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COMO É REALIZADO O INVENTÁRIO DE COTAS NA SOCIEDADE LIMITADA?

COMO É REALIZADO O INVENTÁRIO DE COTAS NA SOCIEDADE LIMITADA?

Rafael Duarte

 

Análise breve do que é o inventário e sua finalidade

O processo de inventário e partilha consiste na formalização da sucessão patrimonial decorrente do falecimento de uma pessoa. Dessa forma, todo o patrimônio deixado por uma pessoa falecida (de cujus) é transmitido automaticamente aos seus sucessores (art. 1.784 do Código Civil[1]).

Essa transmissão, contudo, apesar de ser automática por força de lei, pressupõe um procedimento específico, com vistas a pagar eventuais dívidas, deixadas pelo falecido (autor da herança), bem como catalogar todo o patrimônio deixado, arrolar seus sucessores e, ao fim, partilhar o patrimônio restante – consistente no que sobrar após o pagamento dos débitos – entre os seus herdeiros, legítimos ou testamentários, bem como legatários, se existirem.

Esse procedimento é essencial, porque a herança é transferida aos sucessores como um todo unitário, independentemente do número de herdeiros (art. 1.791, caput, do CC[2]).

Sendo assim, até que se realize a efetiva divisão patrimonial, determinando especificamente quais bens ou direitos representam cada quinhão hereditário de cada herdeiro, os sucessores terão apenas partes ideais desse todo unitário, não podendo exercer isoladamente direitos sobre esse todo unitário, de modo que as decisões tendem a depender de consenso.

 

 Sobre quais bens incide o inventário e a partilha

Quanto ao patrimônio que será arrolado, inventariado, para fins de partilha subsequente em favor dos herdeiros, tem-se que este envolverá todo e qualquer bem ou direito passível de avaliação econômica. Isto é, será objeto de partilha: bens imóveis, bens móveis, semoventes, ações em companhias anônimas, quotas em sociedades limitadas, joias, quadros de alto valor, entre outros.

No presente artigo será analisada a sucessão patrimonial envolvendo quotas sociais de sociedades empresárias de responsabilidade limitada, dando-se especial atenção a dois principais aspectos:

  1. a) eventual intervenção – ou não – dos herdeiros do de cujus na sociedade empresária; e b) valor de avaliação das cotas sociais para fins de incidência tributária.

 

Regulamentação do tema pelo contrato social

Quando o sócio falece, o processo de inventário – como visto – deve passar pela reunião de todos os bens e direitos por ele deixados. Se o falecido for titular de cotas sociais em sociedade por cotas, o primeiro passo é analisar o que está previsto no contrato social dessa sociedade empresária acerca do falecimento de algum dos sócios.

O contrato social poderá prever tanto que as cotas pertencentes ao autor da herança serão transferidas aos seus herdeiros – ou seja, os herdeiros ingressarão na sociedade empresária como sócios – ou se as cotas do falecido serão redistribuídas entre os sócios sobreviventes e aos herdeiros do de cujus caberá receber o valor correspondente à avaliação das cotas deixadas pelo falecido.

Caso o contrato social afaste a possibilidade de os herdeiros ingressarem na sociedade, o tema será regulamentado, em contrato, pela chamada “cláusula mortis[3], responsável por bem regulamentar a forma e o prazo de recebimento da quantia referente às cotas sociais em favor do espólio.

Se, contudo, o contrato social nada estipular sobre o que será feito das cotas sociais deixadas pelo falecido, o tema será regido pelo código civil em seu artigo 1.028. Isto é: a regra é a liquidação das cotas, mediante o pagamento do valor apurado em favor dos herdeiros, mas sem ingresso dos herdeiros na sociedade:

Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo:

I – se o contrato dispuser diferentemente;

II – se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade;

III – se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido. […]

Complementando-se o art. 1.028, caput, do Código Civil, o tema é regulamentado pelo art. 1.031, caput, do Código Civil[4], o qual determina, em linhas gerais, que a liquidação das cotas será realizada com base na “situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado”, salvo disposição em contrário. Assim sendo, verifica-se que o critério de quantificação das cotas poderá ser regulamentado no contrato social.

