COISA JULGADA E O EFEITO EXTENSIVO DO RECURSO
Gelson Amaro de Souza
SUMÁRIO: Introdução. 1 Efeito Extensivo. 2 Espécies de Efeito Extensivo; 2.1 Efeito Extensivo Subjetivo; 2.2 Efeito Extensivo Objetivo. 3 Momento em que Surge o Efeito Extensivo. 4 Efeito Extensivo e o Recurso de Terceiro Interessado. 5 O Efeito Extensivo e o Recurso do Assistente. 6 Coisa Julgada e o Efeito Extensivo. 7 Incompatibilidade entre a Coisa Julgada Fatiada e os Efeitos Extensivo e Translativo. Conclusão. Referências.
Introdução
A questão sobre coisa julgada é uma das mais intrigantes nos meios jurídicos. As opiniões variam. Alguns proclamam a possibilidade de coisa julgada por parte do julgado, enquanto outros sustentam que não pode haver coisa julgada de julgamento fatiado. Isto é, ou o julgado é atingido pela coisa julgada por seu todo ou então não se tem a coisa julgada. Inadmite-se a coisa julgada apenas para uma ou algumas pessoas participantes da ação, bem como não admite a coisa julgada por parte do julgado[1].
Todavia, uma análise conjunta entre a coisa julgada e o efeito extensivo, também chamado de expansivo ou ampliativo, vai contribuir muito para a compreensão da coisa julgada. Aqueles que pregam a possibilidade de coisa julgada por parte afastam, despercebidamente, a possibilidade de aplicação dos efeitos extensivo e translativo aos recursos. O efeito expansivo permite que o recurso de uma das partes beneficie a outra que não recorreu, e o efeito translativo permite ao órgão recursal julgar questões de ordem pública ou de direito indisponível não aventadas pelas partes. Acaso houvesse coisa julgada por parte (parcial), aquilo que não fora objeto de recurso haveria de passar em julgado e, por isso, não poderia mais ser apreciado e julgado.
Havendo possibilidade de aplicação do efeito ampliativo ao recurso de quem recorreu para beneficiar quem não recorreu, fica evidenciada que mesmo a parte que não recorre não tem contra si a coisa julgada. Se a parte omissa em recorrer fosse atingida por coisa julgada, não haveria como ser beneficiada por futuro julgamento do recurso de outro recorrente. Disto resulta a grande importância do estudo da coisa julgada em conjunto com o efeito extensivo do recurso.
1 Efeito Extensivo
Entre os mais variados efeitos que o recurso pode produzir está o efeito extensivo, às vezes chamado de efeito expansivo e que também poderia ser chamado de efeito ampliativo, por ampliar o efeito do julgamento do recurso a quem não recorreu. Esta modalidade de efeito tem como marca principal o privilégio de diante do julgamento do recurso de uma parte alcançar outras questões não recorridas ou pessoas que não recorreram.
Sabe-se que de regra o recurso devolve ao tribunal somente as questões recorridas e só beneficia a quem recorreu em nome do princípio da devolutio quantum appelatio. No entanto, casos existem em que, por questão lógica e de justiça, impõe-se a necessária extensão dos efeitos do julgamento do recurso a quem não recorreu. Isto é, mesmo as pessoas que não recorreram podem se beneficiar com o julgamento do recurso interposto por outra parte.
Este efeito foi consagrado no direito processual brasileiro através do art. 509 do CPC, segundo o qual o recurso interposto por um dos litisconsortes a todos aproveita, salvo se distinto ou opostos os seus interesses. A redação deste artigo levou muitos autores a entenderem que ele só tem aplicação para os casos de litisconsórcio unitário[2]. Todavia, parece que não é bem assim. Pensa-se que esta norma tem aplicação para qualquer modalidade de litisconsórcio, seja ele simples ou unitário. Aliás, a norma do parágrafo único do mesmo artigo fala de sua aplicação para o caso de devedores solidários, que sabidamente não se trata de litisconsórcio unitário. Demonstrando, assim, a sua aplicação para os casos de litisconsórcio simples. A norma do art. 509 do CPC pode ser aplicada também nos casos de falta de condições da ação, falta de pressuposto processual e em caso de prescrição ou decadência, entre outros.
