CELERIDADE E EFETIVIDADE DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INSUFICIÊNCIA DA REFORMA DAS LEIS PROCESSUAIS
Humberto Theodoro Júnior
1. Introito
O Mundo civilizado, em seus principais Países, assiste a um generalizado clamor contra a pouca eficiência da justiça oficial para solucionar a contento os litígios que lhe são submetidos. Consequência imediata desse quadro de insatisfação social é a onda de reforma das leis processuais da qual não escapa ninguém, nem mesmo aqueles povos que se gabam de ter produzido, em campo da ciência jurídica, monumentos gloriosos na edição de seus Códigos.
Por mais que juristas e legisladores se esforcem por aperfeiçoar as leis de processo, a censura da sociedade ao aparelhamento judiciário parece sempre aumentar, dando a ideia de que o anseio de justiça das comunidades se esvai numa grande e generalizada frustração.
Para tentar compreender esse fenômeno, devemos relembrar o que se passou de inovação nos últimos 200 anos, não apenas em torno das instituições processuais, mas da própria estrutura política das nações.
De velhas e arraigadas concepções aristocráticas e autoritárias, no desempenho do poder público, a humanidade evoluiu para a democracia e a república, fundada, primeiro, nas solenes declarações de direitos fundamentais, e, finalmente, na inclusão dentre os deveres estatais o de tornar efetivos os declarados direitos fundamentais.
Os direitos dos cidadãos, em nosso tempo, saíram do âmbito das meras declarações solenes para entrar no campo das missões práticas que ao Estado cumpre implementar.
Essa nova postura político-social em relação à cidadania iria refletir sobre todas as funções do moderno Estado Social de Direito, inclusive a do Poder Judiciário.
Aliás, na verdadeira evolução do Estado Democrático é, principalmente, pelo processo que se revela o grau de aprimoramento das funções estatais. Assim, no antigo regime aristocrático, nem mesmo poder judiciário autônomo existia e o autoritarismo dos detentores do governo fazia com que as normas procedimentais fossem inoperantes para satisfazer qualquer anseio de justiça. Tudo afinal se resumia num ato arbitrário de vontade do soberano, ou de agentes subalternos que reproduziam com fidelidade sua vontade incontestável. A primeira grande conquista do Estado Democrático é justamente a de oferecer a todos uma justiça confiável, independente, imparcial, e dotada de meios que a faça respeitada e acatada pela sociedade.
O direito processual, nessa conjuntura, deixa de ser simples repositório de formas e praxes dos pleitos jurídicos, e assume a qualidade de estatuto funcional de um dos poderes soberanos do Estado Democrático.
E por terem consciência de seus direitos à tutela jurisdicional, cada vez mais as pessoas passaram a ir à Justiça e a dela exigir a prestação que, de fato, correspondesse à função que as modernas constituições lhe atribuíam. Como os órgãos jurisdicionais disponíveis quase nunca se achavam servidos por pessoal, recursos e meios suficientes para o bom atendimento dos postulantes, logo tiveram início as insatisfações e reclamações dos jurisdicionados.
Tudo, portanto, que o direito intermédio havia estruturado acerca dos procedimentos judiciais teve de ser revisto, desde as ideias básicas de ação, processo e jurisdição.
2. Evolução histórica do processo civil
Até o Século XVIII, o processo não gozava de qualquer espécie de autonomia. A própria ação não era vista como direito distinto daquele que a parte deduzia em juízo para reclamar tutela estatal. A ação era simplesmente o direito subjetivo material do litigante que reagia contra a violação sofrida. E o processo não passava de um amontoado de formas e praxes do foro para cuidar do conflito submetido ao juiz.
Já em meados do Século XIX, os pandectistas descobriram que, após a eclosão da lide, surgia entre a parte e o Estado uma nova relação jurídica nascida justamente da violação do direito subjetivo material e do direito de obter um provimento do órgão judicial contra dita violação. Assim, a relação material era travada entre as partes diretamente e pertencia ao direito privado; e a relação processual era travada entre a parte e o Estado e, portanto, estava afeta ao direito público.
Graças a WACH e VON BULOW, principalmente, o estudo da relação processual, ainda no século XIX, ganhou foros científicos, alcançando a conceituação de seus pressupostos, seu objeto e seu método. Daí em diante, adquiriu vida própria, com autonomia científica, o direito processual, e até meados do Século XX, a doutrina, sobretudo alemã e italiana, iria construir os grandes conceitos informadores de todo o sistema da ciência do direito processual civil.