Da mesma forma, dispõe o § 2º do art. 1.031 do Código Civil[5] que a liquidação desta cota em favor dos herdeiros será feita em dinheiro e dentro do prazo de 90 (noventa) dias, a contar da liquidação, mas, novamente, abre a possibilidade para que os sócios disponham de modo diverso no contrato social.

A conclusão a que se chega é que é fundamental que os sócios prevejam a forma como se dará a sucessão das cotas. O contrato social possui grande espaço para regulamentar o tema, desde determinando um cálculo específico, seja determinando a avaliação das cotas societárias por um perito ou empresa especializada em valuation escolhido pelos sócios. Ainda, após determinar como é realizado o cálculo, o contrato social também pode determinar a forma de pagamento, como, por exemplo, em 36 parcelas mensais para proteger a empresa sem que haja um desfalque financeiro à vista.

Outra possibilidade, é a estipulação de um pro labore a ser pago aos herdeiros durante o período de apuração, que posteriormente, poderá ser deduzido dos haveres apurados[6], sendo, assim, uma forma de amparar os herdeiros durante o processo de apuração dos haveres.

 

Como deve ser realizada a avaliação das cotas sociais para fins de cobrança de ITCMD, imposto de transmissão causa mortis?

Posicionamento do TJ/RS sobre como quantificar o valor das quotas

Por determinação expressa da Constituição Federal[7], haverá a cobrança do imposto de transmissão causa mortis (usualmente chamado de ITCD ou ITCMD), o qual incidirá sobre as cotas sociais deixadas pelo sócio falecido.

A dúvida que surge, por sua vez, é: como calcular o valor das cotas para fins tributários.

Prevalece o entendimento de que, como forma de melhor delimitar o valor de mercado das cotas, há de se adotar o balanço contábil encerrado no mesmo ano de abertura da sucessão, ou seja, do falecimento do sócio.

No Estado do Rio Grande do Sul, o tema é regulamentado pelo art. 12 da Lei Estadual nº 8.821/89 e no art. 14, caput e § 5º, do Decreto Estadual nº 33.156/89, a lei instituidora do ITCMD no Estado, bem como o decreto regulamentador, que adentra em maiores detalhamentos acerca da cobrança do tributo.

O TJ/RS, por sua vez, adota como base de cálculo relativa às cotas empresariais o valor apurado mediante o último balanço contábil da sociedade empresária, com encerramento no ano de abertura da sucessão, ou seja, no ano do falecimento do sócio. Abaixo dois julgados do Tribunal de Justiça deste Estado, corroborando esse posicionamento:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. ITCD. BASE DE CÁLCULO PARA AVALIAÇÃO DE COTAS SOCIAIS. AVALIAÇÃO PELA FAZENDA NACIONAL COM BASE EM BALANÇO CONTÁBIL EMPRESARIAL MAIS PRÓXIMO À DATA DA ABERTURA DA SUCESSÃO. 1. O valor de cotas sociais, objeto de transmissão causa mortis, deve ser apurado por avaliação da “fazenda estadual” ou avaliação “judicial” […] 2. A avaliação mais condizente com as cotas sociais corresponde ao balanço contábil encerrado no mesmo ano de abertura da sucessão, motivo pelo qual deve ser efetiva a avaliação da Fazenda Estadual utilizando o referido parâmetro e não o valor nominal das cotas e, havendo discordância dos herdeiros, poderá ser nomeado perito. Recurso desprovido. (Agravo de Instrumento, Nº 70074446527, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em: 24-10-2017) (grifou-se).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. ITCD. BASE DE CÁLCULO PARA AVALIAÇÃO DE COTAS SOCIAIS. HOMOLOGAÇÃO DO CÁLCULO DO PERITO JUDICIAL. BALANÇO CONTÁBIL EMPRESARIAL MAIS PRÓXIMO À DATA DA ABERTURA DA SUCESSÃO. […] Por outro lado, tratando-se de cotas sociais deixadas pela autora da herança – com efetiva participação e valoração das cotas, decorrente da gestão empresarial empreendida pela falecida – a avaliação mais condizente às referidas cotas corresponde ao balanço contábil encerrado naquele mesmo ano de abertura da sucessão, tal como identificado pelo perito. Portanto, como a lei de regência também possibilita que seja acolhida avaliação “judicial” (não se limitando à avaliação da “Fazenda”), correta a decisão que homologou avaliação do perito do juízo. NEGARAM PROVIMENTO. (Agravo de Instrumento, Nº 70070064050, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em: 25-08-2016) (grifou-se).