Por outra via, o recurso de uma parte pode estender os benefícios à parte adversária que não tenha recorrido. Imagina-se caso em que a parte vencedora parcialmente recorra para obter vitória total e o adversário não recorra. No julgamento, o tribunal entende que é caso de incompetência absoluta e anula todo o procedimento, incluindo-se a sentença. Neste caso, o efeito se estende à parte que não recorreu. Assim, também se dá nos casos de reconhecimento de falta de pressuposto processual, de condição da ação ou de prescrição em que se afasta a condenação eventual da parte que não recorreu.
2 Espécies de Efeito Extensivo
O efeito expansivo, extensivo ou ampliativo pode ser visto por dois ângulos diferentes, sendo um pelo aspecto subjetivo e outro pelo aspecto objetivo. O primeiro se refere às pessoas que podem ser beneficiadas pelo recurso de outrem e o segundo a quais as matérias que podem ser alcançadas pelo recurso interposto.
2.1 Efeito Extensivo Subjetivo
O efeito extensivo do recurso pode se dar no ponto de vista subjetivo, quando se refere às pessoas que serão alcançadas pelo resultado do julgamento do recurso, e sob o ponto de vista objetivo, que se relaciona à matéria ou questões que serão atingidas pelo julgamento recursal.
Esta modalidade se refere às pessoas (partes ou mesmo terceiros) que não recorreram, mas que são alcançadas pelo resultado do julgamento do recurso de outra pessoa. Diz-se que isto se dá quando o recurso interposto por uma parte, sendo o mesmo provido, aproveita-se à outra parte que não recorreu, em face da norma do art. 509 do CPC. Tal modalidade pode ser exemplificada com o caso de ação de cobrança proposta contra o devedor principal e o fiador, sendo julgada procedente, condenando-se ambos ao pagamento da dívida. Apenas um dos vencidos recorre alegando pagamento válido ou prescrição ou qualquer outra matéria que pode interessar aos dois. Acolhido o recurso para julgar a cobrança improcedente, por reconhecimento de pagamento, esse julgamento beneficia os dois. Beneficia aquele que recorreu, bem como aquele que não recorreu. O mesmo ocorre, por exemplo, nos casos de reconhecimento de prescrição, extinção do processo sem julgamento de mérito, por falta de condições da ação ou ausência de pressuposto processual. Estes casos permitem o julgamento a qualquer momento enquanto o processo existir, o que afasta a ideia de coisa julgada fatiada ou por capítulo.
Também não se pode limitar a aplicação da norma do art. 509 do CPC somente aos recursos de litisconsorte. O recurso de um terceiro interessado, quando provido, pode beneficiar a parte omissa. Até mesmo em relação ao recurso do adversário poderá, excepcionalmente, haver esta extensão para afastar a condenação da parte que não recorreu.
O terceiro juridicamente interessado (que não é parte e nem litisconsorte), quando recorrer do julgamento (art. 499 do CPC), sendo o seu recurso provido, o resultado por extensão vai aproveitar a parte que não recorreu. É o caso de ação de despejo proposta contra o locatário em que o sublocatário pode recorrer como terceiro interessado ou mesmo na qualidade de assistente, se houver atuado no feito. Se o recurso do sublocatário for acolhido para decretar a improcedência do pedido de despejo, mesmo não sendo caso de litisconsortes, o resultado do julgamento do recurso se estende ao locador, que se livra do despejo.
Pode parecer estranha a afirmação de que a extensão do efeito do recurso pode ter aplicação até mesmo para o caso de recurso do adversário. Parece ser possível. Imagine-se em caso de ação de cobrança em que autor que obtenha ganho parcial (ex: pedia dez, obteve cinco) recorra em busca de obter o total pedido. No julgamento do recurso resta reconhecida a prescrição (art. 219, § 5º, do CPC), falta de condição da ação ou pressuposto processual (art. 267, § 3º, do CPC), cominando com a extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267, VI, do CPC). Diante deste resultado haverá extensão beneficiando o réu que não recorreu, afastando a condenação imposta no julgamento anterior, apesar de ele não haver recorrido. Nesse caso, pode-se dizer que houve extensão reflexa do recurso de uma parte para beneficiar a outra que não recorreu.
