COMORIÊNCIA NO SEGURO
Voltaire Marenzi.
No sítio de Notícias do Superior Tribunal de Justiça datado de 25/09/2024, se colhe uma decisão proferida pela sua Terceira Turma que contém a seguinte chamada:
“Morte simultânea de segurado e herdeira não afasta direito dos filhos dela à divisão do seguro.”[1]
Antes de se adentrar no corpo do voto da Relatora ministra Fátima Nancy Andrighi[2], vou tecer algumas considerações pertinentes ao contrato de seguro no que tange à indicação de beneficiário no contrato de seguro.
“Na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem de vocação hereditária”.[3]
A par de não existir artigo correspondente no CC/1916, disse na ocasião da edição do nosso atual Código Civil:
“A nova lei brasileira alberga no artigo 793 do Código Civil, uma disposição securitária prevista em uma lei antiga, isto é, do ano de 1943”.[4]
Já em relação ao aspecto de não se considerar o seguro de vida como uma herança, [5]também abordado no voto da eminente relatora, escrevi:
“Também, a meu sentir, em boa técnica legislativa e, momento adequado, disse que o contrato de seguro não é herança para todos os efeitos de direito, pois cuida-se de iure proprio.
O contrato de seguro nunca fez parte do direito sucessório, tanto que a indenização no caso de seguro de vida é paga à família do segurado, independentemente de ser arrolada nos autos do inventário.
Assim, acontece também com os planos de previdência privada (hoje complementar), em que os familiares dos “participantes” recebem o pecúlio – soma paga de uma só vez – atualmente cognominado de benefício”.[6]
Vamos adiante seguindo com a transcrição da ementa da relatora no processo suso referenciado:
“CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. OMISSÃO CONTRATUAL SOBRE OS BENEFICIÁRIOS. UTILIZAÇÃO DO CRITÉRIO LEGAL DA ORDEM DE VOCAÇÃO SUCESSÓRIA. MORTES SIMULTÂNEAS DE FORMA PRESUMIDA ENTRE SEGURADO E DA IRMÃ. COMORIÊNCIA. DIREITO DE REPRESENTAÇÃO DOS FILHOS DA IRMÃ COMORIENTE COM O SEGURADO. REPARTIÇÃO DA INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA.
Ação de cobrança de indenização securitária, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 15/5/2023 e concluso ao gabinete em 25/10/2023.
O propósito recursal é decidir se a comoriência entre o segurado e a irmã afasta o direito de representação dos filhos desta, para fins de utilização da ordem de vocação sucessória como critério para a definição dos beneficiários de seguro de vida diante da omissão do contrato.
Na falta de indicação do beneficiário no contrato de seguro de vida e quando o segurado não deixar cônjuge, descendentes ou ascendentes, a indenização securitária será paga aos colaterais, diante da utilização do critério legal da ordem da vocação hereditária (art. 792, caput, do CC). Inexistindo herdeiros, serão beneficiários os que provarem que a morte do segurado os privou dos meios necessários à subsistência (art. 792, parágrafo único, do CC).
Na definição da ordem de vocação sucessória, aplica-se o direito de representação (arts. 1.851 ao 1.854 do CC). Trata-se de instituto que protege os filhos que sofreram com a morte precoce dos pais e que não é afastado pela comoriência dos genitores com o autor da herança. Conferir tratamento jurídico diferente a pessoas que se encontram em situações fáticas semelhantes representaria afronta ao princípio da isonomia consagrado no art. 5º da CF.
A questão ganha ainda mais relevo quando os que pleiteiam o direito de representação são crianças e adolescentes – inseridos na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, conforme reconhecido pelo art. 6º do ECA, e cuja proteção deve ser garantida com absoluta prioridade pela família, pela sociedade e pelo Estado (art. 227 da CF).
Hipótese em que o acórdão recorrido, ao interpretar as normas sobre a ordem de vocação sucessória para a identificação dos beneficiários da indenização securitária, afastou o direito de representação dos recorrentes, menores de idade e filhos da irmã comoriente com o segurado, de modo a conferir a integralidade da indenização à irmã viva do segurado, pessoa maior de idade e, assim, presumivelmente com maior condição de garantir sua subsistência.
Recurso especial conhecido e provido”.
