CONFLITO INTERTEMPORAL NOS CRIMES FALIMENTARES: UM CASO CONCRETO
Ruchester Barbosa
Trago um caso na coluna de hoje sobre um crime pouco comentado em razão até mesmo da pouca comunicação deste crime à polícia judiciária civil de forma exclusiva, em razão do art. 109, I da CR, porquanto a atribuição da polícia federal não vislumbrar esta modalidade criminosa pela Lei 10.446/02, consequentemente segue o paralelismo da competência da justiça federal prevista no art. 109, CR, ressalvando-se, sempre, que o conceito de atribuição não se confunde com o de competência, e por esta razão, a Lei 10.446/02 inclui a investigação dos crimes e das contravenções, no entanto, a competência da justiça federal será somente dos crimes (art. 109, IV, CR), ocorrendo o que a doutrina denomina de disjunção processual entre os crimes e as contravenções.
O caso concreto foi bem interessante porque o crime falimentar apontado teria ocorrido em 1999, ocasião em que foi solicitado o pedido de falências de uma sociedade empresária no Município de Nova Iguaçu, RJ ao juízo cível competente, com base no DL 7.661/45, inclusive sendo sido demonstrado pelos credores os indícios do crime revisto no 187 do referido diploma falimentar.
Em 31 de agosto de 2005, portanto, após os 120 dias da vacatio legis da nova lei que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, Lei 11.101 de 09 de fevereiro de 2005, foi publicada a sentença de falência desta referida sociedade empresária.
O fato dos crimes falimentares terem ocorrido sob a vigência de uma lei (DL 7.661/45) e a decretação de quebra ter ocorrido sob a vigência de outra (Lei 11.101/05), nos remete ao estudo do conflito intertemporal de leis, em especial, no caso concreto, sob qual aspecto se analisaria a prescrição, haja vista que as duas normas possuem regulamentação totalmente distinta a despeito deste tema.
A título de exemplo, reza o art. 199 do DL 7.661/45:
Art. 199. A prescrição extintiva da punibilidade de crime falimentar opera-se em dois anos.
Parágrafo único. O prazo prescricional começa a correr da data em que transitar em julgado a sentença que encerrar a falência ou que julgar cumprida a concordata.
Atualmente a regulamentação da prescrição assim dispõe o art. 182 da Lei 11.101/05:
Art. 182. A prescrição dos crimes previstos nesta Lei reger-se-á pelas disposições do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, começando a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial.
Parágrafo único. A decretação da falência do devedor interrompe a prescrição cuja contagem tenha iniciado com a concessão da recuperação judicial ou com a homologação do plano de recuperação extrajudicial.
Diante da nova legislação se tornou inaplicável o verbete de súmula 147 do STF de 1963:
“A prescrição de crime falimentar começa a correr da data em que deveria estar encerrada a falência ou do trânsito em julgado da sentença que a encerrar ou que julgar cumprida a concordata.”
Percebe-se de plano a distinção dos prazos prescricionais da pena em abstrato para os crimes, sendo da antiga lei flagrantemente mais benéfica do que a mais nova, no entanto, quando nos deparamos quanto ao do início da contagem do lapso prescricional, nos deparamos com a lei nova muito mais benéfica do que a antiga.
Antes de comentar os aspectos materiais das normas é importante salientar o grande avanço que a lei nova trouxe em relação à antiga, quando extinguiu de uma vez por todas o ranço inquisitorial do juizado de instrução e delimitou muito bem o ideal do sistema acusatório em pleno século XXI.
Como assevera Rui Cunha Martins (2012, p. 80) em seu artigo “O Mapeamento Processual da Verdade”, que:
“o sistema processual de inspiração democrático-constitucional só pode conceber um e um só ‹‹princípio unificador››: a democraticidade; tal como só pode conceder um e um só modelo sistémico: o modelo democrático. Dizer ‹‹democrático›› é dizer contrário de ‹‹inquisitivo››, é dizer contrário de ‹‹misto›› e é dizer mais do que ‹‹acusatório››.”
Isto significa dizer que o sistema acusatório não é sinônimo de Ministério Público investigador e acusador, o que o afasta até mesmo do alcance, já interpretado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, do conceito de autoridade imparcial para efeitos do art. 7.5 do Pacto de San Jose de Costa Rica (Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22.11.2005, sentencia párr. 191, “g”).
Por esta razão, e no mesmo ano de 2005 a Lei 11.101/05 dispôs:
Art. 187. Intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, verificando a ocorrência de qualquer crime previsto nesta Lei, promoverá imediatamente a competente ação penal ou, se entender necessário, requisitará a abertura de inquérito policial.
Verifica-se a forma clara com que o legislador acompanhou a ideia preconizada pelo art. 129, I, III e VIII da CR, denotando o verniz acusatório, separando a função do órgão que acusa do órgão que investiga, definindo, com isto, o ideal da imparcialidade que se quer atribuir às investigações criminais por órgão que não possui pretensão acusatória ou defensiva, extirpando do ordenamento o ideal da acumulação de funções. O legislador aqui deu um banho de democracia na lei de RJF.