2.2 Efeito Extensivo Objetivo
Sob o ponto de vista objetivo, leva-se em conta a matéria a ser atingida, mesmo sem ser objeto do recurso. Exemplo: o réu que é condenado a pagar ao autor certa quantia acrescida de juros e correção monetária, com base de cálculo e percentuais fixados na sentença. O réu recorre só da condenação, alegando pagamento da dívida, sem recorrer a respeito da fixação de juros e correção monetária. Acolhido o recurso com o reconhecimento do pagamento, desaparece a condenação em juros e correção monetária. É a chamada extensão objetiva interna. É também caso de extensão objetiva interna quando o réu é condenado por ato ilícito a pagar indenização por danos morais e danos materiais, e recorre apenas em relação aos danos morais, mas o recurso é acolhido reconhecendo a inexistência do ato ilícito ou a ilicitude do ato, julgando por completa improcedência dos pedidos. Assim, o provimento do recurso para julgar a improcedência dos pedidos, além de excluir os danos morais, estende-se internamente para afastar também a condenação por danos materiais.
Pode ocorrer também a extensão objetiva externa, quando a decisão do recurso atinge outro procedimento. Aproveitando-se o mesmo exemplo acima, imagine-se que após a condenação foi iniciada a execução provisória com penhora. Acolhido o recurso reconhecendo o pagamento válido, o efeito do julgamento do recurso vai atingir por extensão o procedimento de cumprimento provisório da sentença, pondo fim ao mesmo e desfazendo-se a penhora. Também assim se dá quando do provimento de recurso de agravo para anular o processo, esta decisão se estende para os autos principais, nos quais todos os atos após a decisão agravada serão anulados [3], inclusive a sentença, se houver[4].
3 Momento em que Surge o Efeito Extensivo
Os efeitos do recurso têm influência nos institutos da coisa julgada e da preclusão, visto que, enquanto existir recurso a ser julgado, a decisão toda poderá ser modificada, ainda que o recurso seja apenas sobre parte do julgado. Aspecto que se bem analisado pode aclarar o entendimento a respeito dos efeitos translativo e extensivo, e o momento em que eles se produzem. Estes efeitos surgem ao mesmo tempo em que surgem os efeitos devolutivo e obstativo[5]. Uma vez interposto o recurso por um dos litisconsortes, nasce o efeito extensivo e, ao mesmo tempo, ocorre o efeito obstativo da coisa julgada, efeitos que beneficiam todos os litisconsortes, impedindo a formação de coisa julgada para os litisconsortes que não recorreram[6]. Não fosse assim, não haveria como aplicar o efeito extensivo, porque onde há coisa julgada a decisão se torna imutável.
O recurso de uma parte passa a produzir o efeito extensivo desde a sua propositura de forma que ainda que algum dos litisconsortes manifeste concordância[7] com a decisão, ou silenciando, deixando recorrer, ou se venha posteriormente a desistir do seu recurso ou, ainda, se seu recurso seja declarado deserto [8], mesmo assim será beneficiado pelo julgamento do recurso de outro recorrente[9].
Todos estes efeitos surgem no momento da interposição do recurso[10]. Uma vez interposto o recurso, estes efeitos aparecem naturalmente, porque a decisão fica sub judice, sujeita a alteração. Aliás, uma das finalidades do recurso é buscar a modificação do julgado, sem isto não haveria razão de se recorrer.
Uma vez estando o julgado sujeito a recurso, haverá nova decisão, com a possibilidade de acolhimento do recurso com a modificação do decidido, como é inerente à própria atividade recursal. Uma vez julgado o recurso e acolhido para modificar a decisão ou mesmo que não julgado o recurso pelo mérito, mas se existir matéria em que o tribunal possa conhecer e julgar de ofício, poderá até mesmo anular o procedimento por inteiro, caso em que este julgamento vai beneficiar até mesmo quem não recorreu.
