COLEGIADO DO COLEGIADO: TÉCNICA DE JULGAMENTO AMPLIADO E JURISPRUDÊNCIA DO STJ
José Miguel Garcia Medina
O artigo 942 do Código de Processo Civil de 2015 dispõe sobre hipóteses em que deverá haver ampliação do quórum do colegiado dos tribunais, em casos de julgamento não unânime. No presente texto examinaremos soluções apresentadas pelo Superior Tribunal de Justiça para alguns dos problemas relacionados à aplicação do instituto.
Embora não se trate de recurso, mas de mero prosseguimento de julgamento com ampliação do quórum de juízes que proferirão voto, tal mecanismo surgiu, na tramitação legislativa do projeto da lei que aprovou o CPC de 2015, como algo que faria às vezes dos embargos infringentes, recurso antes previsto nos artigos 530 a 534 do CPC de 1973.
Trata-se, de todo modo, de instituto novo, antes inexistente na legislação revogada. Em termos históricos, no entanto, pode se encontrar figura bem parecida, prevista nas Ordenações Afonsinas [1].
Nas hipóteses referidas no artigo 942 do Código de Processo Civil de 2015, o julgamento há de prosseguir caso não se alcance a unanimidade, tomando-se o voto de juízes “em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial” (artigo 942, caput, do CPC). Assim, por exemplo, caso o resultado momentâneo do julgamento da apelação (para o qual há quórum de três juízes, cf. artigo 941, § 2º, do CPC) seja o de, por maioria (isso é, dois votos a um), se dar provimento para reformar sentença de mérito, prossegue-se o julgamento com a tomada de voto de mais dois juízes, número que seria suficiente para se inverter o resultado (isso é, se poderia chegar a três votos contra dois). O colegiado, assim, fica ampliado.
Daí se afirmar, em feliz expressão, que no caso se está diante de “colegiado do colegiado” [2].
Referido procedimento deve ser observado obrigatória e automaticamente, independentemente de provocação da parte [3].
Como o julgamento só se conclui efetivamente após o prosseguimento de que trata o artigo 942, aqueles que já se manifestaram em sua primeira fase poderão retificar seu voto, nos termos do § 1º do artigo 941 (cf. § 2º do artigo 942 do CPC/2015).
Sempre que possível, o prosseguimento se dará na mesma sessão, tomando-se voto de outros componentes do órgão colegiado que estejam presentes (cf. § 1º do artigo 942 do CPC/2015); caso contrário, o julgamento prosseguirá em nova sessão, convocando-se outros julgadores, assegurado o direito a nova sustentação oral (cf. artigo 942, caput, 2ª parte, do CPC/2015).
A técnica de julgamento referida no artigo 942 é textualmente vedada nos casos indicados em seu § 4º (julgamento de incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, de remessa necessária e nos casos de julgamento não unânime proferido por plenário ou corte especial dos tribunais). Assim, p. ex., referida técnica não é aplicável em recurso extraordinário ou especial (embora seja admissível em se tratando de ação rescisória, quando a competência originária para seu julgamento for do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça).
No ponto, valeu-se o legislador de critérios não muito claros para dispor sobre as situações que justificam o prosseguimento do julgamento com a tomada do voto de mais juízes: ao referir-se à apelação, redigiu o texto de modo impreciso (onde está “quando o resultado da apelação não for unânime“, deveria ser “quando o resultado do julgamento da apelação não for unânime“), sem deixar claro se, por exemplo, se trata de julgamento sobre a admissibilidade ou sobre o mérito do recurso, se estende tanto ao caso de provimento quanto ao de desprovimento da apelação, e, ainda, se aplica tanto em caso de julgamento que reforma quanto ao que anula sentença.
Já se decidiu que a técnica de ampliação do colegiado deve ser aplicada a qualquer julgamento não unânime de apelação, inclusive quando se tratar de decisão sobre questões preliminares relativas ao juízo de admissibilidade do recurso [4]. Decidiu-se, também, que a técnica deve ser observada, quer trate-se de julgamento de revisão, quer trate-se de cassação (anulação) da decisão recorrida [5].