 

Da importância da previsão do cálculo no contrato social

Percebe-se que o método de contagem adotado pelo Fisco Estadual para definição da base de cálculo do tributo sobre a transmissão das cotas não leva em consideração o potencial e a capacidade de crescimento da empresa.

Assim, por exemplo, ao analisar empresas de base tecnológica que ainda estão na fase Early-stage, o seu grande potencial de crescimento e escala não serão considerados, por não ter histórico significativo de faturamento no momento da apuração. Como nenhum desses fatores de projeção de desempenho futuro integra a contabilidade presente da startup, a tendência é que a avaliação não reflita o real valuation da empresa, prejudicando assim, a liquidação de suas cotas ou pagamento aos herdeiros.

Logo, a forma de equilibrar isso em favor dos herdeiros, não os deixando desamparados, é utilizar forma diferente de apuração da utilizada pelo Fisco Estadual, mais apropriada para empresas que possuem patrimonial intelectual e não bens tangíveis (imóveis, estoque, etc) como forma de proteger os familiares do sócio que falecer, tendo se dedicado à sociedade, com contribuições pessoais muitas vezes inestimáveis.

Por fim, destaca-se a importância de os sócios constarem tudo isso no contrato social e de outros instrumentos societários. Assim, se a empresa passar para um novo momento e os sócios entenderem que o mais adequado seria fixar outro critério, basta promoverem alteração no conteúdo desses acordos de vontade, que devem sempre ser mantidos atualizados aos seus anseios, contando com o suporte de assessoria jurídica especializada.

Por fim, com o objetivo de facilitar o estabelecimento do valor a ser pago para os herdeiros, é fundamental que os sócios prevejam a forma como será realizada a apuração dos haveres e o pagamento do valor apurado.

Essa modulação é especialmente importante para Startups e empresas do ramo de tecnologia, em fase inicial de crescimento, em que grande parte do seu patrimônio se encontra em bens intangíveis (imateriais) e que não foram concretizados em ganhos financeiros ainda.

Assim, preocupados com isso, podem os sócios prever em contrato uma forma intermediária de apuração de haveres em favor dos herdeiros do sócio falecido através uma avaliação técnica por profissional conhecedor do mercado de atuação da startup (valuation por pessoa de sua escolha, por exemplo), que possa apurar uma avaliação que leve em consideração, inclusive, seu potencial de crescimento. Contudo, pode-se compensar isso, estabelecendo-se que o pagamento desses haveres será mediante ganhos proporcionais ao crescimento da startup. Isto é, assegura aos herdeiros um ganho significativo com o passar do tempo e também não inviabiliza a continuidade da empresa.

Conforme referido, pode-se destacar a importância de uma regulamentação clara no contrato social sobre como será realizada a sucessão patrimonial no caso de falecimento de algum sócio – visando à continuidade da sociedade empresária –, bem como as consequências tributárias deste falecimento.

[1] Código Civil. Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (princípio de Saisine). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.

[2] Código Civil. Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.

[3] FARIA, Mario Roberto Carvalho de. Direito das sucessões – Teoria e prática. 9. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro, Forense, 2018. p. 337.

[4] Código Civil. Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.

[5] Código Civil. Art. 1.031. […] § 2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.

[6] FARIA, Mario Roberto Carvalho de. Direito das sucessões – Teoria e prática. 9. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro, Forense, 2018. p. 337.

[7] Constituição Federal. Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.