É exatamente essa possibilidade de o recurso ser julgado de forma que o seu resultado por extensão possa beneficiar a parte que não recorreu, ou até mesmo terceiros interessados, é que enquanto o recurso estiver para ser julgado, guarda a expectativa de julgamento que possa beneficiar pessoas que não recorreram[11], caso formasse coisa julgada para quem não recorreu não haveria como estender o julgado para lhe beneficiar. Como ninguém pode antecipar (adivinhar) qual será o futuro resultado do julgamento do recurso, mesmo a parte irrecorrida da decisão não pode passar em julgado, porque ela também está sujeita à modificação. Por isso é que se afirma que não pode existir coisa julgada por capítulo ou fatiada[12].
4 Efeito Extensivo e o Recurso de Terceiro Interessado
O art. 499 do CPC legitima o terceiro interessado para a interposição de recurso próprio independentemente de haver ou não recurso das partes. Para a legitimação, basta que este terceiro interessado tenha a sua situação jurídica prejudicada pelo resultado do julgamento em processo alheio, do qual não é parte. O que se exige para a configuração é que este venha a sofrer algum prejuízo em sua situação jurídica por via reflexa, visto que a decisão diretamente vai atingir a parte vencida. A parte vencida também pode recorrer, mas, às vezes, não recorre. Não é a ausência de recurso pelas partes que necessariamente vai formar a coisa julgada. Mesmo quando as partes não recorrem, em havendo recurso de terceiro interessado, incide o efeito obstativo da coisa julgada, que somente se dá quando não couber mais nenhum recurso naquele processo.
Imagine-se um caso de cobrança de dívida em que o credor aciona somente o fiador para pagar e obtém ganho de causa com a condenação deste ao pagamento. O fiador não recorre porque sabe que pode cobrar regressivamente do devedor principal, que não participara do processo. O devedor principal que não é parte na ação de cobrança pode recorrer como terceiro interessado, buscando a obtenção da improcedência da ação, porque, se obter sucesso com o seu recurso, ele ficará livre de ação de cobrança futura por parte do fiador. Neste caso, o julgamento do recurso do terceiro interessado (devedor principal) estende seus efeitos a favor do fiador que não recorreu e que também vai ser beneficiado porque fica livre da dívida e dos encargos sucumbenciais.
Fácil perceber que não é a simples ausência de recurso pelas partes que implica a coisa julgada, porque em casos como o do exemplo acima o recurso do terceiro interessado provoca o efeito obstativo e a decisão recorrida não passa em julgado, tudo fica a depender do julgamento do recurso do terceiro interessado. Ora, se somente o recurso do terceiro interessado impede a formação de coisa julgada entre as partes, com maior propriedade isto se dá quando houver recurso de uma das partes, o que impede a formação de coisa julgada por partes. Se houvesse coisa julgada para aquela parte que não recorreu (o fiador), em relação a ele a decisão não poderia ser alterada e ele não seria beneficiado com a extensão do recurso do devedor principal.
5 O Efeito Extensivo e o Recurso do Assistente
O assistente não é parte e por isso não será atingido pela coisa julgada[13], mas pode sofrer as consequências dos efeitos da sentença. Por isso, desde que tenha interesse jurídico em que uma parte vença a ação, poderá intervir a favor dela durante o processo (art. 50 do CPC). Uma vez admitida a terceira pessoa como assistente no processo, ela passa a ter os mesmos direitos e os mesmos ônus processuais da parte (art. 52 do CPC). Embora o assistente não seja parte na causa e nem litisconsorte da parte, mesmo assim é com esta considerada independente (art. 48 do CPC), o que legitima o assistente a apresentar recurso próprio independentemente de as partes recorrerem. Desta forma o assistente está legitimado a recorrer em favor da parte vencida, mesmo que esta não recorra.
Com o recurso do assistente fica obstada a formação de coisa julgada para qualquer das partes, visto que se este recurso for acolhido vai beneficiar a parte assistida, o que não poderia ocorrer se contra esta já houvesse coisa julgada. Uma vez que o recurso do assistente carrega o efeito extensivo e que se acolhido beneficiará a parte assistida, não pode haver coisa julgada fatiada, para abranger apenas uma parte do julgado.
