigue de forma justa. Ao contrário, a concepção finalística do processo busca garantir o êxito daquele que efetivamente esteja com a razão[26].

Superada essa etapa inicial e cientes das bases sobre as quais o procedimento se desenvolveria dali por diante, teria início a fase probatória, inclusive com a designação de audiência de instrução e julgamento, caso necessário (art. 358).

Nessa etapa, possivelmente a posição do magistrado sofreria alguma alteração no que concerne à angulação de sua relação com as partes, para que os trabalhos pudessem ser conduzidos de forma paritária e contidos eventuais abusos. Dito de outro modo, a relação começaria a se “verticalizar“, embora ainda persistissem alguns deveres inerentes à fase em que a “horizontalidade” era a regra, dando origem a uma relação mista. Logo, o julgador poderia, por exemplo, “limitar o número de testemunhas levando em conta a complexidade da causa e dos fatos individualmente considerados” (art. 357, § 7º), “dispensar a produção das provas requeridas pela parte cujo advogado ou defensor público não tenha comparecido à audiência” (art. 362, § 2º), “indeferir, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias” (art. 370, parágrafo único), devendo, ainda, manter a ordem e o decoro em eventual audiência, inclusive determinando que se retirassem da sala de audiências aqueles que se comportassem inadequadamente (art. 360), sem nunca perder de vista que tudo isso deveria ocorrer para que se atendessem aos fins sociais e às exigências do bem comum, mediante o resguardo e a promoção da dignidade da pessoa humana e a observação da proporcionalidade, da razoabilidade, da legalidade, da publicidade e da eficiência (art. 8º).

As atividades, portanto, deveriam transcorrer sob os mais amplos diálogo e participação, mas sempre sob a ciência de que o bom andamento do processo depende muito mais da consciência e da postura dos profissionais que nele atuam do que em reformas legislativas. E, mais uma vez, cabe a advertência de que cooperação não se confunde com rendição, mostrando-se perfeitamente possível que as partes colaborem com o Juízo e vice-versa, sem que suas respectivas pretensões sejam abandonadas ou sofram qualquer espécie de concessão.

Esse novo olhar sobre a disputa, com o foco voltado para a resolução da controvérsia e não necessariamente para o acolhimento de uma tese específica, parece exigir mesmo uma “revolução cultural” preconizada, no particular, por Hermes Zaneti Júnior [27], para quem:

Para obter-se a decisão judicial mais qualificada será preciso uma revolução cultural, ao mesmo tempo abandonando-se a onisciência dos juízes (e do legislador), admitindo-se, no mesmo passo, a insuficiência da norma a priori para fornecer a ‘verdade’ e dos fatos isoladamente para levarem à certeza jurídica. Nestas águas, é de rigor que se discuta direito e fato, buscando-se uma verdade provável, com alto grau de correção, dependente, justamente, do elevado contraditório processual e do comprometimento com a decisão justa e aderente aos problemas discutidos, demonstrando-se a racionalidade desta ‘certeza’ judicial pelo racconto do procedimento utilizado na sua construção.

Claro que todo “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé” (art. 5º). Portanto, a atividade probatória, assim como toda e qualquer fase do procedimento, deverá ser desenvolvida sob a ciência de que qualquer conduta que porventura se desalinhe do dever de cooperação será sancionada na forma da lei.

Encerrados os debates e inexistindo qualquer questão ou dúvida pendente, talvez surja o momento por excelência em que o juiz assume efetivamente a posição de vértice, mais equidistante possível das partes, pois os autos lhe serão encaminhados à conclusão para prolação de sentença (art. 366). Nesse ponto, parece ser possível afirmar que a “verticalidade” será a regra, haja vista a imposição constitucional e legal de proferir sentença em estrita observância ao dever de fundamentação analítica (art. 489).

Mas não é por isso que o juiz não terá que continuar exercendo atividades cooperativas. Embora a responsabilidade pela elaboração do ato sentencial seja exclusiva e integralmente sua, a ele cabe seguir as prescrições normativas correspondentes, para que seu pronunciamento atenda aos padrões de higidez e legalidade exigidos pelo novo Código, mediante a apreciação de todos os argumentos levantados no processo, inclusive daqueles extraídos a partir de uma interpretação sistemática de todo o conjunto da postulação (art. 322), para que possa solucionar não só a questão tornada litigiosa, mas, sim, o conflito que reside por detrás do litígio.

Talvez assim se consiga reduzir a altíssima taxa de congestionamento de processos e o surreal índice de reingresso de demandas no sistema de justiça brasileiro.

À guisa de conclusão deste brevíssimo ensaio, as palavras de José Pedro Luchi [28] servem de alerta. Para ele, um sistema de direitos não é suficiente para se garantir uma convivência social legítima, pautada em uma cultura política de liberdade e do respeito universal às leis da liberdade, pois, “para que as instituições jurídicas funcionem, é preciso uma formação progressiva da população. Do contrário, ou o sistema jurídico se desintegrará, ou haverá uma crescente cisão entre lei e prática social efetiva“.

