A COMODITIZAÇÃO NAS RELAÇÕES FAMILIARES: O CASO DO ABANDONO AFETIVO
Voltaire de Freitas Michel
SUMÁRIO: Introdução. I – A Comoditização como Conceito; A) A Comoditização na Origem – Comoditização Completa e Incompleta; B) A Transposição da Lógica da Comoditização para a Responsabilidade Civil. II – A Comoditização nas Relações Familiares; A) O Abandono Afetivo como Expressão de Comoditização das Relações Familiares; B) O “Efeito Dominó” ou as Consequências da Comoditização das Relações Familiares. Conclusões e Prognósticos. Referências Bibliográficas.
Introdução
“Comoditização“, no sentido empregado neste artigo, descreve um processo pelo qual bens, valores ou relações jurídicas, até então compreendidos como infungíveis, incomensuráveis ou indisponíveis, passam a ser tratados pela ordem jurídica como fungíveis, comensuráveis ou disponíveis. Essa conversão pode implicar, certamente, a sua apreciação em valor, em pecúnia. O sentido adotado é inspirado na terminologia empregada por Margaret Radin na obra em que avalia com mais profundidade os impactos da comoditização em diversos ramos do Direito [1].
Na primeira parte do trabalho, o conceito de comoditização será apresentado como concebido na sua origem, sobretudo em sua conexão com a teoria da justificativa da propriedade desenvolvida por Margaret Radin e, no mesmo bloco, será apresentada a transição da lógica da comoditização para o ramo da responsabilidade civil.
Em seguida, na segunda parte do trabalho, a indenização pelo abandono afetivo será apresentada como caso de comoditização na seara da responsabilidade civil e das relações familiares e, ao final, serão sugeridos alguns riscos inerentes à comoditização nas relações familiares, sobretudo nas alterações que a comoditização pode proporcionar na percepção geral e na sensibilidade dos destinatários da norma a respeito dos bens, valores ou relações jurídicas comoditizadas.
I – A Comoditização como Conceito
A maioria dos nossos bens materiais é disponível. Nossas relações jurídicas obrigacionais, da mesma forma, quase sempre comportam uma sucessão nos polos passivo ou ativo. No entanto, nem tudo que se tem, ou que se é, pode ser disposto. As normas jurídicas dispõem sobre os limites da disponibilidade de alguns bens materiais, de nossa saúde física e mental (v.g., normas trabalhistas), e até mesmo de nossa liberdade e nossa dignidade. Órgãos do nosso corpo, no nosso direito, por exemplo, podem ser doados, mas não vendidos. Há uma gradação, ou níveis de comoditização, determinados, sobretudo, por opções legislativas, estabelecendo limites para a comoditização. Nessa parte do trabalho, serão explorados o sentido atribuído por Margaret Radin a esse termo e a sua transposição para o ramo da responsabilidade civil e, finalmente, às relações familiares.
- A) A Comoditização na Origem – Comoditizações Completa e Incompleta
Este terreno de investigação teórica é arriscado. Compreendida a comoditização como um fenômeno histórico, consistente na atribuição de valor a bens anteriormente incomensuráveis, o teórico pode se situar em dois extremos desconfortáveis. Atribuída uma função decisiva à ordem jurídica como um todo para determinar os limites e o formato da comoditização, pode-se cair no terreno do puro decisionismo, com vagas alusões às circunstâncias históricas. Quer dizer, o que é comoditizável hoje é resultado de contingências históricas e culturais que determinaram a orientação da ordem jurídica num sentido ou outro. O outro extremo consistiria em identificar os limites da comoditização com uma certa concepção metafísica de pessoa humana, controvertida ou subjetiva, mais próximas da retórica do que da ciência jurídica propriamente dita.
A par desses dois extremos arriscados, o certo é que a contribuição de Margaret Radin é decisiva para clarear o tema dos limites da disponibilidade.
O conceito de comoditização surge como uma consequência lógica da teoria justificativa da propriedade desenvolvida pela autora, intitulada, em tradução livre, como “propriedade e personalidade”.