Pense-se numa ação de anulação da promessa de compra e venda proposta pelo vendedor contra o comprador havendo, julgamento de procedência anulando o negócio e determinando a devolução da coisa com indenização por perdas e danos sem recurso do réu. O cessionário da promessa de compra e venda é admitido no processo como assistente do promissário comprador e recorre da sentença de anulação. Acolhido o recurso do cessionário dos direitos do adquirente para julgar a ação improcedente, o réu que não recorrera também será beneficiado com o resultado do julgamento por extensão. Mesmo não havendo recurso do réu, contra ele não se forma coisa julgada em face do efeito obstativo levado pelo recurso do assistente. Não fosse assim, de nada valeria o recurso do assistente.
6 Coisa Julgada e o Efeito Extensivo
A coisa julgada se instala a partir do momento em que aquilo que foi decidido não mais possa ser modificado. Isto é, quando não restar recurso a ser interposto ou a ser julgado. Isto porque, enquanto houver recurso a ser interposto ou a ser apreciado se já interposto, haverá a possibilidade de novo julgamento e, por consequência, a possibilidade de modificação ou anulação daquilo que foi julgado. Por isso, para se falar em coisa julgada, há necessidade de se levar em conta se há recurso a ser julgado, bem como os efeitos que podem advir do recurso. Os efeitos que podem advir do recurso vão nortear a análise da coisa julgada[14].
O efeito extensivo, tal como acontece nos casos de efeito translativo e obstativo, impede a formação de coisa julgada por parte, porque a decisão pode ser revista e modificada em razão de recurso interposto contra a outra parte do julgado, ou mesmo por outra parte, ou ainda por terceiro interessado.
Não fosse por tantas outras razões, a impossibilidade de coisa julgada por parte pode ser demonstrada somente pela existência dos efeitos extensivo e translativo, o que já seria o suficiente para impedir a existência de coisa julgada por etapa ou por parte. Ao se referir ao efeito extensivo, Araken de Assis[15] afirma que isso só é possível se houver interposição do recurso por uma das partes, porque a falta de recurso contra a sentença acarreta o surgimento da coisa julgada. Isto implica dizer que, havendo recurso de uma das partes, ele impede a formação de coisa julgada (efeito obstativo)[16], sendo este um motivo a mais para demonstrar a impossibilidade de coisa julgada fatiada ou por parte. Esta afirmação está conforme a norma do art. 467 do CPC, que é bastante clara ao dizer que só haverá coisa julgada quando não mais couber recurso no processo. Enquanto existir um recurso, seja de quem quer que seja, este recurso produz o efeito obstativo da formação da coisa julgada[17].
7 Incompatibilidade entre a Coisa Julgada Fatiada e os Efeitos Extensivo e Translativo
Quem prega a existência de coisa julgada por parte ou fatiada desconsidera a existência e a aplicação dos efeitos extensivo e translativo. São situações incompatíveis de forma que, se prevalecer a ideia de coisa julgada por parte ou por capítulo, não se pode aplicar os efeitos translativo e extensivo. A incompatibilidade é tão imperativa que não há como contorná-la e aplicar estes efeitos e ao mesmo tempo falar-se em coisa julgada por parte.
Para se ter a coisa julgada fatiada ou por capítulo precisa antes ter esta parte do julgado como imutável. Ora, se esta parte se tornou imutável em face da coisa julgada fatiada, esta mesma parte não pode mais ser modificada em razão do recurso que tenha atacado a outra, ficando, com isso, afastada a aplicação dos efeitos mencionados.
De duas, uma: ou não existe coisa julgada fatiada (por parte) ou não existem os efeitos extensivo e translativo. A incompatibilidade impede a coexistência ou sobrevivência deles conjuntamente e ao mesmo tempo. A finalidade da coisa julgada é incompatível com as finalidades dos efeitos translativo e extensivo.