Superada a enorme crise político-social da 2ª Guerra Mundial, as atenções dos estudiosos do direito voltaram-se para problemas da prestação jurisdicional até então não cogitados. Depois de um século de extensos e profícuos estudos sobre os conceitos e as categorias fundamentais do Direito Processual Civil, os doutos atentaram para um fato muito singelo e muito significativo: a sociedade como um todo continuava ansiosa por uma prestação jurisdicional mais efetiva. Aspirava-se, cada vez mais, a uma tutela que fosse mais pronta e mais consentânea com uma justa e célere realização ou preservação dos direitos subjetivos violados ou ameaçados; por uma Justiça que fosse amoldável a todos os tipos de conflito jurídico e que estivesse ao alcance de todas as camadas sociais e de todos os titulares de interesses legítimos e relevantes; por uma Justiça, enfim, que assumisse, de maneira concreta e satisfatória, a função de realmente implementar a vontade da lei material, com o menor custo e a maior brevidade possíveis, tudo através de órgãos adequadamente preparados, do ponto de vista técnico, e amplamente confiáveis, do ponto de vista ético.
Temas como a garantia de acesso à Justiça e a instrumentalidade e efetividade da tutela jurisdicional passaram a ocupar a atenção da ciência processual, com preferência sobre as grandes categorias que haviam servido de alicerce à implantação do Direito Processual como ramo independente do direito material, integrado solidamente ao direito público.
Foi no relacionamento com o Direito Constitucional que o processo mais se distinguiu em seu eminente caráter publicístico. Mas não foi somente na publicização que se notabilizou o processo moderno. Além de ter sido, desde logo, reconhecido como instrumento de atuação de soberania estatal, aos poucos o caráter mais marcante do instituto foi se deslocando para a sua qualidade cívica, até que a generalidade das Constituições democráticas passasse a incluir o devido processo legal como um dos direitos fundamentais assegurados aos cidadãos. Mais do que um meio de atuação da soberania do Estado, o processo assumiu a categoria de garantia de acesso do cidadão à tutela jurídica declarada e assegurada pelas Constituições.
3. Acesso à justiça e instrumentalidade do processo
Seguramente, ninguém mais do que CAPPELLETTI se debruçou, nos últimos cinquenta anos, sobre a pesquisa e a formação do conceito de “acesso à Justiça”, como meta maior de garantia de tutela jurisdicional assegurada aos cidadãos. Na introdução de uma de suas várias obras sobre o tema, escrita em parceria com BRYANT GARTH, o grande processualista e pensador italiano registraram que:
“A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado.
“Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos[1]”.
Lembra CAPPELLETTI que a ideia de acesso à Justiça evoluiu paralelamente à passagem da concepção liberal para a concepção social do Estado moderno. De início, a participação do Estado não ia além da declaração formal dos direitos humanos. Nessa época, em que prevalecia como máxima dominante o laissez-faire, todos eram solenemente presumidos iguais e a ordem constitucional se restringia a criar mecanismos de acesso à Justiça, sem maiores preocupações com sua eficiência prática ou efetiva. Diferenças econômicas ou institucionais nem sequer eram cogitadas pelo ordenamento jurídico. Os problemas reais dos indivíduos não chegavam a penetrar no campo das preocupações doutrinárias em torno do Direito Processual.
No século XX, todavia, o coletivo ou social passou a ser a tônica da política governamental e legislativa em todos os países do mundo civilizado, mesmo naqueles em que a ideologia se rotulava de capitalista e liberal ou neoliberal. A política constitucional deixou, então, de atuar como simples tarefa de declarar direitos, tal como prevalecera nos séculos XVIII e XIX. As Cartas contemporâneas, refletindo a consciência social dominante, voltou-se para a efetivação dos direitos fundamentais. Assumiu-se, dessa maneira, o encargo não só de defini-los e declará-los, mas também, e principalmente, de garanti-los, tornando-os efetivos e realmente acessíveis a todos. O Estado Social de Direito pôs-se a braços com a tarefa nova de criar mecanismos práticos de operação dos direitos fundamentais.