Margaret Radin nasceu em 1941 e continua em plena atividade. É professora de teoria da propriedade na Stanford University e sua primeira incursão na teoria da propriedade resultou na publicação do artigo Property and Personhood, em 1982, na Stanford Law Review [2]. Radin explora as relações entre o direito de propriedade e o florescimento da personalidade humana. Para ilustrar os aspectos não econômicos da propriedade, a autora alude a bens que, independentemente de seu valor patrimonial, ostentam um significado maior em razão de sua relação especial com o proprietário, tais como o anel de casamento, o apartamento em que se formou uma família. Segundo Radin, há uma relação entre os bens materiais e a importância que atribuímos a eles e o desenvolvimento de nossa personalidade. Segundo Radin, “a premissa subjacente à perspectiva da personalidade é que para atingir o autodesenvolvimento – para se ser uma pessoa – um indivíduo precisa ter algum controle sobre recursos do ambiente externo” [3].
Radin qualifica sua teoria como intuitiva. Segundo a autora, muitas pessoas possuem alguns objetos que sentem como partes delas mesmas, e “esses objetos estão intimamente relacionados com a sua personalidade porque são parte do modo como nos constituímos como entidades pessoais no mundo” [4]. A medida dessa intimidade dos objetos com a formação da nossa personalidade é a possibilidade de substituição: se é indiferente, então esse objeto não faz parte da nossa personalidade; se a substituição geraria uma perda pessoal, sofrimento psíquico, desespero, etc., o objeto teria um significado maior do que apenas o seu valor econômico. Esse objeto, insubstituível, faria parte constitutiva do próprio ser do proprietário. Como veremos adiante, quanto mais vinculado à personalidade, maior a sua inclinação à inalienabilidade e à não comoditização.
Para escapar da acusação de excessivo subjetivismo, Radin busca alguns indicadores objetivos para apontar esses objetos insubstituíveis, apelando, então, à ideia de “florescimento humano“. Radin também reconhece que aspectos culturais são determinantes na apreciação do caráter comoditizável ou não de um objeto, uma vez que “pode ser próprio da cultura ocidental pós-industrial compreender a propriedade na sua concepção capitalista e privada, como a cultura predominante compreende” [5].
Numa obra posterior, Radin aplica o seu referencial teórico para lidar com questões bastante provocativas [6]. Questiona-se a autora as razões pelas quais a ordem jurídica, por exemplo, proíbe a comercialização de bebês, de órgãos humanos, ou ainda as razões pelas quais alguém pode doar um órgão em vida (um rim, por exemplo), porém, não pode vendê-lo. As respostas que Radin propõe para os limites da comoditização são uma extensão de sua teoria inicial. A autora distingue, inicialmente, dois modelos teóricos distintos: o primeiro, da comoditização universal, em que tudo poderia ser vendido ou comprado, bens materiais ou imateriais (esse modelo seria o adotado pelos defensores da corrente Law and Economics, representada sobretudo nos estudos de Richard Posner e Gary Becker). O extremo da comoditização universal reconheceria o caráter econômico de relações pessoais, ou até mesmo do reconhecimento de valor indenizatório por fatos da vida até então relegados à esfera meramente pessoal ou moral, como os casos recentes de fixação de indenização por abandono afetivo. No outro extremo teórico, estariam os que sustentaram a não comoditização absoluta, o caráter opressor do mercado (corrente simbolizada, sobretudo, pelos autores marxistas). Entre os dois extremos teóricos – comoditização universal e não comoditização – encontram-se os que sustentam a possibilidade de uma compartimentalização, vale dizer, o adequado seria traçar uma linha entre bens comoditizáveis e não comoditizáveis, estabelecendo uma convivência harmônica entre mercado e indisponibilidades [7].