A coisa julgada tem por finalidade tornar a questão julgada imutável, de forma tal que não mais poderá ser modificado o que foi julgado. O efeito translativo tem por finalidade permitir ao órgão recursal julgar questões de ordem pública ou de interesses indisponíveis, mesmo sem alegação ou pedido da parte; já o efeito extensivo tem finalidade de dar extensão ao que se julgou na matéria recorrida, para atingir a outra que não foi recorrida ou beneficiar pessoas outras que não recorreram[18]. Assim, a incompatibilidade é incontornável, pois, enquanto a coisa julgada impede novo julgamento, o efeito translativo autoriza o julgamento de matéria de ordem pública[19] ou de direitos indisponíveis, e o efeito expansivo ou ampliativo determina a extensão do que foi julgado para beneficiar aquele que não recorreu[20], em face de julgamento de recurso de outrem. Se houvesse coisa julgada por parte ou por capítulo, isto não seria possível, porque onde há coisa julgada não pode haver mais julgamento. Se pode haver julgamento[21] e se pode haver extensão deste até mesmo para a parte que não recorreu é porque inexiste coisa julgada por parte.
A coisa julgada impede, o efeito translativo autoriza o julgamento de matéria não alegada e o efeito extensivo impõe a ampliação lógica do julgado para quem não recorreu. Ora, impedir e autorizar estão em posições antagônicas e, por isso, não podem conviver ao mesmo tempo.
Parece equivocada a posição de Delgado[22], para quem, sendo o caso de capítulo autônomo da sentença, a parte da sentença não recorrida passa imediatamente em julgado. O engano, neste passo, parece-me que é evidente, porque se as matérias de ordem pública podem ser apreciadas a qualquer momento e em qualquer grau de jurisdição, elas não dependem de recurso para serem apreciadas, podendo desta apreciação modificar todo o julgado é até mesmo anulá-lo quando for o caso. No entanto, o mesmo Delgado [23] parece pôr em dúvida a sua afirmação quando, em outro local, aponta com acerto as dificuldades de fixar o momento da coisa julgada para efeito de ação rescisória.
Conclusão
Analisadas as colocações acima, pode-se concluir, que, em havendo coisa julgada, a decisão é imodificável e, por ser imodificável, não mais pode ser objeto de julgamento direito e nem extensão dos efeitos de outro julgamento. Se o sistema processual brasileiro contempla as figuras dos efeitos translativo e extensivo de modo que poderá haver julgamento de matéria não pedida, bem como a extensão do julgado para beneficiar, até mesmo, quem não tenha recorrido, é porque o sistema não admite a coisa julgada parcial ou por parte.
Referências
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BARBOSA MOREIRA, J. C. Comentários ao CPC. Rio de Janeiro: Forense, 1976. v. V.
BUENO, Cassio Scarpinela. Efeitos dos recursos. In: NERY Jr., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: RT, 2006. v. 10.
CHAIM JORGE, Flávio. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
DELGADO, Joedson de Souza. A (im)possibilidade do trânsito em julgado de capítulos de sentença em momentos diversos. Revista Jurídica Lex, v. 70, p. 117. São Paulo: Lex, jul./ago. 2014.
DIDIER Jr., Fredie. Recurso de terceiro. São Paulo: RT, 2002.
FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao CPC. São Paulo: RT, 2001. v. 7.
NOLASCO, Rita Dias. Possibilidade do reconhecimento de oficio de matéria de ordem pública no âmbito dos recursos de efeito devolutivo restrito. In: NERY Jr., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: RT, 2006. v. 10.
PONTES DE MIRANDA. Comentários ao CPC. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. Tomo VII.
SOUZA, Gelson Amaro de. Curso de direito processual civil. 2. ed. Presidente Prudente: Data Juris, 1998.
______. Fraude de execução e o direito de defesa do adquirente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
______. Efeitos da sentença que julga embargos à execução. São Paulo: MP, 2007.
______. Coisa julgada – impossibilidade de ser por partes. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v.46, Porto Alegre-RS, jan./mar., 2012; Revista Jurídica-Lex, v. 55, São Paulo: Lex, jan./fev., 2012.
