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CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONFLITO DE INTERESSES ENTRE CLIENTES NO EXERCÍCIO DA ADVOCACIA

CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONFLITO DE INTERESSES ENTRE CLIENTES NO EXERCÍCIO DA ADVOCACIA

Julia Pauro

 

Questão bastante corriqueira e suscetível de diversos questionamentos no exercício da advocacia diz respeito aos conflitos de interesses entre clientes.

A disciplina desse tema advocacia está contida no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em seus arts. 17 e 18, que assim dispõem:

Art. 17. Os advogados integrantes da mesma sociedade profissional, ou reunidos em caráter permanente para cooperação recíproca, não podem representar em juízo clientes com interesses opostos.

Art. 18. Sobrevindo conflitos de interesse entre seus constituintes, e não estando acordes os interessados, com a devida prudência e discernimento, optará o advogado por um dos mandatos, renunciando aos demais, resguardado o sigilo profissional.

Como se vê, a base normativa sobre o assunto é restrita e, por conseguinte, os limites de atuação dependem, em grande parte, do senso profissional do advogado na análise do caso concreto.

A esse despeito, a jurisprudência dos Tribunais de Ética e Disciplina (TED) das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) estabeleceram algumas diretrizes para a solução de conflitos.

Primeiro, a jurisprudência é unânime no sentido de que o advogado não é totalmente livre para aceitar qualquer demanda que lhe é apresentada e que, por imperativos do Código de Ética e Disciplina da OAB, deve proceder com lealdade e boa-fé no trato com seus clientes. Nesse sentido:

PATROCÍNIO SIMULTÂNEO DE CAUSA CONTRA A EMPRESA E EM FAVOR DE UM DOS SÓCIOS DESTA – POTENCIAL CONFLITO DE INTERESSES. O advogado deve evitar o patrocínio simultâneo de causas contra a empresa e em favor de um dos sócios desta, em razão do potencial conflito de interesses. Os princípios instituídos no Código de Ética levam à conclusão de que o causídico não é totalmente livre para aceitar as causas que lhe são encaminhadas, devendo abster-se de ingressar em situações de potencial conflito. Trata-se de regra surgida com o nascimento da profissão de advogado, remontando ao tempo em que os Tribunais eram integrados por sacerdotes que cumpre ser observada e aprimorada. Advogar contra a empresa equivale a militar contra o interesse dos sócios desta, um dos quais é cliente do advogado, surgindo daí o conflito, pelo menos em tese. Deve o advogado renunciar a um dos mandatos. Aplicação dos princípios estatuídos no Código de Ética e Disciplina e no Estatuto do Advogado e inteligência dos artigos 19 e 20 do Estatuto da Ética. (OAB/SP, Proc. E–1.579/97, julgado em 16/10/97, Rel. Dr. ANTÔNIO LOPES MUNIZ, Rev. Dr. DANIEL SCHWENCK, Presidente Dr. ROBISON BARONI).

Segundo, sobrevindo conflito de interesses entre clientes já constituídos, deve o advogado renunciar a um dos mandatos e preservar sempre o sigilo profissional:

PATROCÍNIO – CLIENTES COM INTERESSES CONVERGENTES – INEXISTÊNCIA DE CONFLITO ENTRE CONSTITUINTE. O advogado pode representar mais de um cliente no mesmo polo do feito, desde que não haja conflito de interesses entre os constituintes. Surgindo controvérsias, o profissional deverá renunciar a um dos mandatos, preservando o sigilo profissional. Havendo obrigação de renúncia, deverá ser rescindido eventual contrato de prestação de serviços com a outorgante do mandato renunciado, evitando-se o patrocínio de clientes com interesses opostos. Situações processuais devem ser resolvidas no próprio campo do processo. (OAB/SP, Proc. E-2.237/00, julgado em 19/10/00, Rel. Dr. RICARDO GARRIDO JÚNIOR, Rev. Dr. JOSÉ ROBERTO BOTTINO, Presidente Dr. ROBISON BARONI)

Terceiro ao se deparar com demanda de novo cliente potencialmente causadora de conflito de interesses em relação a cliente já constituído, deve o advogado comunicar seu cliente e solicitar aceitação:

EXERCÍCIO PROFISSIONAL – POSSÍVEIS IMPEDIMENTOS OU CONFLITOS DE INTERESSES ENTRE CLIENTES OU ENTRE ADVOGADO E CLIENTE – REGRAMENTO ÉTICO. O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia (artigo 31 do EOAB). A advocacia não é uma profissão de adivinhos ou futurólogos, mas existem circunstâncias onde se deve prever acontecimentos futuros que possam por em risco a atuação ou o respeito que o advogado deve inspirar ao cliente e à sociedade em geral. Deve o advogado prever logo na contratação possíveis impedimentos ou possíveis conflitos de interesses que possam advir no curso da causa. Possíveis impedimentos ou possíveis conflitos de interesses devem ser previamente comunicados e discutidos com o cliente e podem constituir óbice ético para a aceitação da causa. (OAB/SP, Proc. E-3.692/2008, julgado em 19/11/2008, Rel. Dr. LUIZ ANTONIO GAMBELLI, Rev.ª Dr.ª BEATRIZ MESQUITA DE ARRUDA CAMARGO KESTENER, Presidente Dr. CARLOS ROBERTO F. MATEUCCI)