Aparentemente, a opção pela compartimentalização inspirou o legislador brasileiro no livro do direito de família [8]. Ao conceber o livro de família do novo Código, o Professor Clóvis do Couto e Silva optou por uma nova estrutura, cindindo, em títulos diversos, o direito patrimonial e o direito pessoal de família, superando, portanto, uma concepção estrutural institucional, que cuida de cada instituto individualmente, por uma concepção bissistemática [9], dividindo o direito de família conforme a nota preponderante em cada uma de suas relações, pessoais ou patrimoniais.
A tese de Radin é que a mera compartimentalização é insuficiente para apreender a complexidade do fenômeno. A decisão por compartimentalizar representaria puro decisionismo jurídico – a ordem jurídica decide o que fica em cada gaveta, com critérios a serem investigados. No caso do abandono afetivo, a sua indenização ou não dependeria apenas de uma ação do legislador ou do julgador, estendendo construtivamente o espectro do dano indenizável para o cenário de desamor. Segundo Radin, deve-se ir além da compartimentalização e sofisticar o argumento para determinar, previamente, as razões e os fundamentos para o tratamento diferenciado de alguns bens ou relações jurídicas, conforme sua vinculação mais íntima com o desenvolvimento da personalidade.
Radin sugere, então, o modelo da comoditização incompleta [10]. Nesse modelo, bens terão tratamento diferenciado conforme sua vinculação ao desenvolvimento da personalidade, podendo ser parcialmente, ou temporariamente, não comoditizáveis, conforme seu caráter constitutivo da personalidade do proprietário.
Segundo Radin, “nós compreendemos certas categorias de propriedades como sendo completamente intercambiáveis com outras da mesma espécie sem perda de valor para a pessoa (fungíveis), e certos bens como vinculados à pessoa, sendo únicos e de um valor não conversível em moeda (bens pessoais)” [11].
A distinção de Radin entre bens fungíveis e bens pessoais não corresponde à distinção entre a noção tradicional de fungibilidade e infungibilidade. Uma obra de arte de autor, por exemplo, é tecnicamente infungível, no sentido tradicional, mas pode não ter qualquer significado para a formação da personalidade do agente. As obras de arte infungíveis expostas numa galeria, por exemplo, são, para o seu proprietário, apenas instrumentos do seu comércio.
Radin sustenta que esses objetos insubstituíveis deveriam gozar de uma proteção maior da ordem jurídica, em contraposição aos bens meramente fungíveis. Muito do que Radin diz parece intuitivo, decorrente de mero bom senso, e não apresentaria uma grande revolução na nossa percepção das coisas.
- B) A Transposição da Lógica da Comoditização para a Responsabilidade Civil
Em Contested Commodities, Radin vai mais além e transporta a lógica da comoditização para outros ramos do direito, em especial para a responsabilidade civil.
Segundo Radin, podemos distinguir, no discurso jurídico, duas concepções distintas de responsabilidade civil ou de compensação por danos, se levarmos em consideração a possibilidade de comoditização.
Preliminarmente, há concepções comoditizadas de responsabilidade civil, que interpretam a compensação por um dano como uma mera troca ou compra e venda. Em paralelo a essa concepção mais bruta, é possível também interpretar a compensação ou indenização a partir de um cálculo de custo/benefício, de modo que o dano é apenas mais uma variável no cálculo econômico. Nesse cenário de comoditização da responsabilidade civil, não seria um disparate total a fixação de um preço, antecipadamente, que autorizasse um agente a causar dolosamente uma lesão corporal em alguém, por exemplo.
No outro extremo, identificam-se concepções não comoditizadas de compensação, que não concebem a responsabilidade civil apenas como uma troca, porém, adicionam valores morais na ação. Além da mera reparação civil, a compensação também significaria uma oportunidade de demonstrar pesar, arrependimento, de modo a restaurar o balanço moral entre as partes.
Para uma concepção estritamente comoditizada da responsabilidade civil, a compensação retifica o dano, ao passo que, para a concepção não comoditizada, o valor e o dano não estão pareados, e a retificação poderá exigir outras ações do autor da lesão para além da mera restituição ao estado anterior.
