COMO FUNCIONA O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS
Lilian Theodoro Fernandes
O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), regulado nos artigos 976 a 987 do CPC, tem como objetivo proporcionar celeridade, segurança jurídica e isonomia ao permitir o julgamento conjunto de demandas que versem sobre a mesma questão de direito.
O Código de Processo Civil de 2015 inspirou-se no direito alemão para criar o IRDR, norteado pelos princípios constitucionais supracitados (isonomia, segurança jurídica e celeridade), conforme se extrai da Exposição de Motivos do Novo CPC: “Proporcionar legislativamente melhores condições para operacionalizar formas de uniformização do entendimento dos Tribunais brasileiros acerca de teses jurídicas é concretizar, na vida da sociedade brasileira, o princípio constitucional da isonomia.”
Em outro trecho, o legislador destaca a importância do princípio da razoável duração do processo e da simplificação do sistema recursal: “afinal a ausência de celeridade, sob certo ângulo, é ausência de justiça“.
Assim, demonstrou a preocupação de criar mecanismos processuais que, de modo efetivo, possam dar vazão ao volume de processos.
Portanto, no presente artigo explicarei as principais características do IRDR, seu procedimento e aplicação junto aos Tribunais.
O que é IRDR?
O IRDR não configura uma ação autônoma ou recurso, mas sim um incidente processual direcionado aos Tribunais de Segunda Instância (Estaduais ou Regionais).
Assim, tem como objetivo suspender o andamento de ações que versem sobre uma questão de direito específica em casos em que fique configurada a repetição de processos e o risco de ofensa aos princípios da isonomia e da segurança jurídica.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, até outubro de 2019 foram apresentados 367 IRDR. 32 na Justiça Federal, 57 na Justiça do Trabalho, 277 na Justiça Estadual e 1 em Tribunais Superiores.
Logo, o resultado foi o sobrestamento de 301.347 processos repetitivos, que consiste em número expressivo, considerando-se o pouco tempo de vigência do instituto.
IRDR no Novo CPC
O IRDR encontra-se regulado nos art. 976 a 987 do CPC. Os requisitos para o seu cabimento encontram-se dispostos no art. 976, que requer simultaneamente a existência de:
– efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito;
– risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Portanto, é incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.
Muito embora não haja uma estipulação de número mínimo de processos repetitivos, não se presta o IRDR a uma função preventiva. Assim como à análise de questões fáticas, sendo cabível apenas em casos que a repetição da questão de direito esteja comprovada.
Requisitos para instauração do IRDR
Sobre os requisitos para a instauração do incidente, assim se pronuncia Teresa Arruda Alvim:
“Então, questões ditas de direito, quaestio juris, são predominantemente de direito. São aquelas em que não há discussão sobre os fatos porque, por exemplo, são comprováveis documentalmente. Ou, ainda, são aquelas situações em que os fatos já estão comprovados por várias espécies de provas e, não havendo dúvidas sobre o que ocorreu, e sobre como ocorreu, discute-se apenas sua qualificação jurídica.
A nova lei exige que haja efetiva repetição de processos e não mera potencialidade de que os processos se multipliquem.
Parece, todavia, que os objetivos do instituto ficariam inteiramente frustrados, se se exigisse, para a instauração do incidente, que já se tivesse instalado o caos na jurisprudência de primeiro grau, com milhares de sentenças resolvendo de modos diferentes a mesma questão de direito.
Não.
Se a lei exige que já haja processos “repetidos” em curso, é razoável que se entenda que bastem duas ou três dezenas, antevendo-se a inexorabilidade de a multiplicação destas ações passarem a ser muito maior.”
Outro ponto importante é que não há qualquer limitação de matérias passíveis de gerar a instauração do IRDR. Por isso, não é admitida qualquer interpretação que, por tal fundamento, restrinja o seu cabimento (vide Enunciado 88 do Fórum Permanente de Processualistas Civis).
