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COISA JULGADA SOBRE QUESTÃO, INCLUSIVE EM BENEFÍCIO DE TERCEIRO

COISA JULGADA SOBRE QUESTÃO, INCLUSIVE EM BENEFÍCIO DE TERCEIRO

Luiz Guilherme Marinoni

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Fundamento. 3 Questão de que Depende o Julgamento do Mérito. 4 A Questão Pode Derivar de Fato Constitutivo ou de Fato Impeditivo, Modificativo ou Extintivo. 5 Questão Discutida. 6 Questão de Direito que Independe de Prova. 7 Questão Decidida. 8 Competência Absoluta. 9 Coisa Julgada em Favor de Terceiros: Fundamento. 10 A Coisa Julgada sobre Questão pode Beneficiar Terceiro, mas Jamais Prejudicá-lo. 11 A Questão Deve Ser a Mesma e Deve Estar Inserida no Conflito entre as Partes e os Terceiros. 12 Ato que Provoca Múltiplos Danos ou Prejuízos. 13 Discussão do Preenchimento dos Requisitos Formais para a Formação da Coisa Julgada sobre Questão.

                                  

1 Introdução                                  

O tema da coisa julgada sobre questão é absolutamente novo. Não apenas passou a ser discutido na doutrina de civil law recentemente [1], como, em termos normativos, apareceu no direito brasileiro somente com o Código de Processo Civil de 2015.

A abordagem do tema exige a consideração dos arts. 503 e 506 do Código. Diz o art. 503: “A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida. § 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se: I – dessa resolução depender o julgamento do mérito; II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal. § 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial“. Por sua vez, afirma o art. 506: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros“.

Como está claro, o art. 503 prevê expressamente a possibilidade de a coisa julgada estender-se à questão de que “depender o julgamento do mérito“, desde que presentes determinados pressupostos, como, por exemplo, ter “havido contraditório prévio e efetivo”. O art. 506, ao reafirmar que a coisa julgada diz respeito às partes, adverte que esta não pode prejudicar terceiros, podendo, consequentemente, beneficiar aqueles que não participaram do processo.

2 Fundamento       

É preciso indagar sobre as razões que levaram o sistema processual brasileiro não só a abandonar um critério absolutamente tradicional em todo o civil law – a restrição da coisa julgada ao dispositivo e às partes -, como também inovar para se aproximar do common law.

Esclareça-se prontamente que a extensão da coisa julgada à questão de que depende a decisão e também, eventualmente, para terceiros que não participaram do processo nada tem a ver com o sistema de precedentes judiciais ou com o stare decisis. Tornar imutável e não passível de rediscussão o que se decidiu a respeito de uma questão que é pressuposto para a solução do mérito é uma exigência que se relaciona com a necessidade de estabilidade da própria decisão do litígio às partes, com a autoridade das decisões judiciais e com a eficiência da distribuição da justiça.

Não há sentido em fragilizar o que se decide a respeito de uma questão, retirando das partes a segurança jurídica proporcionada pela coisa julgada, apenas pela circunstância de as partes, no processo em que resolvida a questão, estarem interessadas na solução de outra controvérsia. Considere-se, por exemplo, a ação de alimentos em que se alega que o demandado, por ser pai do autor, deve pagar-lhe alimentos. Controvertida a questão da paternidade, essa obviamente se torna um pressuposto a ser discutido e decidido para a solução do pedido de alimentos. Ora, se a questão é devidamente discutida pelas partes, sem qualquer restrição, não há qualquer razão para não se atribuir autoridade de coisa julgada à decisão pertinente à questão da paternidade. Deixá-la em aberto e livre para questionamentos futuros serve apenas para não definir às partes algo que é mais importante do que os próprios alimentos. É absurdo permitir que as partes voltem a discutir a questão de paternidade, já resolvida na ação de alimentos, apenas porque um dia alguém afirmou em sede doutrinária que a coisa julgada recai apenas sobre o objeto do processo ou sobre o pedido do autor.

Vale a pena lembrar que a ideia de restringir a coisa julgada ao pedido tem relação com o princípio dispositivo e, assim, com a liberdade das partes. Supunha-se que, como o juiz não pode decidir a não ser o que foi pedido pela parte, não seria possível tornar imutável e indiscutível algo que o próprio autor não pediu ao juiz. O Estado estaria ingressando numa esfera privada, que não é sua. O princípio dispositivo, ao limitar a atuação do juiz, também impediria a extensão da coisa julgada a uma questão que não foi posta pela parte enquanto pedido. Isso fica ainda mais claro quando se pensa na ação declaratória incidental: a decisão judicial só assume a condição de coisa julgada material quando a parte manifesta expressamente a sua vontade de ter a questão resolvida mediante tal condição.

Restringir a coisa julgada em virtude do princípio dispositivo ou da liberdade das partes obviamente não tem sentido. Afinal, são as próprias partes que controvertem a questão em juízo, tornando-a capaz de ser decidida com força de coisa julgada. Também são as partes que terão definitivamente resolvida uma questão importante para a acomodação do seu conflito social, bem como para a estabilidade das suas vidas.

Além disso, desafia a autoridade da prestação jurisdicional voltar a decidir questão já decidida, especialmente uma questão que já foi decidida entre as mesmas partes. Na verdade, permitir a rediscussão de questão já decidida para as partes, apenas por estarem a litigar num outro processo, significa reduzir a autoridade da prestação jurisdicional ao dispositivo, como se a solução da questão de que depende a resolução do mérito não representasse afirmação do poder estatal. Ora, não há motivo para fingir não ver que a possibilidade de voltar a discutir e decidir questão já decidida representa a admissão de que o juiz só exerce poder – ou realmente decide – quando julga o pedido. Isso obviamente não tem racionalidade.

Fora tudo isso, dar às partes oportunidade para relitigar questão já discutida e decidida certamente dobra o gasto de tempo e de dinheiro das partes e da administração da justiça, constituindo um atentado contra a racionalidade da prestação jurisdicional.