Segundo o § 3º do artigo 942 do CPC/2015, a técnica aplica-se também ao julgamento não unânime proferido em ação rescisória, quando houver rescisão da sentença (e, embora isto não esteja escrito no referido texto, também de acórdão) [6], e em agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão de mérito [7]. Tem-se, aí, um claro discrimen: admite-se a técnica de julgamento quando se tratar de decisão de mérito (a rescisória, como regra, é manejada contra decisões dessa natureza, cf. artigo 966, caput, e § 1º, do CPC/2015, salvo no caso do § 2º, I do mesmo artigo).
Os incisos do § 3º do artigo 942 do CPC/2015 contêm, ainda, uma outra restrição: a decisão deve ter sido rescindida ou reformada, respectivamente, em se tratando de rescisória ou de agravo de instrumento. Pode tratar-se de reforma de parte da sentença ou de decisão interlocutória que verse sobre o mérito, ou de rescisão de parte da decisão [8].
Deve-se observar a técnica prevista no artigo 942 do CPC/2015 também em embargos de declaração quando, no julgamento desse recurso, se chegar a um dos resultados referidos acima (p. ex., quando do julgamento de embargos de declaração opostos contra acórdão que reformou sentença, ou, em se tratando de acórdão oriundo de agravo de instrumento, “se os embargos de declaração forem acolhidos para modificar o julgamento originário do magistrado de primeiro grau que houver proferido decisão parcial de mérito” [9]). Tal se dá porque a decisão que julga os embargos de declaração integra a decisão embargada. Em razão do mesmo princípio, opostos embargos de declaração contra acórdão proferido pelo órgão em composição ampliada (isso é, após a ampliação do colegiado, nos termos do artigo 942 do CPC), tal composição (ampliada) também deverá ser observada, no julgamento de tais embargos de declaração [10].
Como o julgamento não se concluiu, os julgadores convocados poderão se manifestar sobre todos os pontos até então versados, ainda que a divergência seja apenas parcial. Reitere-se que a técnica a que se refere o artigo 942 do CPC/2015 não tem natureza de recurso, motivo pelo qual não faz sentido afirmar que, no caso, haveria algo similar ao efeito devolutivo de recurso que verse apenas sobre parte da decisão [11]. Rigorosamente, no caso, o julgamento não se concluiu, e sua conclusão só se dará com a tomada dos votos de todos os seus participantes, que deverão se manifestar sobre todos os pontos do recurso ou da ação rescisória [12].
Há quem defenda a sua extinção [13], o que já alvo de fortes críticas [14]. O mecanismo, no entanto, tem produzido bons resultados [15]. Superadas controvérsias como as apontadas acima, trata-se de instrumento que permite o aprimoramento do contraditório com um melhor debate sobre as razões do voto divergente, o que deve contribuir para aperfeiçoar o julgamento proferido pelo tribunal [16].
[1] Explica Rogério Lauria Marçal Tucci que “nas primeiras Ordenações do Reino, as Afonsinas, promulgadas em 1446, já era previsto, em 1.1.3., disposição imperativa no sentido de estabelecer a convocação de novos julgadores, nas hipóteses de divergência. Persistindo o empate, a decisão competia ao Presidente. Ainda, dada a relevância de algumas demandas, em caso de divergência, era avocado ao monarca o poder de decidir a questão” (Perfil histórico dos embargos infringentes das Ordenações Afonsinas ao Código de Processo Civil de 2015), Revista de Processo, vol. 249, nov./2015, p. 275-295). A respeito, cf. também o que escrevemos Código de Processo Civil Comentado (7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2022; mais informações aqui).
[2] Na doutrina, cf. Sergio Shimura e Wanessa de Cássia Françolin, Colegiado do colegiado: discussão sobre o julgamento estendido previsto no artigo 942 do CPC, Revista de Processo vol. 318, agosto/2021, p. 209-239.