O processo, instrumento de atuação de uma das principais garantias constitucionais – a tutela jurisdicional -, teve de ser repensado. É claro que, nos tempos atuais, não basta mais ao processualista dominar os conceitos e categorias básicos do Direito Processual, como a ação, o processo e a jurisdição, em seu estado de inércia. O processo tem, sobretudo, função política no Estado Social de Direito. Deve ser destarte, organizado, entendido e aplicado como instrumento de efetivação de uma garantia constitucional, assegurando a todos o pleno acesso à tutela jurisdicional, que há de se manifestar sempre como atributo de uma tutela justa.
O estudioso do processo e o aplicador das normas processuais têm, necessariamente, de ir além da dogmática jurídica, além dos conceitos e categorias exclusivas do Direito. Têm de dar ouvidos a todo o clamor que se ouve no meio sócio-econômico sobre o qual o Direito Processual deve atuar. Somente assim se conseguirá dar ao processo e às normas que o regem força de garantir, e não apenas de declarar, direitos na vida social. E será assim que – como, de fato, vem ocorrendo na sensível transformação do Direito Processual de nosso tempo – se conseguirá realizar o ideal de “acesso à Justiça”, preocupação que, necessariamente, ocupa “o ponto central da moderna processualística[2]”.
Nessa linha de pensamento, o processo, para cumprir a missão que lhe atribui o moderno Estado Social de Direito, tem de se apresentar como instrumento capaz de propiciar efetividade à garantia de “acesso à Justiça”. Na ótica de CÂNDIDO DINAMARCO a problemática da efetividade do processo revela quatro facetas, todas fundamentais:
“ ‘a) admissão em juízo; b) modo de ser do processo; c) critérios de julgamento (ou justiça nas decisões); d) a efetivação dos direitos (ou utilidade das decisões)’, mas a ideia do acesso à justiça constitui a síntese de todo o pensamento instrumentalista e dos princípios e garantias do processo, seja a nível constitucional ou infraconstitucional; de modo que as garantias de ingresso em juízo, de contraditório, do devido processo legal, do juiz natural, da igualdade entre as partes, todas elas visam o acesso à justiça (cf. A instrumentalidade do Processo, 5ª ed., São Paulo, 1996, p. 303 e seg.)[3].
A garantia de devido processo legal, a que se liga intimamente a de acesso à justiça, além de exigir a figura do juiz natural e observância do contraditório e amplo defeso, deve assegurar aos litigantes não apenas uma sentença, mas uma sentença justa, dentro da melhor exegese dos fatos e do direito material pertinente. Só assim se entende realizado o verdadeiro “acesso à justiça”, no dizer de ARAÚJO CINTRA – GRINOVER – DINAMARCO[4].
No mesmo sentido, KAZUO WATANABE ressalta que “o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional , inscrito no art. 5º, XXXV da CF, não assegura, apenas, o acesso formal aos órgãos judiciários, mas sim o acesso à justiça que propicie a efetiva e tempestiva proteção contra qualquer forma de denegação da justiça e também o acesso à ordem jurídica justa”. Salienta, ainda, em relação ao princípio da proteção judiciária, a importância: a) da preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva, adequada e tempestiva tutela de direitos; b) adequação da organização judiciária ao volume dos serviços judiciários; c) recrutamento adequado; d) remoção de óbices ao acesso à justiça; e) pesquisa sobre causas dos litígios e sobre os meios de sua solução judicial ou extrajudicial” (Tutela Antecipatória e Tutela Específica das Obrigações de Fazer e não Fazer, in Reforma do CPC, pág. 20)[5]”. O que se extrai de mais importante dos ensinamentos de KAZUO WATANABE e SILVA PACHECO é a certeza de que não é apenas pela lei processual que se logrará atingir o processo justo. Muitos problemas de ordem política, social e administrativa haverão de ser enfrentados e superados, para que se torne efetiva a garantia de acesso à justiça.
4. O direito processual civil no Brasil
Com certo descompasso com a Europa, devido obviamente às diferenças históricas de civilização e grau de desenvolvimento, o processo civil brasileiro tem incorporado, no respectivo ordenamento jurídico, as grandes ideias florescidas no velho mundo.