3 Questão de que Depende o Julgamento do Mérito                                

O inciso I do art. 503 fala literalmente em resolução de questão de que “depender o julgamento do mérito“. Isso quer dizer que a questão prejudicial que importa para se saber se há coisa julgada não é apenas aquela que diz respeito ao que se chama – no direito italiano – de “fato-direito[2]. Constitui fato-direito, por exemplo, a qualidade de herdeiro na ação em que se controverte sobre crédito do de cujus. A qualidade de herdeiro não é apenas um simples fato de que pode decorrer um direito; ela é um fato que pode constituir objeto de uma ação autônoma.

Porém, todo fato que pode ser associado a um efeito jurídico – e não apenas os “fatos-direito” – é capaz de dar origem a uma questão prejudicial. Assim, por exemplo, o fato atribuído ao réu que pode ser associado ao efeito jurídico culpa. No caso em que se pede indenização por danos emergentes afirmando-se a culpa do demandado diante de acidente automobilístico, determinado fato – como a velocidade acima do limite permitido em lei – é associado à culpa, de modo que a culpa é um pressuposto de que depende a resolução do pedido de indenização. A culpa, portanto, é aí uma questão prejudicial sobre a qual pode recair coisa julgada.

Note-se que, uma vez decidida a questão da culpa com autoridade de coisa julgada, não será possível voltar a discutir e decidir a mesma questão em outra ação em que o mesmo autor peça indenização por lucros cessantes ou danos morais em face do mesmo réu e do mesmo fato antes qualificado como culposo. O juiz da primeira ação já decidiu sobre a existência de culpa, de modo que o juiz da segunda ação, em que se pede indenização por outro dano em virtude do mesmo fato antes admitido como culposo, não pode permitir que se volte a discutir a questão da culpa nem decidi-la. Está impedido a tanto pela coisa julgada formada sobre a questão.

O juiz da segunda ação não apenas não pode redecidir, como não pode abrir oportunidade à discussão da questão. Deve, assim, indeferir a produção de prova destinada a provar que não houve culpa ou mesmo a prová-la. Aqui, o juiz, além de não poder decidir em sentido contrário, não pode decidir no mesmo sentido. As partes não podem relitigar a questão, o juiz não pode permitir a sua rediscussão e também não pode redecidi-la.

Assim, o autor que já obteve indenização pelos danos emergentes pode pedir indenização por lucros cessantes ou danos morais invocando a autoridade de coisa julgada já estabelecida sobre a questão da culpa em virtude do acidente. Também poderá invocar a proibição de relitigação da questão se o réu tentar rediscuti-la ou requerer a produção de prova para resolvê-la. O que se poderá rediscutir e terá que ser decidido é, por exemplo, a existência de lucros cessantes ou o cabimento – no caso – da indenização por danos morais.

Frise-se que a questão só ficará revestida pela coisa julgada se dela depender o julgamento do mérito. Vale dizer: a questão ficará acobertada pela coisa julgada apenas se o julgamento do pedido exigir a sua resolução incidental. É possível que o juiz possa julgar o mérito a partir da solução de mais de uma questão, como por exemplo ocorre quando o autor afirma que o réu praticou condutas que configuram culpa e dolo. A culpa e o dolo dizem respeito a questões distintas, ainda quando relacionados ao mesmo e único fato. Saber se houve dolo ou se houve culpa é decidir uma questão de que o julgamento do pedido indenizatório depende.

4 A Questão Pode Derivar de Fato Constitutivo ou de Fato Impeditivo, Modificativo ou Extintivo            

É verdade que os fatos, quando negados pela parte adversa, tornam-se controversos e exigem a produção de prova. Porém, nem sempre a questão prejudicial deriva de um fato constitutivo negado pelo demandado. Como é sabido, o réu pode não apenas negar os fatos constitutivos afirmados pelo autor, mas também alegar fatos impeditivos, modificativos e extintivos.

Assim, se o réu alega adimplemento – fato extintivo – ou, ainda por exemplo, exceção de contrato não cumprido – fato impeditivo -, a negação do fato pelo autor torna-o controverso e, assim, faz surgir uma questão de que depende o julgamento do pedido de pagamento das prestações pecuniárias.

5 Questão Discutida        

O art. 503 deixa claro que a coisa julgada apenas recai sobre questão na hipótese em que não ocorrer revelia, o contraditório for efetivo e o procedimento não contiver restrição quanto à produção de prova e à discussão de determinados temas.

Tudo isso tem relação com a circunstância de que a questão será considerada indiscutível num processo futuro, em que uma das partes poderá ser prejudicada em virtude da decisão já tomada [3]. Ora, é certo que uma decisão judicial apenas pode prejudicar aquele que teve ampla e completa oportunidade de influenciar o juiz, ou seja, de alegar, discutir, requerer prova, participar da sua produção e considerar sobre o seu resultado. Ninguém pode ser prejudicado por decisão tomada em processo de que não pôde participar em adequado contraditório. Trata-se de princípio basilar e ancestral que legitima o exercício do poder estatal no processo. A legitimidade do exercício do poder pelo juiz depende da efetiva possibilidade de participação daqueles que serão afetados pela decisão judicial [4].

O interessante é que, tratando-se de coisa julgada sobre questão, não basta a oportunização para o contraditório. Segundo o art. 503, § 1º, II, é preciso que tenha “havido contraditório prévio e efetivo“. Isso é assim em razão de a decisão ficar na dependência de a questão se tornar controvertida, além de poder prejudicar a uma das partes em processo futuro.

Não pode haver coisa julgada sobre questão quando há revelia simplesmente porque, nesse caso, a questão não se torna controvertida. Aliás, pelo mesmo motivo pode não haver coisa julgada em caso de não contestação, ou seja, quando há apresentação de contestação e o fato constitutivo – de que surgiria a questão prejudicial – não é contestado.

Porém, é preciso evitar enganos. A coisa julgada sobre questão não é excluída pelo simples fato de o procedimento restringir a prova ou a discussão de determinado tema. Antes de tudo é preciso esclarecer que a restrição da prova pode resultar em duas técnicas de cognição: sumária e exauriente secundum eventum probationis. A técnica da cognição sumária é típica às hipóteses em que se dá ao juiz poder para decidir mediante juízo de probabilidade, que dispensa as provas cujo tempo de produção é incompatível com a urgência que caracteriza a necessidade de tutela do direito. Ao contrário, a cognição exauriente não permite a postecipação da produção da prova. Porém, a técnica da cognição exauriente secundum eventum probationis é a que diz respeito às hipóteses em que, ao mesmo tempo em que se restringe a prova, não se permite ao juiz decidir o mérito quando a prova não é suficiente para elucidar o mérito. É a técnica de cognição aplicada aos casos em que a matéria de mérito não depende, para ser elucidada, de prova distinta da documental. Nesses casos, embora a prova seja restringida a determinada espécie – documental -, o juiz não se vê obrigado a decidir com base em probabilidade; o juiz tem a prova adequada para poder declarar a existência ou a inexistência do direito afirmado.