Radin reconhece que o direito pode ter uma função deliberada ou não de culture shaping, de alteração da percepção das pessoas, de sua própria sensibilidade. As decisões judiciais ou opções legislativas podem determinar uma alteração na percepção ou na sensibilidade dos destinatários da norma.
No caso da responsabilidade civil, uma proposta mais pragmática e comoditizada poderia conduzir-nos à tentativa de um tabelamento dos danos, a partir, por exemplo, de precedentes judiciais. Quanto vale uma perna decepada, um braço tornado inútil, a perda da visão? Milhares de precedentes judiciais podem estabelecer um padrão médio, a ser incorporado na própria legislação.
A pergunta de Radin é se esse tratamento estritamente comoditizado da reparação civil não poderia gerar como consequência inesperada uma alteração na nossa sensibilidade ou percepção dos valores próprios da personalidade humana, trazendo para a lógica de mercado bens e valores até então indisponíveis.
Segundo Radin, a incomensurabilidade é um artefato da nossa forma de vida e discurso cultural; e o direito influencia neste discurso compartilhado (o direito não apenas reflete como influencia nossa vida cultural). Por isso, o direito, por suas várias fontes, legislativas ou judiciais, pode ter um papel determinante na formação dos valores dos destinatários da norma, dessensibilizando-os, levando-os a crer na possibilidade de comoditização geral. Entre o reconhecimento legal ou judicial da comoditização e a sua aceitação pelos destinatários, há um longo caminho. Esse caminho terá uma volta?
O caso do abandono afetivo é central nesse debate.
II – A Comoditização nas Relações Familiares
Traçados os pressupostos, identificados o sentido de comoditização e a sua transposição para a responsabilidade civil, é chegado o momento de enfrentar o caso do abandono afetivo.
- A) O Abandono Afetivo como Expressão de Comoditização das Relações Familiares
Abandono afetivo é o desamor, o descaso, perpetrado por um pai ou mãe contra seus filhos, na infância e na adolescência. Não se compara ou se limita ao abandono material: a complexidade da vida pode nos trazer casos em que a segurança material do filho foi totalmente provida pelo pai ou mãe, ainda que sem qualquer tipo de aproximação afetiva ou amorosa. A pergunta é: a indenização pelo abandono afetivo sinaliza para a comoditização de relações familiares? E quais as consequências da comoditização de relações familiares?
O primeiro precedente em que o Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão da indenizabilidade do abandono afetivo foi o Recurso Especial 757.411/MG, julgado pela Quarta Turma, em novembro de 2005. Por maioria, no caso concreto, o STJ reconheceu não ser indenizável o abandono afetivo, com voto vencido do Ministro Barros Monteiro, que reconhecia a indenizabilidade.
Do voto do Relator, Ministro Fernando Gonçalves, merece transcrição o seguinte trecho:
“Por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido não atenderia, ainda, ao objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido.” (STJ, REsp 757.411, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4ª T., nov. 2005)
O Ministro Aldir Passarinho, no mesmo sentido, acentuou que os fatos imputados ao réu – desamor, desinteresse – poderiam ensejar, no calor dos fatos, a destituição do poder familiar, e não a indenização por danos morais.