Na prática, consultam-se os clientes já constituídos e potencialmente interessados no assunto e registra-se formalmente a aceitação ou o impedimento manifestado. Essa é a postura adotada pela maioria dos escritórios de advocacia, em especial pelos escritórios full service, ou seja, aqueles especializados em diversas áreas do Direito e que são capazes de solucionar todos os problemas de seus clientes, desobrigando-os de procurar assessoria jurídica em diferentes escritórios para tratar de cada questão, na medida em que, pelo seu perfil, não raro advogam contra e a favor de um mesmo cliente em matérias que não importam conflitos.

Se os constituintes não concordarem com a nova contratação ou com a manutenção do patrocínio pelo mesmo advogado, cumpre ao profissional refletir sobre a pertinência ou não da renúncia ao mandato, tendo em vista que os conflitos de interesses não se restringem a uma questão legal, mas representam, sobretudo, a política interna da sociedade de advogados e afetam a imagem e a credibilidade do escritório.

Vale ressaltar que interesses concorrentes não necessariamente importam interesses conflitantes. Assim, ter clientes concorrentes no mesmo ramo de atividade, como dois bancos ou duas indústrias, pode ser aceito pela sociedade de advogados. Nesses casos, cabe ao advogado distinguir conflitos de interesse em juízo do conflito de interesses políticos.

Tal foi o entendimento reproduzido no julgamento do Processo nº E-4.142/2012, pelo TED da OAB/SP, no dia 16 de agosto de 2012, o qual foi assim ementado:

PATROCÍNIO – CLIENTES DISTINTOS COM INTERESSES CONCORRENTES MAS NÃO COLIDENTES – POSSIBILIDADE TANTO NA ADVOCACIA CONSULTIVA COMO NA CONTENCIOSA – BASILAMENTO ÉTICO A SER OBSERVADO. É possível atender clientes distintos com interesses concorrentes, desde que adotadas redobradas cautelas, como, exemplificando, a ciência e aquiescência dos mesmos quanto ao patrocínio concorrente, o absoluto resguardo do segredo profissional e demais informações que saiba em função de seu labor, e, caso o advogado sinta, ainda que minimamente, estar sua liberdade e independência de atuação afetada, deverá optar por um dos clientes ou renunciar a ambos patrocínios. Mesmo inexistindo fórmula exata e perfeita inserida em nossa legislação, deve o advogado ser não apenas o “juiz de sua própria causa” mas um rigoroso juiz da mesma, pois se assim agir enobrecerá não apenas a si próprio mas toda uma classe. Exegese do artigo 17, 18, 19 e 20 do Código de Ética e Disciplina e precedentes deste Sodalício processos nºs. E-2.237/00, E-3.692/2008, entre outros. (OAB/SP, Proc. E-4.142/2012, julgado em 16/08/2012, Rel. Dr. FABIO KALIL VILELA LEITE, Rev. Dra. MARCIA DUTRA LOPES MATRONE, Presidente em exercício Dr. CLÁUDIO FELIPPE ZALAF)

Outros exemplos interessantes a respeito do conflito de interesses no exercício da advocacia são:

a) impossibilidade de patrocínio de interesses conflitantes de clientes, ainda que em ações com objetos distintos:

RELAÇÃO CLIENTE/ADVOGADO – CONFLITO DE INTERESSES – IDENTIDADE DE CLIENTE – AÇÕES COM OBJETOS DISTINTOS – PATROCÍNIO INFIEL OU TERGIVERSAÇÃO. Ainda que os objetos sejam distintos um do outro, o advogado não pode patrocinar interesses conflitantes de seus clientes, devendo optar por um dos mandatos (art. 18 do CED). A apuração ou opinião sobre o crime de patrocínio simultâneo, em princípio inexistente, não é de competência do TED-I, cabendo ao próprio consulente, advogado que é, pesquisar a doutrina e a jurisprudência pertinentes. (OAB/SP, Proc. E-2.608/02, julgado em 18/07/02, Rel. Dr. BENEDITO ÉDISON TRAMA, Rev.ª Dr.ª MARIA DO CARMO WHITAKER, Presidente Dr. ROBISON BARONI)

b) possibilidade de representar cliente em desfavor de grupo econômico, ainda que preste serviços de assistência jurídica a empresa integrante do referido grupo:

PATROCÍNIO – GRUPO DE SOCIEDADES – INDEPENDÊNCIA E AUTONOMIA DE CADA MEMBRO – CONFLITO DE INTERESSES – INDEPENDÊNCIA CRÍTICA DO ADVOGADO. Advogado não-vinculado, em advocacia de partido, para prestar assistência jurídica a grupo econômico – mesmo encarado como conjunto de empresas transnacionais de denominações assemelhadas –, mas que, apenas, é contratado para demandar por empresa brasileira, controlada por capitais e pessoas jurídicas europeias, não está eticamente inibido de patrocinar demanda por e para outros clientes contra sociedade americana que remotamente se insinue um membro do grupo. A conclusão de flui, ademais das regras do Grupo de Sociedades, da autonomia, do patrimônio próprio e da personalidade jurídica distintas, preservadas a cada empresa-membro. Um conflito de interesses, inviabilizador desse possível patrocínio, se colocaria, apenas, nos confrontos ou demandas de empresas do grupo, entre si. Advogado, porém, de uma só – não do grupo – é falaciosa a hipótese de vê-lo demandando por duas empresas do grupo, em polos antagônicos, na mesma lide. Por imperativo profissional, não poderá o advogado fazer uso de informação privilegiada que tenha tido no exercício ou por causa do exercício da profissão. O advogado há de manter também – guiado pela consciência – sua independência e liberdade, sua autonomia profissional, e da sua conduta é “o primeiro julgador” como abre a Carta de Brasília. (OAB/SP, Proc. E-2.562/02, julgado em 23/05/02, Rel. Dr. ERNESTO LOPES RAMOS, Rev. Dr. JOSÉ ROBERTO BOTTINO, Presidente Dr. ROBISON BARONI)

c) possibilidade de pai e filho advogarem para partes adversas, desde que com anuência dos clientes:

PATROCÍNIO – PAI E FILHO ADVOGADOS” EX ADVERSO “- POSSIBILIDADE COM RESTRIÇÕES. Pai e filho não integrantes do mesmo escritório, nem sócios de fato ou de direito no mister da advocacia, não estão, em tese, impedidos de procurar interesses de entidades sindicais contrapostas (de empregados e empregadores, respectivamente), desde que atendidos, cumulativamente, os seguintes requisitos mínimos: 1) os clientes, advertidos do fato por escrito, não se oponham, em nenhum momento; 2) pai e filho não patrocinem interesses conflitantes no mesmo processo; 3) seja fielmente cumprido o dever de sigilo profissional. Em face da situação especial em que se inscreve e, em homenagem ao primado da independência profissional, caberá ao consulente como juiz de si próprio, avaliar a conveniência de prosseguir ou não com o patrocínio a que se refere. (Aplicação do art. 2º, parágrafo único, I e II, art 4º e 25 do CED). (OAB/SP, Proc. E – 1.216, julgado em 18 de maio de 1995, Rel. Dr. BRUNO SAMMARCO, Rev. Dr. ANTÔNIO LOPES MUNIZ, Presidente Dr. ROBISON BARONI)

d) impossibilidade do exercício da advocacia para associado de entidade sem fins lucrativos fora do escopo estatutário, o qual implique conflitos de interesse com a entidade:

INFRAÇÃO ÉTICA – CONFLITO DE INTERESSES – RENÚNCIA – DEVER DE OMISSÃO DOS MOTIVOS – CONTINUIDADE DA RESPONSABILIDADE DURANTE O PRAZO FIXADO EM LEI. O exercício da advocacia para as associações sem fins lucrativos, quando permitido, deve corresponder única e exclusivamente à defesa dos interesses da associação e de seus associados nos estritos fins de seu escopo estatutário, sob pena de rútila infração ético-disciplinar, consubstanciada na clara e cristalina captação de clientela através de interposta pessoa jurídica (art. 34, incs. III e IV do EAOAB). Havendo conflito de interesses entre os constituintes o advogado deverá, com a devida prudência e discernimento, optar por um dos mandatos, resguardando o sigilo profissional (art. 18 do CED). A renúncia ao patrocínio implica omissão do motivo e a continuidade da responsabilidade profissional do advogado durante o prazo estabelecido em lei (art. 13 do CED). Aplicação do art. 48 do CED. (OAB/SP, Proc. E-3.606/2008, julgado em 15/05/2008, Rel. Dr. FABIO GUEDES GARCIA DA SILVEIRA, Rev. Dr. CARLOS JOSÉ SANTOS DA SILVA, Presidente em exercício Dr. BENEDITO ÉDISON TRAMA)

Por fim, destaca-se que as situações limítrofes, que ensejam insegurança no causídico, podem ser dirimidas por meio da formalização de consultas aos TED da seccional respectiva da OAB, a quem cabe a orientação de advogados a respeito da conduta ética no exercício da profissão.