Legitimidade
O pedido de instauração do IRDR é endereçado ao presidente do tribunal local competente e têm legitimidade para tanto, nos termos do art. 977 do CPC:
– o juiz ou o relator da causa;
– as partes;
– a Defensoria Pública;
– o Ministério Público.
O ofício, nos casos em que o incidente é instaurado pelo juiz ou relator, ou a petição, nos demais casos, devem ser instruídos com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos pressupostos para a instauração do incidente.
Assim, o juízo de admissibilidade do IRDR é realizado pelo órgão colegiado competente para julgá-lo no Tribunal (aquele indicado no Regimento Interno do Tribunal pela uniformização da jurisprudência).
Importante ressaltar que, tratando-se de incidente voltado ao interesse coletivo, se não for admitido, o IRDR pode ser suscitado novamente, mediante o preenchimento do requisito faltante.
Além disso, caso não suscite o incidente, o Ministério Público participará como fiscal da ordem jurídica e, na hipótese de abandono ou desistência do incidente por parte do requerente, assumirá a titularidade do procedimento.
Procedimento
Presentes os requisitos de admissibilidade do IRDR, o procedimento a se seguir inicia com a determinação pelo Relator da suspensão de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no mesmo Estado ou região dentro do âmbito de competência do tribunal e tratem da mesma questão repetitiva.
Além disso, o Relator pode requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita o processo no qual se discute o objeto do incidente e deve intimar o Ministério Público para manifestar-se.
Instaurado o IRDR, suspendem-se todas as ações que discutem a temática repetitiva e o Tribunal julgará a questão de direito em separado, de forma dissociada da demanda da qual se originou.
Após o seu julgamento, o entendimento adotado será aplicado a todos os processos, individuais ou coletivos, em trâmite ou futuros (salvo se houver revisão do entendimento), que versem sobre questão idêntica e tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive nos juizados especiais (art. 985, §1º, CPC).
Exceção à suspensão
A exceção à suspensão do processo encontra-se regulada no § 2º do art. 982 do Novo CPC. Ela determina que, durante a suspensão, pretensões relativas a tutelas de urgência devem ser dirigidas e submetidas à apreciação do juízo onde tramita o processo suspenso.
Ressalte-se que o IRDR pode ter a sua abrangência ampliada, uma vez que o art. 982, §§ 3° e 4°, prevê a possibilidade de qualquer uma das partes legitimada para a instauração do incidente.
Além disso, prevê também quem seja parte de algum processo que discuta o tema em outro Estado/Região, requerer junto ao STF ou STJ (a depender se a questão é constitucional ou federal) a suspensão de todos os processos em curso no território nacional que versem sobre a mesma matéria.
Suspensão em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (SIRDR)
Para tramitar esse pedido, o STF e STJ criaram em suas normas internas a classe processual da Suspensão em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (SIRDR).
Nos termos do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, o Presidente do STJ poderá:
“Considerando razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, suspender, em decisão fundamentada, todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente.”
Como exemplo de decisão proferida em SIRDR, coloco abaixo a decisão da Ministra Cármen Lúcia.
Ela determinou a suspensão das decisões de mérito que envolvam a interpretação do art. 158, inciso I, da Constituição Federal, em processos individuais ou coletivos que discutem a distribuição das receitas arrecadadas a título de IRRF sobre rendimentos pagos, a qualquer título, pelos municípios a pessoas físicas ou jurídicas contratadas para prestação de bens ou serviços:
“PETIÇÃO. SUSPENSÃO NACIONAL EM INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (SIRDR). § 3º DO ART. 982 E § 4º DO ART. 1.029 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA QUARTA REGIÃO: IRDR N. 5008835-44.2017.4.04.0000 ADMITIDA.
REPARTIÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS. IMPOSTO DE RENDA INCIDENTE NA FONTE SOBRE RENDIMENTOS PAGOS, A QUALQUER TÍTULO, PELOS MUNICÍPIOS A PESSOAS FÍSICAS OU JURÍDICAS CONTRATADAS PARA PRESTAÇÃO DE BENS OU SERVIÇOS. MATÉRIA CONSTITUCIONAL: COMPETÊNCIA DO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. LEGITIMIDADE DA REQUERENTE. CONTROVÉRSIA NACIONAL. ATRIBUIÇÃO DE SEGURANÇA JURÍDICA E CELERIDADE NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL DE DEMANDAS REPETITIVAS. SUSPENSÃO NACIONAL DEFERIDA. PROVIDÊNCIAS PROCESSUAIS.”
De forma a garantir o interesse coletivo a que se destina, a instauração e julgamento do IRDR devem ter ampla publicidade. Isso ocorre por meio da manutenção por tribunais de banco eletrônico de dados atualizados e a comunicação imediata ao Conselho Nacional de Justiça.
Exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, mantém a publicação eletrônica dos incidentes admitidos (32 temas até outubro de 2019) e dos inadmitidos, incabíveis ou pendentes.
Conforme Enunciado no 89 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Havendo apresentação de mais de um pedido de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas perante o mesmo tribunal todos deverão ser apensados e processados conjuntamente;
os que forem oferecidos posteriormente à decisão de admissão serão apensados e sobrestados, cabendo ao órgão julgador considerar as razões neles apresentadas.”
Prazos de IRDR
Com vistas a conferir celeridade ao procedimento, o CPC estipulou o prazo máximo de um ano para julgamento do IRDR.
Por isso, o IRDR tem preferência em relação a todos os demais feitos, exceto os processos que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.
Se o IRDR não for julgado no prazo, é encerrado o incidente e as causas afetadas voltam à sua tramitação normal, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário.
Durante a instrução do processo, o relator ouvirá as partes (do processo originário), o Ministério Público e os demais interessados, no prazo de 15 dias. Ele pode deferir a participação do “amicus curiae”, bem como marcar audiência pública ou requisitar informações.
Quem julga o IRDR?
Concluídas as diligências, o relator solicitará data para julgamento do IRDR, momento em que haverá possibilidade de sustentação oral pelas partes do processo originário e pelo Ministério Público e demais interessados.
Portanto, julgado o IRDR, a tese jurídica fixada torna-se precedente obrigatório para todos os processos que tramitem ou venham a tramitar na área de jurisdição do respectivo Tribunal, inclusive nos juizados especiais.
No caso de não aplicação, caberá à parte apresentar reclamação ao tribunal competente (art. 985, § 1o, do CPC), assim como ocorre em caso de descumprimento de súmula de caráter vinculante, nos termos do art. 103-A, § 3o, da Constituição Federal.
Destaque-se que, em relação aos processos futuros que versem sobre a
mesma questão de direito, independentemente da citação do réu, o juiz poderá julgar improcedente o pedido, caso ele contrarie o entendimento firmado no IRDR, nos termos do art. 332, III, do Novo CPC.
Recursos
Contra a decisão de mérito do IRDR, que apenas fixa a tese jurídica, sem, contudo, julgar a demanda originária (embora o órgão julgador torne-se prevento), caberá recurso extraordinário ou especial, conforme se trate de matéria de questão constitucional (art. 102, inciso III, da Constituição Federal) ou federal (art. 105, inciso III, da Constituição Federal).
Os recursos podem ser interpostos pelas partes, pelo Ministério Público, pelo terceiro prejudicado e pelo amicus curiae, e têm efeito suspensivo, considerando-se presumida a repercussão geral de questão constitucional eventualmente discutida.
No entanto, há a possibilidade, ainda, da revisão da tese jurídica firmada no IRDR, o que ocorrerá perante o mesmo Tribunal, mediante requerimento dos legitimados mencionados no art. 977, inciso III, do CPC.
Petição de IRDR
Como explicado anteriormente, o IRDR configura um procedimento incidental com total autonomia, desvinculado do seu processo de origem, ainda que com ele interligado, e assim, detendo instrumentalidade própria.