No mesmo sentido, o voto do Ministro César Asfor Rocha reconhecia um limite à convergência entre o direito de família e a responsabilidade civil:
“Penso que o direito de família tem princípios próprios que não podem receber influências de outros princípios que são atinentes exclusivamente – ou, no mínimo, mais fortemente – a outras ramificações do direito. Esses princípios do direito de família não permitem que as relações familiares, sobretudo aquelas atinentes a pai e filho, mesmo aquelas referentes a patrimônio, a bens e a responsabilidades materiais, a ressarcimento, a tudo quanto disser respeito à pecúnia, sejam disciplinadas pelos princípios próprios do direito das obrigações. Destarte, tudo quanto disser respeito às relações patrimoniais e aos efeitos patrimoniais das relações existentes entre parentes e entre os cônjuges só podem ser analisadas e apreciadas à luz do que está posto no próprio direito de família.” (STJ, REsp 757.411, Rel. Min. César Asfor Rocha, 4ª T., nov. 2005)
Por seu turno, o voto vencido, que admitia a indenizabilidade, da lavra do Ministro Barros Monteiro, acentuava:
“Penso também que a destituição do poder familiar, que é uma sanção do direito de família, não interfere na indenização por dano moral, ou seja, a indenização é devida além dessa outra sanção prevista não só no Estatuto da Criança e do Adolescente, como também no Código Civil anterior e no atual.” (STJ, REsp 757.411, Rel. Min. Barros Monteiro, 4ª T., nov. 2005)
Precedente mais recente a respeito do abandono afetivo foi julgado em abril de 2012, pela mesma 4ª Turma (REsp 1.159.242). Em síntese, cuidava-se de ação de indenização por danos materiais e compensação por danos morais, ajuizada pela filha contra seu pai por ter sofrido abandono material e afetivo durante sua infância e juventude. No primeiro grau de jurisdição, a ação foi julgada improcedente, sob fundamento de que o distanciamento entre pai e filha deveu-se, primordialmente, ao comportamento agressivo da mãe em relação ao pai, nas situações em que houve contato entre as partes, após a ruptura do relacionamento ocorrido entre os genitores da recorrida. O Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento à apelação interposta pela filha, reconhecendo o seu abandono afetivo, fixando a compensação por danos morais em R$ 415.000,00. No recurso especial, o pai sustentou que não abandonou a filha, conforme foi afirmado pelo Tribunal de origem, e, ainda que assim tivesse procedido, esse fato não se reveste de ilicitude, sendo a única punição legal prevista para o descumprimento das obrigações relativas ao poder familiar – notadamente o abandono – a perda do respectivo poder familiar -, conforme o art. 1.638 do Código Civil de 2002. Sucessivamente, postulava o pai a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais.
No Superior Tribunal de Justiça, o voto condutor foi proferido pela Ministra Nancy Andrighi. Do voto da Ministra, merecem transcrição os seguintes trechos:
“Aqui não se fala ou se discute o amar, e sim a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo metajurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.
O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem -; entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador pelas partes.
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.” (STJ, REsp 1.159.242, Relª Minª Nancy Andrighi, 4ª T., abr. 2012)
O voto da Ministra Nancy Andrighi foi acompanhado pelos Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Sidnei Beneti.
A divergência coube ao Ministro Massami Uyeda, no sentido da não indenizabilidade:
“Sucede que, com todo o respeito, Sra. Ministra Nancy Andrighi, a defesa dele se centra na alegação de que, se os progenitores não dão essa assistência material, o que pode surgir daí é uma perda do pátrio poder; isso é uma consequência. V. Exa. diz: não só a perda do pátrio poder, mas há o complexo dos direitos inerentes à honra, à estima, e que isso caracterizaria o dano moral.
Então, esse dano moral também poderia, independentemente da perda do pátrio poder, incidir. (…)