O acerto da decisão da Turma é inquestionável diante da hermenêutica jurídica.
A uma, porque a comoriência é tratada no artigo 8º do atual Código Civil, com a mesma redação do artigo 11 do Código Civil de 16. A principal consequência jurídica da comoriência é que, como não se pode determinar a ordem das mortes, se presume que todos morreram ao mesmo tempo. Isso é relevante principalmente para questões sucessórias, pois, se os comorientes fossem herdeiros um do outro, nenhum deles herdará os bens do outro, e a sucessão será dividida entre os herdeiros respectivos de cada um, como se todos tivessem falecido simultaneamente.
Como se denota do julgamento deste recurso especial, isto ocorreu na situação do julgamento do caso concreto com casuística distinta, aplicando-se o direito de representação destinado a proteger o interesse dos filhos que perderam seus pais, tratando-se de crianças e adolescentes – inseridos na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, conforme reconhecido pelo artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e cuja proteção deve ser garantida com absoluta prioridade pela família, pela sociedade e pelo Estado (artigo 227 da Constituição)”, segundo asseverou a relatora em seu voto.
Ademais, consoante as normas legais plasmadas no seguro de pessoas, mormente no que concerne aos artigos 792 a 794 do CC[7] o caso sub judice é mais eloquente, pois o titular do seguro de vida – que não tinha cônjuge, pais vivos ou filhos – faleceu em um acidente de trânsito junto com a sua irmã, que tinha dois filhos. Como o contrato de seguro não indicava beneficiários, a seguradora pagou a indenização integralmente para a única irmã viva do segurado, sua herdeira colateral, não procedendo de conformidade com os ditames legais.
Como consequência, os filhos menores da irmã falecida ingressaram com ação e alegaram que a indenização deveria ser dividida entre eles e a tia. O pedido foi acolhido em primeiro grau, mas a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), segundo o qual não haveria transmissão de direitos entre parentes que morreram na mesma ocasião.
A ministra Fátima Nancy Andrighi entendendo em conformidade com a boa doutrina, ressaltou em seu douto voto, que embora o capital garantido pelo seguro de vida não seja considerado herança, um dos principais critérios utilizados pela legislação brasileira, em caso de omissão contratual a respeito dos beneficiários, é a ordem de vocação hereditária.
E acentuou ainda que embora não seja a hipótese mais comum, é possível que o direito de representação ocorra no caso das mortes simultâneas do representado e do autor da herança. A ministra enfatizou que a legislação brasileira não estabelece que a situação de comoriência afastaria o direito de representação.
No caso dos autos, a ministra acrescentou que, se a mãe tivesse morrido segundos antes do segurado, não haveria dúvidas quanto ao direito de representação dos filhos, ao passo que, caso a morte do segurado ocorresse antes, a mãe dos menores receberia – em concorrência com a outra irmã – parte do valor da indenização, a qual seria repassada a título de herança para os recorrentes. E, em arremate, ao seu voto, sublinhou:
“Ao se presumir a morte simultânea (comoriência), não se pode conferir uma interpretação dos artigos 1.851 ao 1.854 do Código Civil apta a gerar a injusta situação em que os recorrentes não teriam direito a nada e que caberia à irmã viva o valor integral do seguro“, concluindo a relatora ao restaurar o acerto da decisão monocrática.
Vale sublinhar, ao azo, que decisões deste teor devem ser prestigiadas, quer pelo restabelecimento de uma decisão monocrática escorreita, quer pela conformidade da interpretação teleológica e finalista que a lei imprime no julgamento e interpretação de julgamentos importantes. Nesta toada se evita a aplicação puramente literal da lei em processos que gerariam injustiças, permitindo uma aplicação mais equitativa e conforme o espírito do direito.
É o que penso.
[1] www.stj.jus.br
[2] REsp 20985584, publicado no DJe de 12/09/2024.
[3] Artigo 792 do atual Código Civil.
[4] Voltaire Marensi. O Contrato de seguro à Luz do Novo Código Civil, 3ª edição revista e ampliada. Thomson/Iob, setembro de 2005, página 70.
[5] Artigo 794 do Código Civil de 2002.
[6] Obra citada, páginas 71/72.
[7] Falta de indicação de beneficiário, instituição de companheiro como beneficiário e de que o seguro não é herança.