Esta foi uma das razões que este caso foi parar nas mãos do Delegado de Polícia da Polícia Judiciária do Estado.
Ao me deparar com o caso concreto não pude deixar de levar em consideração um outro óbice para a análise do mesmo, qual seja um aspecto penal que o legislador, por coerência, considerou para a apuração dos crimes falimentares, á reconhecido pela doutrina no âmbito da lei anterior, como a condição objetiva de punibilidade prevista no art. 180 da Lei 11.101/05.
Em outras palavras, a condição objetiva de punibilidade, não obstante ser considerado um aspecto extrínseco ao conceito de crime, acaba por denotar que o crime falimentar, conquanto fato típico, ilícito e culpável ocorreu, porém, considerando sua natureza e caráter falimentar, mister a ocorrência de um elemento externo ao crime, qual seja a decretação da falência.
Por esta razão que o prazo e a contagem inicial da prescrição devem ser diferentes com relação aos crimes comuns, tendo em vista que as peculiaridades dos crimes falimentares, se não considerados pelo legislador, poderiam torná-lo, na prática, impunível, diante do tempo entre a sua ocorrência e a efetiva falência, ou a incoerência de uma punição por um crime que pressuponha o fato “falência”, sem que este efetivamente venha a ocorrer.
No caso concreto estava diante de uma decretação de falência publicada em 31/08/05 e o encerramento do processo falimentar em 30/04/2008.
Os documentos constante dos autos davam conta de que os sócios teriam indicado endereços no contrato social que não correspondiam à realidade, não tendo sido possível o administrador judicial realizar a arrecadação de bens para liquidação e pagamento dos credores, denotando que teriam agido com fraude, impossibilitando de encontrar os credores para indicarem onde os cinco veículos da sociedade poderiam ser encontrados, restando também que se aproveitaram do patrimônio em proveito próprio, em prejuízo aos credores.
Nos socorremos das lições de Guilherme de Souza Nucci (2014, 377), ao explicar sobre conflito intertemporal entre os dois diplomas como aludido alhures, defende que
“o magistrado opte, sempre, pela lei que considera mais favorável concretamente ao réu. Não deve fazer a análise em abstrato, pois o erro pode acontecer. A verificação precisa dar-se caso a caso.”
Trata-se da hipótese necessária nos autos, pois com o advento da nova legislação falimentar, ocorreram hipóteses de novatio legis in pejus, uma vez que as penas privativas de liberdade foram sensivelmente exacerbadas. É o que ocorre no caso concreto, do crime do art. 187 da lei anterior, punido com reclusão de 1 a 4 anos, que foi substituído pelo art. 168 da nova lei, que prevê pena privativa de liberdade de reclusão de 3 a 6 anos e multa, além de várias causas de aumento de pena de 1/6 a 1/3 previstas no § 1ª I a V.
Ocorre que este crime somente é punido após a condição objetiva de punibilidade, atualmente prevista no art. 180, com a sentença de falência, ocorrido em 2005.
Como é cediço a prescrição, à luz do que dispõe o art. 111, I do CP conta-se da data da consumação do crime, no entanto, a lei de falências dispõe de forma especial com relação ao Código Penal, como dito acima.
Pela lei anterior a prescrição começaria a ser contada da data do encerramento do processo falimentar, ou seja, da segunda fase da falência, que se dá através de uma sentença, conforme art. 132 do DL 7.661/45 e 156 da Lei 11.101/05, que no caso concreto teria ocorrido em 09 de setembro de 2012, razão pela qual a prescrição teria se operado em 30 de abril de 2008, conforme art. 199 do DL 7.661/45.
No entanto, ao considerarmos o art. 182 da Lei nova, a prescrição começa a ser contada da data da decretação da falência, consequentemente de 31/08/2005, e considerando este marco inicial no resta pensarmos nas penas dos delitos, que pela lei antiga previa pena de reclusão 1 a 4 anos e pela lei nova a pena é de reclusão de 3 a 6 anos. Pela primeira pena a prescrição da pretensão punitiva em abstrato se perfaz em 8 anos, conforme art. 109, IV, do CP, pela segunda pena, a prescrição operar-se-ia em 12 anos, conforme art. 109, III do CP.
A toda evidência que neste emaranhado de alterações legislativas prevalece o art. 5º, XL, que prevê a retroatividade da lei penal mais benéfica, e em outras palavras, preconiza a ideia de que no conflito de normas penais aquela que mais beneficia o investigado irá prevalecer, razão pela qual a prescrição do caso concreto é de dois anos e não a de oito ou doze anos, sentido que nos posicionamos no relatório do inquérito policial do caso concreto.
REFERÊNCIAS
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. 2, 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
PRADO, Geraldo, MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho de. Decisão Judicial. A Cultura Jurídica Brasileira na Transição para a Democracia. Madrid, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo: Marcial Pons, 2012.