No Império e nas quatro primeiras décadas da República, nosso processo permaneceu atrelado às tradições do praxismo lusitano. Dominava todo o sistema um processo escrito e submetido a excessivo formalismo, sujeito, portanto, ao risco de nulidades abundantes, de exceções numerosas e a uma quantidade de recursos injustificável.
O Código de 1939, resultante de um esboço de PEDRO BATISTA MARTINS, teve o propósito de consagrar o princípio da oralidade, segundo o exemplo do importante Código de Processo Civil da Áustria, redigido por KLEIM, e as lições doutrinárias de CHIOVENDA. Representou, sem dúvida, o passo decisivo para fazer com que nosso direito processual civil penetrasse as sendas do processo cientificamente concebido. O primeiro efeito foi o estímulo às obras doutrinárias que valorizaram nosso acervo jurídico, como as de PONTES DE MIRANDA, AMARAL SANTOS, MACHADO GUIMARÃES, BUENO VIDIGAL, ALFREDO BUZAID, CELSO BARBI, AMÍLCAR DE CASTRO, LOPES DA COSTA, FREDERICO MARQUES, SILVA PACHECO e muitos outros.
A ciência processual viria ainda na vigência do Código de 1939, a sofrer enorme incremento entre nós graças à presença, durante os anos da 2ª Guerra, do notável professor da Universidade de Milão, ENRICO TULLIO LIEBMAN, que, perseguido pelo fascismo viera a instalar-se em São Paulo, onde lecionou na Faculdade do Largo do São Francisco.
Com as luzes emanadas da doutrina de LIEBMAN e das fontes mais atualizadas do direito europeu, surgiu o novo Código de Processo Civil editado em 1973 com base em projeto elaborado pelo Professor ALFREDO BUZAID.
Seu compromisso, confessado na Exposição de Motivos, era com a “administração da Justiça”, e não simplesmente com “a definição de direitos na luta privada entre os contendores”. O direito processual deve ser fiel à finalidade do processo” que é de ordem pública, ou seja, “satisfazer o interesse público da atuação da lei na composição dos conflitos”. O dar razão a quem efetivamente a tem – e isso é que o processo visa alcançar – “é, na realidade, um interesse público de toda sociedade”.
O lado ético da prestação jurisdicional foi ressaltado no Código pela enumeração dos deveres das partes e procuradores e pela severa censura aos atos de litigância de má-fé, assim como pela investidura do juiz de poderes para prevenir ou reprimir qualquer ato atentatório à dignidade da justiça.
A celeridade processual foi havida como essencial e, dentre os deveres do juiz foi solenemente inserido o de “velar pela rápida solução do litígio” (art. 125, II) e de denegar toda diligência “inútil” ou “meramente protelatória” (art. 130).
Ainda com o mesmo propósito, o princípio da oralidade foi abrandado, de modo a dispensar a audiência de instrução e julgamento nos casos de revelia e das questões apenas de direito ou fundadas somente em prova documental (“julgamento antecipado da lide”); o procedimento ordinário foi sensivelmente simplificado; as exceções foram reduzidas a apenas três; o procedimento sumário foi adotado para causas de menor valor e para determinados tipos de litígio; o sistema de nulidades foi redigido em termos bastante claros e sua tônica foi à rejeição da nulidade sempre que não houver prejuízo efetivo para a parte e que se tiver alcançado o objetivo do ato processual, ainda que praticado de forma irregular; a tentativa de conciliação das partes foi reintroduzida no processo brasileiro, devendo ser obrigatoriamente promovida no início da audiência de instrução e julgamento.
Sem embargo de todos esses propósitos e mecanismos do CPC de 1973, o ideal de celeridade processual continuou inatingido e o clamor social contra a morosidade da justiça se avolumou, levando o legislador a inovar tanto por meio de alterações do Código como pela criação de outros remédios processuais disciplinados em leis extravagantes.
A última década do século XX, dessa maneira, caracterizou-se, em termos de jurisdição civil, por duas frentes de renovação do direito positivo: 1) uma voltada para a criação, ao lado do CPC, de ações especiais para tutelar os interesses difusos e os direitos coletivos (ação civil pública, mandado de segurança coletivo, ações coletivas de defesa do consumidor etc.); 2) outra endereçada ao aprimoramento do Código de Processo Civil.