Tome-se em conta, por exemplo, o mandado se segurança. Nesse procedimento a afirmação de existência do direito deve ser provada desde logo, ou melhor, mediante prova documental anexa à petição inicial. Por sua vez, o réu também não pode produzir prova diversa da documental. Se o autor apenas pode se valer de documento e esse deve ser suficiente para provar o fato constitutivo do direito, a única forma de o réu se opor à alegação fática é através da negação da idoneidade do documento. Fora daí apenas poderá discutir a matéria de direito. Quando o direito afirmado no mandado de segurança exige outra prova além da documental, fica ao juiz impossível o exame do mérito. No caso oposto, quando apresentada prova documental da alegação – ou o chamado “direito líquido e certo” -, o juiz julgará o mérito e a sentença produzirá coisa julgada material. Assim, o mandado de segurança constitui um procedimento que tem o exame do mérito condicionado à existência de prova documental [5].

Portanto, é simplesmente impossível decidir questão prejudicial que dependa de prova diferente da documental no mandado de segurança. Mas isso está longe de significar que não se pode decidir questão prejudicial com força de coisa julgada no mandado de segurança. Basta que a questão prejudicial não exija qualquer prova ou dependa exclusivamente de prova documental. Nessa hipótese é obviamente possível decidir questão prejudicial sem qualquer restrição à adequada cognição judicial, ainda que o procedimento restrinja a produção probatória.

Contudo, ao se pensar – em tese – em tutela final baseada em cognição sumária – e não em juízo de cognição exauriente secundum eventum probationis -, obviamente não há como ter coisa julgada sobre questão caso essa igualmente exija – assim como acontece com o próprio pedido – provas que não estão no processo.

Algo diferente acontece quando se pensa em cognição parcial. Quando o procedimento limita a matéria de defesa, reservando determinados pontos litigiosos para outra demanda, há uma limitação do conflito de interesses (ou da lide, para quem identifica conflito de interesses com lide) e, assim, a construção de um procedimento de “lide parcial” (compreendida, por óbvio, no sentido carneluttiano) [6]. O procedimento de lide parcial é um procedimento que limita a cognição do juiz sobre a “lide total“, podendo ser dito, assim, procedimento de cognição parcial. Perceba-se que nesses casos não há restrição à produção de prova: a cognição não é exauriente secundum eventum probationis nem sumária; é, isto sim, cognição exauriente (no sentido vertical) e parcial (no sentido horizontal) [7].

Se um procedimento pode restringir o direito de discutir determinada porção da “lide total” para dar efetividade à tutela do direito material, o direito não terá sido violado desde que a parte possa invocar a questão subtraída por meio de ação inversa posterior. Embora seja plenamente possível impedir a alegação em um procedimento diferenciado – de cognição parcial -, não é possível proibir a alegação e, consequente, a prova perante o Poder Judiciário.

Considere-se, por exemplo, o procedimento da desapropriação, precisamente a regra que afirma que “a contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta” (art. 20 do Decreto-Lei nº 3.365/1941). Essa regra define os limites da defesa na ação de desapropriação, mas obviamente não exclui a possibilidade da discussão da questão restringida através de outra ação. Por isso mesmo o art. 20, em sua parte final, apressa-se em esclarecer que o réu poderá discutir “qualquer outra questão” por meio de ação própria. O objetivo da regra é definir a defesa que pode ser apresentada na ação de desapropriação, e não eliminar a possibilidade de o desapropriado discutir questões que poderiam impedir a desapropriação. De outro modo estaria sendo violado o princípio da inafastabilidade.

Como está claro, a lei, ao dar os contornos de um procedimento de cognição parcial, pode impedir a parte de alegar determinada questão, mas certamente não pode eliminar o seu direito de discuti-la em juízo. A simples restrição do direito à alegação não pode ser dita inconstitucional. A violação ao núcleo essencial do direito de ação ou do direito de defesa somente se dará se a lei impedir a parte de invocar a alegação excluída perante o Poder Judiciário.

Quando se fala em procedimento de cognição parcial, em que a discussão de determinada questão é proibida, o problema não é de restrição de prova ou ao contraditório, mas de deslocamento da discussão da questão para ação inversa e procedimento posterior. Assim, quando determinada alegação excluída da apreciação pela lei é invocada pela parte e considerada de passagem pelo juiz, sobre ela simplesmente não há como se formar coisa julgada. Não pelo fato de ela não ter sido discutida ou decidida; mas precisamente porque não podia ser objeto de discussão, cognição e decisão em virtude da lei que instituiu o procedimento.

Na verdade, a exclusão da coisa julgada em todas essas hipóteses quer dizer não só que a decisão resta na dependência de a questão ter sido controvertida, mas também que apenas uma discussão plena e adequada pode impedir a parte prejudicada de discuti-la em processo em que voltar a aparecer. De modo que o problema vai além.

Mesmo que um fato tenha sido contestado, isso não significa que a parte tenha discutido de modo pleno e adequado a questão. Aqui a lógica não é a mesma da formação da coisa julgada sobre o pedido. Não importa apenas saber se a parte teve oportunidade de adequadamente discutir. Caso a parte não tenha, por exemplo, requerido a produção de prova pericial capaz de alterar o resultado da decisão da questão, poderá pleiteá-la em processo futuro em que a questão novamente surgir.