E, se for assim, não haverá mais tranquilidade. Vamos causar aquilo que o Sr. Ministro Sidnei Beneti sempre fala: estabelecer uma cizânia dentro da família, porque essa pessoa, certamente, se o pai é abastado, irá concorrer na herança no dia em que ele faltar, ou esse pai negligente, vamos dizer. Agora, o que é a negligência no sentido do dever, do pátrio dever? Não sei. Nós mesmos, como pais, avós, temos inúmeras falhas.” (STJ, REsp 1.159.242, Rel. Min. Massami Uyeda, 4ª T., abr. 2012)
Nesse plano estritamente dogmático, o dilema que se apresentava é a delimitação do dano juridicamente indenizável. Contrastam-se, nesse momento, o conceito leigo, ou naturalista de dano, e o conceito jurídico, assim entendido o dano relevante para o direito e ensejador de indenização. O conjunto do que pode ser entendido como ação danosa, sob o ponto de vista da psicologia, da biologia, da sociologia, é maior que o conjunto dos danos selecionados pela ordem jurídica como relevantes e merecedores de proteção e geradores de indenização em caso de ocorrência. Nesse sentido, o conceito de dano jurídico não equivale a um dano em si, mas se cuida de um conceito construído, na lapidar lição de Judith Martins-Costa:
“Por esta razão, e aliás, como tudo no direito, o conceito de dano não é ‘dado’, mas, sim, construído e, mais ainda, é, para usar uma expressão cara aos existencialistas, um ‘conceito situado’. De uma perspectiva claramente nominalista – vale dizer, dano seria tão só o prejuízo sofrido por um bem determinado, calculado segundo a ‘teoria da diferença’ -, se alcança uma noção normativa, ou jurídica, pela qual o dano é a lesão a interesse jurídico. E o que é ‘interesse jurídico’ é sempre aquilo que determinada comunidade considera digno de tutela jurídica, razão pela qual, se modificado o que, na pessoa e em sua personalidade, se considera digno de interesse, haverá imediato reflexo no conceito de dano.” [12]
A lição de Judith Martins-Costa é apropriada para situar a discussão sobre abandono afetivo, no plano dogmático. O tema em questão comporta, então, pelo menos dois tipos de análise. A primeira, dogmática, em menor escala, consistiria apenas em avaliar se o dano alegado existe, se houve ação do réu e nexo de causalidade. Em suma, definir se o dano é indenizável, se os fatos alegados ensejam indenização. Outra abordagem, zetética, comporta outras indagações. O reconhecimento da indenizabilidade pode conduzir a uma comoditização das relações familiares e, em caso positivo, a atribuição de valor a essas circunstâncias poderia conduzir a uma alteração na sensibilidade ou nos valores dos destinatários da norma?
- B) O “Efeito Dominó” ou as Consequências da Comoditização das Relações Familiares
A comoditização, a atribuição de valor econômico a fatos da vida até então interpretados como imorais, porém, não ilícitos, levaria ao risco de um “efeito dominó“, com a prevalência de uma visão comoditizada sobre um bem da vida, até então compreendido como incomoditizável ou comoditizável apenas parcialmente? Ou uma concepção não comoditizada sobreviveria à prática indenizatória?
O risco do “efeito dominó” foi antecipado por Radin na obra Contested Commodities no caso da disposição dos órgãos do corpo humano. Hoje, no direito brasileiro e outras ordens jurídicas, há restrições à disponibilidade dos próprios órgãos em vida. Uma série de limitações legais e regulamentares impede que órgãos ingressem no comércio e sejam fungibilizados, tratados como meras mercadorias. Como está na base de sua teoria, essa comoditização parcial (porque sobrevivem casos em que a comoditização é possível) atende à noção de florescimento da personalidade. A possibilidade de vendê-los sacrificaria nossa condição humana de modo irreversível, e a possibilidade de doá-los, como expressão de amor ao próximo e generosidade, é o reflexo de sua comoditização incompleta. Doa-se por amor ao próximo, e não apenas porque a venda é proibida. Segundo Radin, se adotássemos uma comoditização completa nesta seara, permitindo a venda indiscriminada de órgãos, a qualquer tempo, para qualquer pessoa, o gesto generoso e altruísta da doação desinteressada aos poucos seria suplantado pela lógica do mercado. Por que doar se eu posso vender legalmente? Por que aceitar uma doação generosa, se o órgão doado tem valor comercial para o doador, podendo ser para ele de extrema valia? Em síntese, o ingresso no mercado dos órgãos ofuscaria os atos generosos e altruístas que adquirem sentido, hoje, da comoditização incompleta destes bens.
