A CITAÇÃO DO POSSUIDOR NA AÇÃO REIVINDICATÓRIA INTERROMPE O PRAZO PARA A USUCAPIÃO
Rogério Tadeu Romano
A ação de reivindicação é ação executiva. Isso porque a imissão do autor vitorioso na posse objeto da demanda deve ser determinada na própria sentença de procedência do pedido. Expede-se, desde logo, o respectivo mandado ordenando que o autor seja imitido na posse, sem que o proprietário necessite promover uma demanda executória. Quem tem uma escritura pública de compra e venda de imóvel está para a função jurisdicional executiva, na mesma posição de quem tiver a posse de uma letra de câmbio, uma nota promissória. Ambos poderão, apenas com uma demanda, concluir o processo executório, como afirmou Ovídio Baptista (Curso de processo civil, v. II, 1990, p. 159).
Na ação reivindicatória, o que se pretende é obter a coisa (res), e não o cumprimento de uma obrigação. Daí porque não teria o menor sentido exigir que a sentença condenasse o possuidor, por ela declarado possuidor ilegítima, a cumprir uma obrigação que jamais existiria.
A ação reivindicatória é uma pretensão fundada em direito real destinada a obter a posse da coisa, objeto de domínio. Aqui, o demandante vai a juízo recuperar a coisa. Daí a natureza real.
Ensinou Pontes de Miranda (Tratado das ações, v. VII, § 17) que a natureza dessas ações é real, por meio da qual o proprietário busca obter a posse das coisas corpóreas integrantes de seu patrimônio. É ação que compete ao proprietário sem posse contra o possuidor não proprietário, ainda sendo necessário acrescentar que ela tem por fim a obtenção da posse contra o possuidor injusto da coisa reclamada.
O que é possuidor injusto?
Já dizia o art. 489 do Código Civil de 1916 que era injusta a posse que seja precária, adquirida com violência ou clandestinidade.
Para Ovídio Baptista (ob. cit., p. 162), não é, por certo, esse o critério para determinar a injustiça da posse que fará cabível a ação de reivindicação. Poderá haver casos de posse que não seja nem clandestina nem violenta ou precária, e, mesmo assim, frente ao proprietário, seja considerada injusta, para autorizar a procedência da reivindicatória.
Exemplifica-se: ocorre a posse injusta quando o demandado, no juízo petitório, havendo adquirido a coisa a non domino, desfruta do bem por ele adquirido sem qualquer dos vícios indicados no art. 489 do Código Civil de 1916, é vencido na reivindicatória promovida pelo proprietário verdadeiro. Tendo o adquirente a non domino posse protegível pelos interditos possessórios, mesmo assim sucumbirá frente à reivindicatória.
Diversa é a posse usucapionem.
Tal posse é revelada quando se exerce, havendo de ser rodeada de elementos, que nem por serem acidentais, deixam de ter significação, pois a lei exige que seja contínua pacífica ou incontestada e com a intenção de dono, por todo o tempo, na lição de Caio Mário da Silva Pereira. O possuidor não pode possuir a coisa a intervalos, intermitentemente, nem tê-la maculada de vícios ou defeitos (vi, clan aut precario).
Há de haver ausência de contestação da posse, sendo tal a que se exerce com a intenção de dono (cum animo domini).
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou a matéria no julgamento do AREsp 1542609. Ali, se entendeu que, se a ação proposta pelo proprietário visa de algum modo, à defesa do direito material, a citação dos réus interrompe o prazo para a aquisição do imóvel por usucapião. Com esse entendimento, já consolidado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a 4ª Turma não admitiu o recurso especial de um casal que tentava afastar a interrupção do prazo no âmbito da discussão sobre a usucapião de terreno no Município de Imbé/RS, ocupado desde 1984.
O Relator do caso, Ministro Luis Felipe Salomão, afirmou que o acórdão recorrido aplicou a jurisprudência firmada pela 2ª Seção, pois o proprietário ajuizou uma ação reivindicatória, “o que demonstra claramente sua intenção de retomar o bem”.
De acordo com o magistrado, também é pacífico na 2ª Seção o entendimento de que a interrupção do prazo ocorre independentemente de a ação reivindicatória ser declarada ou não procedente, bastando que se evidencie o inequívoco exercício do direito e a boa-fé do autor.