Suponha-se a hipótese de ação de ressarcimento em que restou estabelecida a culpa do demandado pelo dano invocado, julgando-se procedente o pedido. Mais tarde, o mesmo autor pode propor ação contra o mesmo réu, afirmando exatamente o mesmo fato e a culpa já reconhecidos na ação anterior, mas invocando dano substancialmente maior para realizar pedido ressarcitório. Numa situação como essa, caso o demandado possa requerer a produção de prova que, não produzida anteriormente, pode absolvê-lo de culpa, não há como invocar coisa julgada sobre questão para obstar a sua rediscussão. Ao aceitar-se que a produção da prova pode alterar – em tese, obviamente – a decisão anterior, admite-se igualmente que a questão não foi adequadamente discutida no primeiro processo. Há também coisa julgada secundum eventum probationis. Não há coisa julgada a impedir a rediscussão da questão com base em outra prova, quando esta prova – capaz de alterar a decisão – não foi considerada pelo juiz do processo anterior.

Perceba-se que a coisa julgada sobre questão, nesse aspecto, tem natureza semelhante à da coisa julgada erga omnes ou ultra partes das ações coletivas (art. 103, I e II, do CDC), em que o pedido “julgado improcedente por insuficiência de provas” não impede que “qualquer legitimado” possa “intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova“. A óbvia diferença é a de que, aqui, não se trata de ação com base em outra prova, mas de rediscussão da mesma questão com base em outra prova. Na realidade, quando o CDC fala em “outra” ação, está a se referir exatamente à mesma ação, porém a partir de nova ou outra prova.

Varia a razão pela qual se permite a rediscussão com base em outra prova, isto é, em prova que já poderia ter sido produzida mas não foi. Tratando-se de tutela de direitos difusos e coletivos, isso ocorre em virtude de o legitimado à ação coletiva ser visto como alguém que pode não tutelar de forma adequada os direitos. No caso de decisão sobre questão, parte-se da premissa de que esta, por estar sempre relacionada a um pedido, pode levar a parte a vê-la de modo diverso conforme a importância e o significado do pedido. Portanto, uma mesma questão, diante de pedidos diferentes, pode despertar na parte receios, cuidados e atitudes diversos.

Quando o réu se depara com afirmação da sua responsabilidade por dano ínfimo, é claro que a sua preocupação em face da declaração da sua culpa será compatível com o eventual prejuízo que poderá sofrer em virtude da procedência do pedido. No direito estadunidense, a limitação dos efeitos preclusivos do collateral estoppel tem relação direta com a possibilidade de a questão poder assumir configuração distinta em ação futura. Lembra-se claramente como hipótese a situação em que a demanda tem valor econômico destituído de significação, de modo que a parte poderia não ver razão para discutir intensamente a questão [8]. Deixa-se ver que a rigidez da preclusão da rediscussão da questão deve ser abrandada pela circunstância de que a parte sempre considera a questão diante do caso específico, e nunca em face de casos futuros [9].

Contudo, muito mais clara é a inexistência de coisa julgada quando o fato é discutido de passagem pelas partes, em meio a outras alegações e sem qualquer produção de provas. Isso, como é evidente, não se aplica às questões apenas de direito, ou melhor, às questões que não dependem do esclarecimento de fatos.

6 Questão de Direito que Independe de Prova       

No common law, a proibição de relitigar questão inicialmente ficou limitada às questões de fato. Porém, uma vez percebida a artificialidade da distinção entre questão de fato e questão de direito [10], as Cortes, inclusive a Suprema Corte dos Estados Unidos, passaram a decidir que o collateral estoppel também se aplica às issues of law [11]. E não apenas às questões de direito que envolvem fatos que necessitam ser provados, mas também às questões de direito que independem de prova.

Não há motivo para não admitir coisa julgada sobre questão de direito que independe de prova, nem mesmo sobre questão de constitucionalidade. Se uma questão de direito é discutida e decidida, não há motivo para que possa novamente ser discutida e decidida em processo entre as mesmas partes, tão somente em razão de a nova ação conter outro pedido ou causa de pedir mais abrangente. Não pode haver diferença, quando se pensa em coisa julgada sobre questão, entre questão que reclama produção de prova e questão que não a exige.

Lembre-se que, mesmo nessa última hipótese, a coisa julgada sobre questão ainda fica muito distante da eficácia obrigatória dos precedentes. No primeiro caso profere-se decisão entre as partes e para as partes, de modo que a questão não pode mais ser discutida e decidida para as mesmas partes, enquanto que o precedente vincula todos os juízes e afeta todos os jurisdicionados, não importando quem tenha participado do processo.

Do mesmo modo, a decisão sobre questão constitucional, ao dizer respeito apenas às partes que a discutiram, nem de longe contradiz o sistema de controle principal de constitucionalidade. Na verdade, se as partes discutiram questão constitucional e essa foi expressamente decidida pelo juiz, não há racionalidade em permitir que a mesma questão seja rediscutida pelas mesmas partes apenas pelo fato de o pedido ser diferente.

7 Questão Decidida         

A proibição de relitigação da questão, além de depender de “contraditório prévio e efetivo“, exige que tenha sido “decidida expressa e incidentemente no processo” (art. 503, § 1º, do CPC). É interessante que essa previsão também possui claro parentesco com o Restatement (Second) of Judgments, que não apenas exige que a questão tenha sido actually litigated, como também requer que a questão tenha sido efetivamente decidida. A exigência de que a questão tenha sido “efetivamente decidida“, quando pensada em face do referido Restatement, recomenda lembrar que nos Estados Unidos as decisões de primeiro grau nem sempre são justificadas e as decisões das Cortes de Apelação federais e estaduais muitas vezes se limitam ao tradicional affirmed ou reversed, deixando de explicar as razões pelas quais a decisão impugnada é mantida ou reformada [12].

Frise-se que a lógica da coisa julgada sobre questão está em negar a rediscussão de questão decidida, mas que foi efetivamente discutida [13]. De nada adianta a questão ser decidida se não houve discussão efetiva das partes a seu respeito, seja em virtude do procedimento utilizado, seja em razão de a própria parte não ter requerido a produção de prova apta ao esclarecimento dos fatos.

Porém, o art. 503 também exige que a questão seja decidida de forma expressa e incidentemente no processo. É claro que a questão não precisa ser decidida mediante ato jurisdicional autônomo nem mesmo antes da sentença que julga o pedido. A questão pode ser decidida no curso da fundamentação da sentença que julga o pedido procedente ou improcedente.

Importa, porém, que a questão não seja apenas considerada de passagem pelo juiz; a questão tem que ser claramente solucionada em um sentido ou outro e, para tanto, deve contar com fundamentação capaz de explicar a opção judicial. Não se trata de uma exigência para a adequada fundamentação da sentença, mas de algo indispensável para que a questão possa ser dita decidida incidentemente no processo.