A petição com o pedido de instauração do IRDR se assemelha a uma petição inicial, com a menção das partes, o endereçamento ao presidente do Tribunal, a fundamentação jurídica com o preenchimento dos requisitos pertinentes ao próprio incidente e o pedido da resolução da questão repetitiva.
Logo, deve ser instruída com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos pressupostos para a instauração do incidente.
Vale lembrar que, na hipótese de processo eletrônico, basta indicar os eventos ou movimentos do processo, que correspondem aos referidos documentos.
IRDR no STJ
Debate em voga no atual cenário jurídico refere-se ao cabimento do IRDR no âmbito dos Tribunais Superiores.
Isso porque, recentemente, foi proferida decisão pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, entendendo pelo não cabimento de tal mecanismo junto aos tribunais superiores, o que vai de encontro a também recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.
Para o presidente do STF, o IRDR é de competência originária do tribunal estadual ou federal a que o juiz da causa estiver vinculado.
Em razão do regime de direito estrito, as hipóteses de ações, recursos e incidentes da competência da Suprema Corte estão taxativamente disciplinadas no art. 102 da Constituição Federal, tendo o Código de Processo Civil instituído, no âmbito dos tribunais superiores, a técnica dos recursos excepcionais repetitivos, reservando aos tribunais de segundo grau o IRDR.
Ainda segundo o Min. Toffoli, essa orientação é igualmente revelada ao longo da própria memória do processo legislativo do CPC, uma vez que:
“Em momento algum as Comissões do Senado Federal e da Câmara dos Deputados fizeram constar em seus relatórios a possibilidade de se atribuir ao STF a competência para processar e julgar esse instrumento de formação de padrão decisório.”
O que diz a Corte Especial do STJ
Já a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, entendeu cabível a instauração de IRDR diretamente no STJ “apenas nos casos de competência recursal ordinária e de competência originária, e desde que preenchidos os requisitos do art. 976 do CPC”.
Para o Ministro Relator do voto:
[…] conforme se extrai da exposição de motivos do novo CPC, […] o novo instituto foi pensado para dotar os tribunais estaduais e tribunais regionais federais de um mecanismo semelhante àquele já existente nas cortes superiores, relativamente aos recursos repetitivos.
A essa conclusão igualmente se pode chegar a partir de uma interpretação sistemática do sistema de precedentes normatizado na novel legislação e dos dispositivos que regulamentam o IRDR. Uma vez no exercício de competência originária […] ou competência recursal ordinária […], é possível que o STJ se depare com situações semelhantes àquelas que justificam, no âmbito dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais, a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas: efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. […] o IRDR possui natureza de incidente processual, como seu próprio nome revela.
Não se trata de ação originária, até porque não pode o legislador comum criar competências originárias para os tribunais, as quais estão previstas na Constituição Federal no caso dos tribunais superiores e tribunais regionais federais e, nas constituições estaduais, no caso dos tribunais de justiça. Assim, sua instauração requer a existência de demanda em curso no tribunal para que nela possa incidir. A essa conclusão se chega também por força do que dispõe o parágrafo único do art. 978 do CPC, ao atribuir ao órgão colegiado incumbido de julgar o incidente competência para julgar igualmente o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente.”
A questão ainda deve ser objeto de julgamentos posteriores, inclusive pelo Colegiado do Supremo Tribunal Federal.
Conclusão
Conforme vimos, a grande inovação trazida pelo Código de Processo Civil ao instituir o IRDR foi estender a sistemática de julgamento de demandas repetitivas aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, antes reservada exclusivamente aos Tribunais Superiores.
O procedimento do IRDR é trifásico e envolve:
– a instauração do incidente pelas partes, Ministério Público, Defensoria Pública, juiz ou relator;
– sua instrução e julgamento;
– a aplicação da tese jurídica fixada pelo Tribunal competente para as demandas individuais e coletivas, presentes e futuras, que tratem da mesma questão de direito.
Sua aplicação induz à uniformidade e estabilidade da jurisprudência, propiciando o fortalecimento da segurança jurídica e isonomia, bem como colabora com a celeridade processual.