______. Assistência e coisa julgada. DVD Magister, versão 59, Poa, RS.
______.Coisa julgada e o momento de sua configuração. Revista Dialética de Direito Processual, v. 5, p. 26:48, São Paulo: Dialética, dez. 2011.
______; SOUZA FILHO, Gelson Amaro de. Sentenças que não passam em julgado. DVD Magister, v. 59, Porto Alegre; Revista Judiciária do Paraná, v. 6. Curitiba: Bonijuris, nov. 2013; Repertório de Jurisprudência – IOB, n. 14, 2ª quinzena de julho, 2013; JURISVOX – Centro Universitário de Patos de Minas – Unipam, Patos de Minas, dez. 2012.
[1] Confira: SOUZA, Gelson Amaro de. Coisa julgada – impossibilidade de ser por partes. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 46, Porto Alegre-RS, jan./mar., 2012; Revista Jurídica-Lex, v. 55, São Paulo: Lex, jan./fev., 2012; e Boletim IOB, v. III, n. 3. São Paulo: IOB, 1ª quinzena de fevereiro de 2012.
[2] “O art. 509, caput, incide tão só no recurso do litisconsorte unitário”. ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 235. No mesmo sentido: NERY Jr., Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 479; JORGE, Flávio Chaim. Teoria geral dos recursos cíveis, p. 275; FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. Comentários ao CPC, p. 74.
[3] “O provimento ulterior do agravo implicará o desaparecimento de todos os atos posteriores incompatíveis, incluindo a sentença.” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 222)
[4] Nulidade: “Agravo de instrumento julgado após a prolação de sentenças de mérito nas quatro ações, aplicação do princípio da cognição mais ampla. Descabimento. Agravo que julgara questão de ordem pública. 1. Ainda que a sentença tenha sido proferida com antecedência em relação ao julgamento de agravo de instrumento pelo Tribunal de Justiça, certo é que a matéria discutida no agravo julgado – legitimidade de partes, uma vez acolhida, sem reforma ulterior por superior instância, como aqui sucede, preclui de forma de consumativa, produzindo coisa julgada, resolvendo em definitivo a questão”. RSDCPC, v. 84, p. 189, jul./ago. 2013.
[5] “Em lugar de constituir a expansão subjetiva um efeito, de per si, soa bem mais adequado tratá-la como um reflexo da devolução provocada pelo recurso do litisconsorte atuante na esfera jurídica do litisconsorte omisso.” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, p. 218. Obra citada)
[6] “A totalidade dos litisconsortes é beneficiada pelo efeito obstativo.” (ASSIS, Araken de. Manual dos recurso. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 238)
[7] “Em se tratando de recurso interposto conjuntamente por litisconsortes unitários, e em havendo aquiescência tácita à decisão por um dos coobrigados, impõe-se a sua admissibilidade, em razão da regra jurídica do art. 509 do CPC e parágrafo único.” (TJSP [antigo 1º TACSP]. Ap. 176.259-4, 8ª C, j. 12.12.84, vu. JTACSP-RT, v. 97, p. 191)
[8] “(…) a interposição tempestiva de recurso, por qualquer dos litisconsortes unitários, é eficaz para todos os outros, inclusive para aqueles que tenham desistido de recurso interposto ou em relação aos quais haja ocorrido fato ordinariamente idôneo a tornar-lhes inadmissíveis.” (BARBOSA MOREIRA, J. C. Comentários ao CPC. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. v. V. p. 368)
[9] Neste sentido: STJ. 1ª T. REsp 573.312-RS, j. 21.06.05, DJU 08.08.05, p. 183, sob a relatoria do Min. Luiz Fux. Também o TJSP: “Se a 2ª instância reforma sentença de 1º grau em virtude de recurso interposto por litisconsorte, tal resultado beneficia os demais”. TJSP-Antigo 1º TACSP. Ap. 345.704, 5ª C. RT. 603/141.