8 Competência Absoluta           

O art. 503, III, afirma que a decisão da questão prejudicial só produzirá coisa julgada quando “o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal“. Trata-se de competência absoluta, nos termos do art. 62, que diz ser inderrogável pelas partes a competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função.

A previsão do inciso III do art. 503 não é mera consequência lógica da impossibilidade de o juiz absolutamente incompetente decidir o próprio pedido. É, isto sim, clara advertência de que o juízo competente para decidir o pedido pode não ter competência em razão da matéria – por exemplo – para decidir a questão. Se em ação de ressarcimento proposta por A perante a Justiça Federal em face de B e da União Federal surge uma questão prejudicial que diz respeito apenas à relação entre A e B, o juiz poderá decidi-la, mas a decisão da questão não terá aptidão para gerar coisa julgada. A situação é semelhante àquela que ocorria diante da ação declaratória incidental, à época do Código de Processo Civil de 1973. O juízo federal não podia decidir ação declaratória incidental que exsurgia a partir de questão prejudicial que dizia respeito a dois particulares. De igual modo, em processo acerca da posse de coisa que envolva herdeiros e alguém que se afirma herdeiro, eventual questão prejudicial que se forme sobre a qualidade de filho não abre oportunidade para decisão com autoridade de coisa julgada.

É importante perceber, no entanto, que a decisão de questão proferida por juízo absolutamente incompetente não precisa ser rescindida para deixar de ter autoridade capaz de obstar nova decisão em outro processo. O art. 503 afirma que há coisa julgada sobre questão se e quando o juízo tiver competência absoluta para decidir a questão prejudicial como principal. Significa dizer que, diante de processo em que a mesma questão apareça, a parte prejudicada poderá simplesmente alegar que a decisão foi proferida por juiz absolutamente incompetente para não sofrer a impossibilidade da sua rediscussão.

9 Coisa Julgada em Favor de Terceiros: Fundamento    

Tendo em vista que a decisão de questão pode se tornar indiscutível e imutável para as partes, é oportuno indagar se a resolução de questão pode afetar terceiros que não participaram do processo, mas cujos direitos dependem da solução da mesma questão.

Obviamente não se está a pensar na possibilidade de terceiro ser beneficiado por decisão relativa a uma questão similar ou que surge de uma situação concreta que não lhe diz respeito. Fala-se de questão idêntica, ou melhor, da solução da questão que diz respeito exatamente ao conflito concreto em que o terceiro está inserido. Portanto, está a se considerar a própria questão que o terceiro tem legitimidade para discutir em juízo para obter tutela do direito.

Muito mais do que as relações substanciais unitárias, importam aqui as hipóteses de múltiplos danos, inadimplementos ou violações, em que pessoas situadas numa mesma posição diante de um mesmo caso conflitivo concreto podem pedir tutela dos seus direitos ou litigar de forma individualizada em face de um único adversário.

Para exemplificar, é possível considerar o acidente de um ônibus com dezenas de passageiros. Tendo sido proposta ação por um grupo de três em face do proprietário do veículo que causou o acidente, o julgamento de procedência do pedido de indenização obviamente não pode beneficiar os demais acidentados ou mesmo as famílias de eventuais mortos. Contudo, a controvérsia que se formou a respeito da culpa, ao dar origem a uma questão adequadamente discutida e expressamente decidida, evidentemente é do interesse dos demais acidentados. Isso porque essa questão decidida nada mais é do que a questão de que depende a tutela dos direitos dos acidentados que não participaram do processo.

De modo que o problema que surge, bem vistas as coisas, é somente o de se é racional admitir a rediscussão de questão já decidida apenas por terem sido alteradas as partes do processo, ou melhor, apenas pelo vencido estar agora litigando com parte que, apesar de estar envolvida no conflito concreto, não participou do processo em que a questão prejudicial à tutela do seu direito foi resolvida.

Essa colocação, apesar de contradizer a tradição do direito processual de civil law, tem sustentação na lógica que deve presidir a prestação jurisdicional, na otimização do serviço judiciário, na autoridade das decisões judiciais, na coerência do direito, na segurança jurídica e nos direitos fundamentais processuais. Enfim, não há argumento razoável que possa a ela se opor.

Lembre-se que Bentham, nas primeiras décadas dos 800, fez advertência similar ao dizer que, se há razão para dizer que um homem não deve perder a sua causa em consequência de uma decisão dada em anterior processo de que não foi parte, não há qualquer razão para dizer que ele não deve perder a sua causa em consequência de uma decisão proferida em um processo em que foi parte simplesmente porque o seu adversário não foi [14]. A frase de Bentham é ainda hoje utilizada na Suprema Corte dos Estados Unidos em casos em que se discute a possibilidade de terceiro invocar a proibição de a parte relitigar questão já decidida – non-mutual collateral estoppel. Em Parklane v. Shore – decidido em 1979 -, o Justice White lembrou Bentham e advertiu que a admissão da discussão da mesma questão, apenas em razão de o adversário ser outro, traz péssimas consequências em termos econômicos, seja para as partes envolvidas, seja para a administração da justiça [15].

Da conjugação dos arts. 503 e 506 do Código de Processo extrai-se que a coisa julgada sobre questão pode beneficiar terceiros. Perceba-se que o art. 506 do Código atual afirma que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros“, enquanto que o art. 472 do Código de 1973 dizia que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros“. Ora, não se trata apenas de um silêncio do legislador, mas da clara exclusão da cláusula “não beneficiando“, ou seja, da prática de ato que evidencia a intenção nítida e indiscutível do legislador de permitir que a coisa julgada beneficie terceiros.

10 A Coisa Julgada sobre Questão Pode Beneficiar Terceiro, mas Jamais Prejudicá-lo  

Esclareça-se que a decisão a respeito de questão que também é de terceiro somente pode beneficiá-lo, nunca prejudicá-lo. Trata-se de obviedade quando considerado que ninguém pode ser prejudicado por decisão tomada em processo de que não pôde participar e que todos têm direito fundamental de influenciar o convencimento do juiz.