Na matéria, colho o entendimento de Benedito Silvério Ribeiro (Tratado de usucapião. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2003. p. 91): “O possuidor, desde que citado para uma causa relacionada com o bem objeto de usucapião, deixará de exercer posse contínua ou ininterrupta, expressões equivalentes na lei substantiva. A ciência dada ao prescribente interfere no seu animus domini e na boa-fé […]. Cuida-se a hipótese ora comentada de interrupção civil, que ocorre quando o proprietário promove a reivindicação da coisa antes de findo o lapso prescricional, o que se verifica com a citação inicial. […]”
Interrompendo a citação a prescrição, por conseguinte, interrompido estará o exercício da posse para efeito de usucapião, a não ser que o lapso prescricional já se tenha completado.
A propósito, pouco importa a resolução favorável ou desfavorável ao autor daquela demanda possessório-petitória, pois é o ato processual de propositura da ação que demonstra, em si, um ato inequívoco de oposição à posse do réu sobre o imóvel, e não o fato de, ao final do feito, ser a sua insurgência tida como procedente ou improcedente pelo Poder Judiciário.
O que configura a oposição à posse, e, por conseguinte, a causa interruptiva do prazo aquisitivo não é o exercício da pretensão de direito material – que somente existiria se julgada procedente a demanda –, mas o exercício do direito processual de ação (abstrato e condicionado) contra o possuidor.
Por oportuno, destaca-se que não se desconhece que exista entendimento no Superior Tribunal de Justiça em sentido oposto, exposto em alguns julgados daquela Corte, entendendo que a ação possessória, anteriormente proposta, somente interrompe a prescrição aquisitiva se julgada procedente.
Não se pode perder de vista que o regime jurídico das causas suspensivas, impeditivas e interruptivas do prazo para a usucapião é expressamente equiparado ao regime aplicável à prescrição, por força do art. 1.244 do CC, sendo que, em relação a esse instituto, a jurisprudência entende pacificamente que o tão só ajuizamento de ação anterior, ainda que julgada improcedente ou extinta sem resolução do mérito, interrompe o prazo da chamada prescrição extintiva, desde que tenha havido citação válida.
Ali se diz: “Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”.
Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL – ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – AÇÃO DE COBRANÇA – DIÁRIAS – PRESCRIÇÃO – INTERRUPÇÃO EM VIRTUDE DE CITAÇÃO VÁLIDA EM PROCESSO EXTINTO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO – POSSIBILIDADE – […] 4. O acórdão recorrido encontra-se em sintonia com a atual jurisprudência do STJ, segundo a qual a citação válida em processo extinto sem julgamento do mérito importa na interrupção do prazo prescricional. Incidência da Súmula nº 83/STJ. 5. agravo regimental não provido. (AgRg-AREsp 202.429/AP, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, J. 05.09.2013)
Direito processual civil. Efeitos da citação válida. Código de Processo Civil, art. 219.
Ação proposta, mas pedido julgado improcedente. Inequívoco exercício do direito. Inércia descaracterizada. Prazo prescricional interrompido. I – Preceitua o art. 219 do Código de Processo Civil que “a citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição”. Quanto ao tema da interrupção da prescrição, a lei não faz distinção entre o pedido julgado procedente e o pedido julgado improcedente. Evidenciado o inequívoco exercício do direito e a boa-fé do autor, ainda que com a propositura de ação incabível, interrompe-se o prazo prescricional. II – Embargos de divergência conhecidos, porém não providos. (EREsp 54.788/SP, 2ª S., Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/o Ac. Min. Cesar Asfor Rocha, J. 28.02.2007)
Reitero que a posse injusta para fins de reivindicação (art. 1.228 do Código Civil) configura-se pela ausência de título que legitime o exercício de fato, não se confundindo com a posse injusta para fins de proteção possessória (art. 1.200 do Código Civil), de modo que a procedência da reivindicatória não se deve limitar à análise da precariedade, violência ou clandestinidade da posse, que assim se revela injusta, frente ao direito de propriedade, quando o possuidor não detém título oponível ao proprietário.
Por outro lado, o art. 1.238, parágrafo único, do CC/2002 tem aplicação imediata às posses ad usucapionem já iniciadas na vigência do Código anterior, qualquer que seja o tempo transcorrido, devendo apenas ser respeitada a fórmula de transição, segundo a qual serão acrescidos dois anos ao novo prazo, nos dois anos após a entrada em vigor do Código de 2002 (REsp 1314413/MG, 3ª T., Rel. Min. Sidnei Beneti, J. 26.11.2013, DJe 09.12.2013).