[10] “A extensão se produz, desde logo, a partir da interposição tempestiva, em relação aos litisconsortes cujo prazo para recorrer escoou.” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 237)
[11] “EFEITO EXPANSIVO SUBJETIVO, PARA ABSOLVER O EX-PREFEITO, NÃO RECORRENTE. Recursos especiais providos, para absolver os recorrentes do ato de improbidade que lhes é imputado, por ausência de tipicidade: atribuição de efeito expansivo subjetivo à presente decisão, para absolver o ex-prefeito da condenação de igual natureza.” (STJ, REsp 1.215.628-SP (2010/0178597-5), Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 07.08.2014, DJe 17.09.2014. REpro, v. 140, p. 156-157)
[12] Confira nosso: Coisa julgada – impossibilidade de ser por parte. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 46. Porto Alegre-RS, jan./mar., 2012; Revista Jurídica-Lex, v. 55. São Paulo: jan./fev., 2012; e Revista Bonijuris, n. 582. Curitiba: Bonijuris, maio de 2012.
[13] Confira nosso: Assistência e coisa julgada. Rio de Janeiro. Porto Alegre: Notadez, ago. de 2003. v. 310. p. 44-68.
[14] “Os efeitos dos recursos também constituem assunto imprescindível para a devida compreensão dos capítulos de sentença, bem como a própria sentença e a coisa julgada.” (DELGADO, Joedson de Souza. A [im]possibilidade do trânsito em julgado de capítulos de sentença em momentos diversos. Revista Jurídica Lex, São Paulo: Lex, v. 70, p. 111, jul./ago. 2014)
[15] ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 236.
[16] “Não importa a matéria versada no recurso para postergar o aparecimento da coisa julgada.” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 223)
[17] “A extensão subjetiva da eficácia abrange todos os efeitos que a lei atribua ao recurso interposto. Para a totalidade dos colitigantes não apenas se obsta ao trânsito em julgado de decisão, mas também se devolve ao órgão ad quem o conhecimento da matéria litigiosa.” (BARBOSA MOREIRA, J. C. Comentários ao CPC. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 369)
[18] BUENO, Cassio Scarpinela. Efeitos dos recursos. In: NERY Jr., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: RT, 2006. v. 10. p. 87.
[19] “O efeito translativo possibilita ao órgão destinatário do recurso o conhecimento de oficio das matérias de ordem pública, independentemente de pedido ou requerimento da parte interessada.” (NOLASCO, Rita Dias. Possibilidade do reconhecimento de oficio de matéria de ordem pública no âmbito dos recursos de efeito devolutivo restrito. In: NERY Jr., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim [Coord.]. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: RT, 2006. v. 10. p.460-461)
[20] “Daí a necessidade de beneficiar o litisconsorte omisso com o recurso do litisconsorte atuante, evitando o contrário: o prejuízo ao recorrente provocado pela inércia do parceiro.” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 236)
[21] “1. A legitimidade de parte é matéria de ordem pública e cabe ao juiz conhecê-la de ofício, em qualquer tempo ou grau de jurisdição, sendo irrelevante, portanto, o fato de os embargos terem sido opostos intempestivamente pelo sócio.” (STJ, AI em REsp 539.460-SP, j. 13.08.2014, DJe 28.08.2014, Rel. Min. Humberto Martins. Revista Jurídica-Lex, v. 70, p. 199, jul./ago. 2014)
[22] “Já no tocante ao capítulo autônomo não impugnado, fica, desde logo, protegido pela res iudicata, por não ser alcançado o efeito obstativo do recurso que teve como alvo apenas a outra parte da decisão.” (DELGADO, Joedson de Souza. A [im]possibilidade do trânsito em julgado de capítulos de sentença em momentos diversos. Revista Jurídica Lex, v. 70, p. 117. São Paulo: Lex, jul./ago. 2014)
[23] “No mais, caso aceite a tese do trânsito em julgado em diversos momentos, surgiriam dificuldades de ordem prática no tocante à possibilidade do ajuizamento de ações rescisórias oriundas de um único processo, o que iria contra o princípio da economia processual e oportunidade, em tese, soluções conflitantes em um dado processo.” (DELGADO, Joedson de Souza. A [im]possibilidade do trânsito em julgado de capítulos de sentença em momentos diversos. Revista Jurídica Lex, v. 70, p. 117. São Paulo: Lex, jul./ago. 2014)