Frise-se que o collateral estoppel foi inicialmente concebido enquanto proibição das partes do processo em que proferida a decisão voltarem a discuti-la em processo posterior. Só mais tarde é que se admitiu que terceiro poderia invocar a proibição de rediscussão de decisão proferida em processo alheio em seu benefício. Esse modo de ver o collateral estoppel foi qualificado de non-mutual collateral estoppel.

O caso Bernhard v. Bank of America National Trust and Savings Association deu origem à primeira decisão de uma Corte estadunidense admitindo o non-mutual collateral estoppel [16]. Ao julgar esse caso no início dos anos 40 do século passado, a Suprema Corte da Califórnia decidiu que o estranho ao processo em que decidida a questão também pode invocar proibição de relitigar questão já decidida contra aquele que já a discutiu [17]. A Suprema Corte dos Estados Unidos tratou pela primeira vez do tema em 1971, ao julgar Blonder-Tongue Laboratories Inc. v. University of Illinois Foundation. Nesse caso, a University of Illinois Foundation voltou a alegar violação da sua patente, que, entretanto, já havia sido declarada inválida em processo anterior. Depois de alertar para as consequências econômicas da abertura à relitigação da validade da patente, a Suprema Corte revogou parcialmente o precedente firmado em Triplett v. Lowell e declarou que a mutualidade do collateral estoppel estava out of place [18].

Porém, em ambos os casos foram firmados claros requisitos para admissão da dispensa da mutualidade do collateral estoppel. Afirmou-se que o terceiro só poderia invocar a proibição de relitigação quando a questão fosse idêntica (the issue is identical), ocorresse julgamento final do mérito (a final judgments on the merits) e aquele a quem se pretende proibir a rediscussão tivesse não apenas sido parte no processo em que proferida a decisão, mas houvesse tido full and fair opportunity de participação [19].

A ideia de full and fair opportunity de participação tem relação com o pressuposto da adequada discussão da questão, posta no art. 503 do Código de Processo Civil. A parte que pode ser prejudicada em processo futuro, especialmente diante de terceiro que não participou do processo em que proferida a decisão, não pode ser proibida de relitigar quando deixou de discutir adequadamente a questão.

11 A Questão Deve Ser a Mesma e Deve Estar Inserida no Conflito entre as Partes e os Terceiros            

É evidente que a coisa julgada só pode obstaculizar a discussão da mesma questão, isto é, da questão decidida no processo anterior. Além disso, a questão deve ser porção do conflito de interesses entre a parte vencida, de um lado, e a parte vencedora e os terceiros, de outro. Vale dizer, a questão decidida, para ser invocada por terceiro, deve ser uma questão de titularidade do terceiro, que, caso não houvesse sido decidida, teria que ser discutida em ação posterior enquanto prejudicial para a tutela do seu direito.

Quer isso dizer que a coisa julgada em benefício de terceiros não pode ser confundida com o efeito obrigatório dos precedentes das Cortes Supremas. Os precedentes obviamente não têm qualquer relação com terceiros nem com partes. Apenas orientam os jurisdicionados e vinculam os juízes dos casos futuros, sem que precisem ter sido discutidos pelas partes dos novos processos, mesmo quando as prejudicam.

Não é por outro motivo que quando um precedente é invocado a parte que pode ser prejudicada tem a possibilidade de argumentar mediante a técnica da distinção, demonstrando que o caso sob julgamento, em vista de suas particularidades, não tem motivo para ser resolvido mediante a aplicação do precedente. Quando se pensa em precedente, em outras palavras, sempre se supõe que a questão não é igual ou idêntica e, especialmente, que a questão não está inserida num conflito de interesses de que fazem parte os litigantes do primeiro e do segundo processos. A cogitação sobre precedente faz supor apenas uma questão similar, resolvida entre partes que nada têm a ver com as partes do caso sob julgamento, ao passo que a coisa julgada sobre questão exige questão idêntica à decidida, pertencente às partes do novo processo ou ao conflito de interesses em que estas estão inseridas.

12 Ato que Provoca Múltiplos Danos ou Prejuízos                                   

Um dos casos em que a coisa julgada em favor de terceiros mostra-se mais relevante é aquele em que alguém pratica ato de que derivam múltiplos fatos danosos. Pense-se num acidente de grandes proporções, que gerou danos a inúmeras pessoas. Assim, por exemplo, no derrame de material químico em uma região litorânea, que ocasionou danos a centenas de pescadores e a dezenas de restaurantes e hotéis. Num caso como esse, em que são produzidos fatos danosos de diferentes proporções, o nexo causal constitui um árduo pressuposto a ser ultrapassado para a definição da responsabilidade pelo dano.

Suponha-se, assim, que foram julgadas improcedentes duas demandas propostas por dois grupos de pescadores. Na terceira demanda, demonstra-se que o demandado pratica atividade que certamente produz os detritos químicos encontrados no meio ambiente e o juiz, a partir da valoração da prova e de juízo sobre o direito, declara o nexo causal e a responsabilidade da empresa demandada, condenando-a ao pagamento de ressarcimento pelo dano causado.

Se a questão respeitante à responsabilidade do dano foi adequadamente discutida pela empresa, há coisa julgada sobre a questão da responsabilidade pelo dano. Assim, numa próxima ação, proposta por outro grupo de pescadores, estará proibida a rediscussão da questão da responsabilidade, devendo ser discutida e determinada apenas a extensão do dano e o seu valor pecuniário equivalente.

Note-se, contudo, que o eventual reconhecimento da falta de responsabilidade do demandado, enquanto solução da questão prejudicial a seu favor, jamais poderá obstaculizar a rediscussão da questão da responsabilidade em ação proposta por outro grupo de pescadores. É que estes não participaram do processo em que proferida a decisão em favor da empresa. Frise-se que a decisão da questão prejudicial só pode beneficiar terceiros, jamais prejudicá-los.

O mesmo ocorre no caso de ato contrário ao direito que exige tributo ou sua majoração. A afirmação de que um tributo está sendo inconstitucionalmente cobrado, ao ser negada, faz surgir questão prejudicial. A discussão e a decisão dessa questão em processo de um ou de um grupo produz coisa julgada, que, assim, pode ser invocada por terceiro em processo futuro. Nessa hipótese, ao contrário do que ocorre no caso dos danos múltiplos ocasionados pelo derrame de material químico, não há um único ato que atinge a todos, mas atos particulares balizados numa premissa comum, que nada mais é do que o ato que afirma a exigibilidade do tributo. Contudo, isso não quer dizer que a questão decidida no processo de um contribuinte não seja exatamente a mesma que importa a outro contribuinte para obter tutela do seu direito.