[3] STJ, REsp 1.733.820/SC, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 2/10/2018. No mesmo sentido, STJ, REsp 1868072/RS, relator ministro Francisco Falcão, 2ª Turma, julgado em 4/5/2021, em que se decidiu que a observância do procedimento é obrigatória também em se tratando de apelação em mandado de segurança.
[4] STJ, REsp 1.798.705/SC, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 22/10/2019.
[5] STJ, AgInt no REsp 1.783.569/MG, relator ministro Moura Ribeiro, 3ª Turma, julgado em 19/8/2019.
[6] Decidiu-se que não se aplica a regra prevista no artigo 942 do CPC à decisão sobre o juízo de admissibilidade da ação rescisória (cf. STJ, REsp 1.762.236/SP, rel. p/acórdão min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 19/2/2019; STJ, EDcl nos EDcl no AgInt no REsp 1.739.593/ES, relator ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 11/4/2019).
[7] “Repita-se que somente se admite a técnica do julgamento ampliado, em agravo de instrumento, prevista no art. 942, § 3º, II, do NCPC, quando houver o provimento do recurso por maioria de votos e desde que a decisão agravada tenha julgado parcialmente o mérito” (STJ, EDcl no REsp 1960580/MT, rel. ministro Moura Ribeiro, 3ª Turma, julgado em 15/2/2022). Decidiu-se que a técnica não se aplica a agravo de instrumento interposto contra decisão oriunda de processo de execução ou de cumprimento de sentença (STJ, AgInt no AREsp 1.233.242/RS, relator ministro Lázaro Guimarães, 4ª Turma, julgado em 18/9/2018). Decidiu-se que a técnica deve ser observada em agravo de instrumento oriundo de a impugnação de crédito em processo de recuperação judicial (STJ, REsp 1.797.866/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 14/5/2019).
[8] Nesse sentido, cf. Enunciado nº 63 das Jornadas do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “A técnica de que trata o art. 942, § 3º, I, do CPC aplica-se à hipótese de rescisão parcial do julgado”.
[9] Cf. STJ, REsp 1841584/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 10/12/2019. Decidiu-se que “deve ser aplicada a técnica de julgamento ampliado nos embargos de declaração toda vez que o voto divergente possua aptidão para alterar o resultado unânime do acórdão de apelação” (STJ, REsp 1910317/PE, rel. ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 2/3/2021). Cf. também STJ, AgInt no AREsp 1873065/SP, rel. ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, julgado em 22/2/2022.
[10] Nesse sentido, Enunciado nº 137 das Jornadas do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (“Se o recurso do qual se originou a decisão embargada comportou a aplicação da técnica do art. 942 do CPC, os declaratórios eventualmente opostos serão julgados com a composição ampliada”) e Enunciado n. 700 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (“O julgamento dos embargos de declaração contra o acórdão proferido pelo colegiado ampliado será feito pelo mesmo órgão com colegiado ampliado”).
[11] Cf. STJ, REsp 1934178/DF, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 14/9/2021.
[12] Nesse sentido, cf. STJ, REsp 1890473/MS, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 17/8/2021.
[13] Cf. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 3055/2020.
[14] Cf. Luiz Dellore e Walter Piva Rodrigues, Pela manutenção do “julgamento estendido” no CPC/2015 (art. 942), Revista de Processo vol. 320, outubro/2021, p. 239-251.
[15] Cf. pesquisa realizada por Fernanda Medina Pantoja e publicada no seguinte artigo: Notas sobre a divergência: Premissas teóricas e inferências empíricas acerca da ampliação da colegialidade na apelação, Revista de Processo vol. 303, maio/2020, p. 209-225.
[16] No mesmo sentido, cf. Fernanda Medina Pantoja, ob.loc.cits. Na doutrina, em sentido diverso, Sergio Shimura e Wanessa de Cássia Françolin afirmam que “a técnica de julgamento estendido pretende, na prática, muito mais trazer não uma valorização do voto vencido em si, mas mais uma tentativa de se buscar — a todo custo e sem o procedimento adequado — a busca por decisões unânimes” (ob.loc.cits.).