Conclusão  

Sem qualquer outra pretensão que não a de suscitar a reflexão, procurou-se demonstrar que a visão (e correspectiva aplicação) do instituto do contraditório sofreu substancial alteração no processo civil brasileiro, abandonando-se a ideia inicial de mera necessidade de ciência e de possibilidade de manifestação, para a assunção de um papel essencial à estruturação do processo, pautado sobretudo na efetiva participação em todas as fases do procedimento, no diálogo e na possibilidade de influência na decisão, guardando maior sintonia com o Estado Democrático de Direito.

Mas para que se contenham abusos, talvez tenha chegado a hora de se superarem velhos paradigmas e de se implantarem novas mentalidade e postura condizentes com as diretrizes emanadas da Constituição, com o objetivo de que o debate crítico seja a principal ferramenta de influência do julgador, sem se deixar de lado a responsabilidade individual de cada participante do processo, em prol da construção de um ambiente efetivamente colaborativo e democrático.

Referências            

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[1] Disponível em: <http://direitoprocessual.org.br/fileManager/relatorioCPC.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2013.

[2] De acordo com o que parcialmente defende MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 156.

[3] Por todos: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2015. p. 72.

[4] A título exemplificativo: Declaração Universal de Direitos Humanos, art. 11.1; Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos (Banjul), art. 7º, 1.c; Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos, item V, b; e Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), art. 8º, 1.

[5] Para considerações partidas de outro ângulo sobre a origem histórica do contraditório: SOUZA, Artur Cesar de. Contraditório e revelia. São Paulo: RT, 2003. p. 138-150; e WEDY, Gabriel de J. Tedesco. O princípio do contraditório como garantia constitucional. São Paulo, Revista Síntese Jurídica, v. 54, n. 350, dez. 2006, p. 11-37.

[6] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. Revista Ajuris, n. 74, 1998.

[7] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1. p. 30-33.

[8] Precisamente nesse sentido: THEODORO Jr., Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. Porto Alegre, Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 33, nov./dez. 2009, p. 7.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 499.

[10] De acordo com a expressão utilizada na obra Lehrbuch des Deutschen Zivilprozessrechts de Leo Rosenberg, 5. ed. Munchen: Beck, 1951, traduzida para o espanhol em três volumes sob a denominação Tratado de Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: EJEA, 1955.

[11] THEODORO Jr., Humberto. Ob. cit., p. 6.

[12] DINAMARCO, Candido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: Malheiros, 1986. p. 85-100.

[13] Sobre a “participação” do juiz no processo civil. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). Participação e processo. São Paulo: RT, 1988. p. 380-394.

[14] PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 160-164.

[15] SOUZA, Artur Cesar de. Contraditório e revelia. São Paulo: RT, 2003. p. 137.

[16] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2010; A garantia do contraditório. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: RT, 1999; também em: O juiz e o princípio do contraditório. Revista de Processo, São Paulo, v. 18, n. 71, jul./set. 1993, p. 31-38.

[17] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 2009. p. 137.

[18] GOUVEIA, Lucio Grassi de. O projeto do Novo Código de Processo Civil brasileiro (NCPC) e o princípio da cooperação intersubjetiva. In: DIDIER Jr., Fredie (Coord.). Projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm. 2 série. p. 473.

[19] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 2009. p. 137.

[20] Na literatura, Jürgen Habermas pontua que, no Estado Democrático de Direito, “uma ordem jurídica é legítima na medida em que assegura a autonomia privada e a autonomia cidadã de seus membros, pois ambas são cooriginárias; ao mesmo tempo, porém, ela deve sua legitimidade a formas de comunicação em que essa autonomia pode manifestar-se e comprovar-se” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 2. p. 147). De acordo com esse enfoque, o filósofo defende que o diálogo livre, desprovido de distorções ou contenções ideológicas, aberto, permissivo e igualitário representaria o fio condutor para a estruturação do modelo de interação social por ele denominado de “ação comunicativa”, cuja formatação remete à ideia de complementaridade pelos cidadãos na elaboração das normas que eles mesmos serão obrigados a cumprir (HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 162).

[21] De acordo com a expressão utilizada na obra Lehrbuch des Deutschen Zivilprozessrechts, de Leo Rosenberg, 5. ed. Munchen: Beck, 1951, traduzida para o espanhol em três volumes sob a denominação Tratado de Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: EJEA, 1955.

[22] Sobre o processo cooperativo, conferir: DIDIER Jr., Fredie. Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo. Disponível em: <http://www.academia.edu/1771108/Os_tres_modelos_de_direito_processual>. Acesso em: 15 nov. 2015.

[23] O Enunciado nº 298 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, inclusive, é no sentido de que “a audiência de saneamento e organização do processo em cooperação com as partes poderá ocorrer independentemente de a causa ser complexa”.

[24] Em sentido próximo: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 2009. p. 68.

[25] De certa forma, esta parece ser a ideia defendida, em outras palavras, por: LUCHI, José Pedro (Coord.). Linguagem e socialidade. Vitória: Edufes, 2005. p. 136.

 [26] BERALDO, Maria Carolina Silveira. O comportamento dos sujeitos do processo como obstáculo à razoável duração do processo. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 82-83.

[27] ZANETI Jr., Hermes. O problema da verdade no processo civil: modelos de prova e de procedimento probatório. Revista de Processo, São Paulo, v. 29, n. 116, jul./ago. 2004, p. 347.

[28] LUCHI, José Pedro (Coord.). Linguagem e socialidade. Vitória: Edufes, 2005. p. 179.