Similar a esta última é a situação dos danos acarretados a vários consumidores em virtude da venda de produtos com “defeito” – como, por exemplo, “defeito de concepção[20]. De acordo com o art. 12 do CDC, “o fabricante, o produtor, [21]o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos“. Fala-se nesses casos em danos oriundos de “acidentes de consumo” .

Numa situação como esta, não obstante as aquisições sejam individualizadas, os produtos contêm um mesmo defeito, que está na projeção do produto. Assim, se um consumidor propõe ação contra o produtor – por exemplo -, alegando defeito na concepção do produto e pedindo indenização pelo dano provocado quando da sua utilização, a negação do defeito e da consequente responsabilidade faz surgir questão prejudicial ao julgamento do pedido de indenização. A decisão da questão prejudicial no sentido de que há “defeito de concepção” e, por isso, responsabilidade pelo dano produz coisa julgada que pode ser aproveitada pelos demais consumidores que sofreram danos em virtude da utilização do mesmo produto dotado de “defeito de concepção“.

13 Discussão do Preenchimento dos Requisitos Formais para a Formação da Coisa Julgada sobre Questão       

Embora caiba ação rescisória para rescindir a coisa julgada sobre questão, isso não quer dizer que a parte não possa negar a formação da coisa julgada sobre a questão no processo em que essa for invocada em seu prejuízo.

O art. 503 deixa muito claro que a coisa julgada sobre questão depende do preenchimento de determinados requisitos, sem os quais não há coisa julgada. Assim, não há coisa julgada quando há i) revelia; ii) restrição à prova; iii) restrição à cognição de porções do conflito que impeçam o exame adequado da questão; iv) não produção de prova capaz de alterar a decisão sobre a questão; e v) incompetência absoluta. Qualquer uma dessas hipóteses impede a formação de coisa julgada e, assim, exclui a proibição de relitigação da questão.

A parte pode contestar a formação da coisa julgada em processo em que está litigando com o adversário que anteriormente enfrentou ou em processo em que está diante de terceiro que invoca a coisa julgada em seu benefício.

[1] TARUFFO, Michele. “Collateral estoppel” e giudicato sulle questioni. Rivista di Diritto Processuale, 1972, p. 275 e ss; VOLPINO, Diego. L’oggetto del giudicato nell’esperienza americana, cit., p. 291 e ss.

[2] “Prima di procedere oltre in questa illustrazione volutamente schematica degli atti introduttivi del giudizio dell’attore e del convenuto, è opportuno sin d’ora accenare alla possibilità che i fatti (costitutivi, impeditivi, modificativi ed estintivi) rilevanti ai fini del diritto fatto valere siano o meri fatti o fatti-diritti. Per meri fatti si intendono quei fatti che rilevano unicamente come fatti costitutivi modificativi ecc. del diritto fatto valere in giudizio: es. colpa nella responsabilità extracontrattuale, prescrizione, adempimento; per fatti-diritti si intendono invece quei fatti che, oltre ad avere rilievo di fatti costitutivi, impeditivi ecc. ai fini del diritto fatto valere in giudizio dall’attore sono a loro volta l’effetto di uma autonoma fattispecie, così che potrebbero anche essi costituire oggetto di uma autonoma domanda: es. qualità di proprietário del convenuto ai fini del diritto al risarcimento dei danni ex art. 2054 terzo comma c.c., qualità di erede dell’attore (o del convenuto) ai fini del credito (o del debito) del de cuis, qualità di proprietario ai fini del diritto al risarcimento dei danni causati al bene dell’attore, rapporto di parentela ai fini del diritto agli alimenti, novazione quale fatto estintivo del credito fatto valere ecc.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 2002. p. 58)

[3] Como reconhecem pacificamente as cortes estadunidenses, “the doctrine of collateral estoppel will not be applied unless it appears that the party against whom the estoppel is asserted had a full and fair opportunity to litigate the issue in the prior proceeding (…)” (Rachal v. Hill, 435 F2d 59, 5th Cir., 1970).

[4] Ao contrário do que acontece no processo legislativo, em que o ato de positivação de poder – a lei – é fruto da participação de membros eleitos, significando participação indireta, e do que ocorre diante das formas de participação direta – referendo popular, plebiscito, iniciativa popular, ação popular, etc. -, o exercício do poder, no processo jurisdicional, não depende da técnica representativa e não se assenta nos fundamentos da democracia participativa, ou melhor, nas ideias voltadas a permitir a participação direta do cidadão no poder. Não há dúvida de que o juiz profere atos de positivação de poder. As suas decisões – e não se fala aqui apenas da sentença – podem ser impostas, já que o poder jurisdicional é inevitável, pouco importando a vontade do particular, que não pode se subtrair ao poder do juiz. Mas o juiz, como se sabe, não é eleito. E a participação da parte no processo jurisdicional não deriva do fato de que ela está aí preocupada em participar diretamente do poder. Isso acontece quando o cidadão propõe a ação popular, já que esta lhe confere o poder de pedir a correção dos atos que ferem a coisa pública, mas não quando alguém participa do processo como litigante, ou mais especificamente como parte. Quem toma parte em um litígio certamente será atingido pelos efeitos das decisões proferidas no processo. E, mais especificamente, pela coisa julgada material – qualidade que confere imutabilidade e estabilidade à decisão, a qual se torna sujeita apenas à ação rescisória (art. 966 do CPC), que permite a desconstituição da coisa julgada em hipóteses excepcionais, como a de corrupção do juiz. No processo jurisdicional, o exercício do poder deve prestar contas aos litigantes, isto é, àqueles que são atingidos pela coisa julgada material e por todas as decisões proferidas pelo juiz. Embora a sua base esteja no princípio político da participação, entende-se que o mecanismo técnico jurídico capaz de expressar o direito de alguém participar de um processo que o afeta em sua esfera jurídica é o do contraditório, presente na Constituição Federal na qualidade de direito fundamental (art. 5º, LV).