Nas palavras da autora:
“Se nós concebemos a compensação primariamente de um modo não comoditizado – se temos claro que não é um quid pro quod, mas uma ação simbólica que reforça nosso comprometimento com o que é certo e o que é errado -, então a prática de indenizar não significa que nós vemos os danos causados aos outros como a compra de ima commodities. Assim quem dá valor a uma concepção não comoditizada dos atributos humanos, qualidade de vida, e integridade corporal, essa concepção está sob o risco de ceder espaço, cedo ou tarde, para a concepção comoditizada, concepção sob a qual o constante pagamento de indenizações ‘por’ danos no contexto de uma cultura que imediatamente interpreta interações análogas como trocas de mercado, talvez auxiliada pela retórica da análise econômica. Como avaliamos este medo? Quão robusta é a concepção não comoditizada?” [13]
No campo da especulação, a comoditização, levada adiante no campo das relações familiares, poderia conduzir-nos para situações em que os próprios termos do problema dificultariam a nossa percepção como seres humanos. Se há um risco indenizatório, nada impediria que fosse segurado. Quando? Ao nascer o bebê? Se há risco indenizatório na relação entre pais e filhos, não há diferença específica que afaste esse risco da relação entre cônjuges, o risco do desamor superveniente. Esse risco poderá ser segurado antenupcialmente? Ou o desamor prévio e deliberado poderia dar ensejo a um negócio jurídico bilateral antecipado, contemplando uma cláusula penal para o risco de o amor não surgir entre pais e filhos, ou mesmo entre cônjuges? As perguntas parecem absurdas, mas fazem sentido numa concepção comoditizada das relações familiares.
Poderá uma comoditização favorecida pela prática jurisprudencial determinar uma mudança na percepção geral e na sensibilidade dos destinatários da norma, promovendo um culture shaping a que alude Margaret Radin?
Conclusões e Prognósticos
O objetivo de um artigo que transita num terreno arriscado é, antes de fornecer respostas concretas, formular novas perguntas. Com efeito, a jurisprudência ainda não sedimentada a respeito da indenizabilidade do abandono afetivo poderá determinar uma alteração na percepção e na sensibilidade dos destinatários da norma com relação a esse fato da vida?
Como verificar, objetivamente, se a comoditização judicial ou legal de um aspecto da vida humana alterou a sensibilidade dos destinatários? Uma série de índices pode ser proposta: número de demandas, avaliação quantitativa e qualitativa de julgados, pesquisas de opinião contemplando a indenizabilidade, etc. Quais os limites do direito no que toca à sua influência nos valores e engenharia social? [14]. Nessa parte final, este trabalho apenas sugere pontos de partida para avaliações de campo, certamente mais interessantes e dramáticas que a mera colocação do problema da comoditização das relações familiares.
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[4] RADIN, 1982.
[5] RADIN, Margaret. Contested commodities. Cambridge: Harvard University Press, 1996.
[6] RADIN, 1996.
[7] A compartimentalização é um argumento sedutor, adotado na teoria da justiça de Michael Walzer, a teoria das esferas, segundo a qual há justiça quando critérios de alocação de bens respeitam os limites de suas esferas. Segundo Walzer, por exemplo, o mérito acadêmico é o critério de justiça adequado para a atribuição de notas, e a beleza física, o critério de justiça para os concursos de beleza. Segundo Walzer (1983), a compartimentalização é uma garantia da justiça, que se quebra quando há permeabilidade entre esferas do convívio humano e critérios deslocados de justiça. Haveria injustiça se as notas acadêmicas fossem distribuídas de acordo com a beleza dos estudantes, ou os concursos de beleza vencidos pelas pessoas com mais merecimento acadêmico.
[8] MICHEL, Voltaire. A estrutura e as fontes do direito de família no novo Código Civil. In: BARBEDO, Cláudia (Org.). Debates contemporâneos sobre direito de família. Porto Alegre: UniRitter, 2012. p. 197 e ss.
[9] COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. Temas atuais do direito de família no anteprojeto do Código Civil. Conferência pronunciada no Instituto dos Advogados de São Paulo, em 6 de março de 1973, arquivada na Biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS, 347.6 S586t.
[10] RADIN, Margaret. Contested commodities. Cambridge: Harvard University Press, 1996.
[11] RADIN, 1996.
[12] MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza da sua reparação. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: RT, 2002.
[13] RADIN, Margaret. Contested commodities. Cambridge: Harvard University Press, 1996. p. 204.
[14] ALLOT, Anthony. The limits of law. London: Butterworths, 1980.