[5] Por não admitir a produção de prova diferente da documental – e assim não se expor ao tempo necessário à produção das provas testemunhal e pericial -, o mandado de segurança permite que o mérito seja definido de modo mais célere. Mas a técnica da cognição exauriente secundum eventum probationis, além de viabilizar o julgamento do mérito de forma mais tempestiva, não elimina a possibilidade de o jurisdicionado, que lançou mão do mandado de segurança, mas necessitava de outras provas além da documental, recorrer ao procedimento comum. Lembre-se que, nos termos da Súmula nº 304/STF, a “decisão denegatória de mandado de segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetrante, não impede o uso da ação própria”. A súmula quer dizer que, em caso de denegação do mandado de segurança por ausência de direito líquido e certo – falta de prova documental -, não há declaração de que o direito subjetivo material não existe.

[6] É certo que os conceitos carneluttianos de “lide total” e “lide parcial” não têm pertinência no processo, já que o conflito de interesses, no domínio do processo, sempre é uma “lide total”. Tais conceitos, porém, são valiosos para quem pretende observar a efetiva relação do processo com o direito material e, em particular, como o processo limita o tratamento de determinados conflitos de interesses. O emprego desses conceitos, como é evidente, supõe uma visão do processo a partir do plano do direito material.

[7] Um procedimento, quando deseja abarcar toda e qualquer situação conflitiva, possui cognição plena (no sentido horizontal) e cognição exauriente (no sentido vertical). Dessa forma, o procedimento não limita o conflito de interesses ou não exclui a possibilidade da alegação de determinadas questões por parte do réu (cognição parcial), como também não viabiliza, em razão da urgência, o encerramento do procedimento com uma sentença baseada na denominada “fumaça do bom direito” (cognição sumária).

[8] “Issue preclusion is sometimes unfair if party to be bound lacked an incentive to litigate in first trial, especially in comparison to stakes of second trial.” (Peavey v. United States, United States District Court, District of Columbia, August 26, 2015, F.Supp.3d, 2015 WL 5063164)

[9] Em Otherson v. Department of Justice, I.N.S., declarou-se que “preclusion in second trial must not work an unfairness” (Otherson v. Department of Justice, I.N.S., United States Court of Appeals, District of Columbia Circuit, June 21, 1983, 711 F.2d 267, 228 U.S.App.D.C. 481). No mesmo sentido Yamaha Corp. of America v. United States, United States Court of Appeals, District of Columbia Circuit, April 14, 1992, 961 F.2d 245.

[10] ALLEN, Ronald J.; PARDO, Michael S. The myth of the law-fact distinction. Northwestern University Law Review, 2003.

[11] Como disse Austin Scott, “the doctrine of collateral estoppel is applicable not merely to questions of fact but also to questions of law” (Collateral estoppel by judgment. Harvard Law Review, 1942, p. 3 e ss); V. HAZARD Jr., Geoffrey. Preclusion as to issues of law: the legal system’s interest. Iowa Law Review, 1984, p. 81 e ss.

[12] VOLPINO, Diego. L’oggetto del giudicato nell’esperienza americana, cit., p. 340 e ss.

[13] “A prior state court proceeding cannot bar federal court’s consideration of matters which were not actually litigated and determined in prior proceeding.” (Winters v. Levine, United States Court of Appeals, Second Circuit. January 16, 1978)

[14] BENTHAM, Jeremy. Rationale of judicial evidence. London: Hunt and Clarke, 1827. p. 579.

[15] O Justice White, ao justificar a sua opinion em Parklane – que nega a limitação do collateral estoppel às partes litigantes -, alude ao argumento de Bentham: “The cases and authorities discussed above connect erosion of the mutuality requirement to the goal of limiting the relitigation of issues where that can be achieved without compromising fairness in particular cases (…). The broader questions is whether it is any longer tenable to afford a litigant more than one full and fair opportunity for judicial resolution of the same issue (…). It encompasses the concern exemplified by Bentham’s reference to the gaming table in his attack on the principle of mutuality of estoppel. In any lawsuit where a defendant, because if the mutuality principle, is forced to present a complete defense on the merits to a claim which the plaintiff has fully litigated and lost in a prior action, there is and arguable misallocation of resources” (Parklane v. Shore, 439 U.S. 322, 1979).

[16] Bernhard v. Bank of America Nat. Trust & Saving Association, Supreme Court of California, 19 Cal2d 807, 122 P2d 892, 1942.

[17] Argumentou a Suprema Corte da Califórnia que “the case justify this exception on the ground that it would be unjust to permit one who has had his day in court to reopen identical issues by merely switching adversaries” (Bernhard v. Bank of America Nat. Trust & Saving Association, Supreme Court of California, 19 Cal2d 807, 122 P2d 892, 1942).

[18] Blonder-Tongue v. University of Illinois Foundation, 402 U.S. 313, 1971.

[19] “The Supreme Court, Mr. Justice White, held that in patent infringement suit, patentee is estopped to assert validity of patent that has been declared invalid in prior suit in federal court against a different defendant, unless patentee demonstrates that he did not have full and fair opportunity, procedurally, substantively, and evidentially, to litigate the validity of his patent in the prior suit.” (Blonder-Tongue v. University of Illinois Foundation, 402 U.S. 313, 1971)

[20] Há quem fale, na mesma hipótese, em “defeito de construção”: “os defeitos de projeção ou construção derivam de um erro na projeção, de uma escolha inadequada de materiais, ou, ainda, de uma técnica de fabricação. O produto é defeituoso porque ilegitimamente inseguro na sua concepção ou idealização” (ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000. p. 102). Porém, como diz João Calvão da Silva, “defeito de concepção” constitui terminologia mais impressiva e sugestiva, “visto que, tal como design defects, nos coloca imediatamente na fase da concepção, idealização ou projeto do produto, diferentemente da terminologia alemã Konstruktionsfehler, que se presta a equívocos, pois inculca a ideia de erros cometidos na fase de fabrico propriamente dito a que os autores americanos apelidam, justamente, de defeitos in construction” (Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Almedina, 1999. p. 657).

[21] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 5. ed. São Paulo: RT, 2012. Parte II, capítulo 1, item 1.4.4 e capítulo 3, item 3.15.