Na década de 1990 mais de uma dezena de leis se ocupou de alterar o texto do Código de 1973, todas com o declarado intuito de simplificar seus procedimentos, com vistas à maior celeridade na solução dos litígios, e de, sobretudo, impregnar o processo de maior efetividade na realização da tutela jurisdicional. Inovações importantíssimas se deram por meio, por exemplo, da generalização das medidas de antecipação de tutela (arts. 273 e 461), da adoção da citação postal (arts. 222), pela criação da “ação monitória” (arts. 1.102-a e segs.), pela adoção da audiência preliminar para conciliação e saneamento do processo (art. 331), pela ampliação dos títulos executivos extrajudiciais (art. 585, II), etc.
Principalmente por meio da ação monitória e da antecipação de tutela, o perfil do processo civil brasileiro da atualidade sofreu profunda alteração, inspirada, sem sombra de dúvida nos propósitos de celeridade e efetividade na realização da justiça. A dicotomia que, pelas tradições romanísticas, separava o processo de conhecimento e o processo de execução, circunscrevendo-os a compartimentos distintos e autônomos, cedeu lugar a uma visão unitária da prestação jurisdicional.
Não há mais a obrigatoriedade de primeiro “acertar” sempre o direito subjetivo do litigante por meio da sentença e da res iudicata para depois dar início à realização prática desse mesmo direito pelas vias do processo de execução.
Hoje, havendo necessidade de evitar o dano ou de reprimir a litigância temerária, e existindo condições para um juízo sumário de verossimilhança, a atividade executiva pode ser antecipada e, embora em caráter provisório, a satisfação do direito material sub iudice pode ser realizada, ainda no curso do processo de conhecimento, antes mesmo da sentença de mérito. A realização forçada do direito da parte deixou de ser privilégio apenas do processo de execução.
O procedimento ordinário, portanto, não é mais puro procedimento de acertamento ou definição de direitos controvertidos. É, também, procedimento que permite atos materiais (atos executivos) dentro da mesma relação em que se busca a sentença de mérito.
A reforma do CPC, então, conduziu o processo de conhecimento para um sistema interdital, que já era conhecido do direito romano e que vigorava ao lado da actio (puro processo de conhecimento) e que, quando observado, permitia ao pretor deferir liminares satisfativas, antes da solução do litígio pela sentença. Foi desse sistema interdital romano, que herdamos as atuais ações possessórias, ou seja, os interditos possessórios, cuja característica fundamental é a possibilidade de decretação de medida tutelar da posse ofendida ou ameaçada in limine litis.
Nosso processo civil, tal qual o processo dos principais países europeus, portanto, confere ao litigante ampla tutela de urgência, seja por meio das medidas cautelares, seja por meio das medidas de antecipação de tutela satisfativa.
Nada obstante toda essa modernização processual, a justiça brasileira continua desacreditada aos olhos da sociedade pela excessiva demora na solução dos litígios. É a dura e lastimável realidade.
5. A crise do processo não é brasileira, é universal
Ao findar o século XX, nem mesmo as nações mais ricas e civilizadas da Europa se mostram contentes com a qualidade da prestação jurisdicional de seu aparelhamento judiciário. A crítica, em todos os quadrantes, é a mesma: a lentidão da resposta da justiça, que quase sempre a torna inadequada para realizar a composição justa da controvérsia. Mesmo saindo vitoriosa no pleito judicial, a parte se sente, em grande número de vezes, injustiçada, porque justiça tardia não é justiça e, sim, denegação de justiça.
Na Itália, que como o Brasil, passou e vem passando nos últimos anos, por uma sucessão de reformas de seu Código de Processo Civil, TARZIA, relator do último projeto, adverte que as simples alterações legislativas, por si só jamais terão força para combater a crônica ineficiência dos serviços judiciários, cujas raízes são mais profundas e ultrapassam, amplamente, o mero esquema procedimental. Qualquer reforma da lei processual, segundo o jurista italiano, será impotente para desatravancar a prestação jurisdicional, “se non accompagnata da profonde riforme di struttura, che attengono all’ordinamento giudiziario, all’organico dei giudici, al personale ausiliario, agli strumenti materiali che costituiscono l’indispensabile supporto per l’esercizio della giurisdizione[6]”.
Na França, ROGER PERROT faz interessantes observações sobre a reforma operada no século expirante nos procedimentos do CPC, dentre os quais destaca como as mais importantes inovações a antecipação de tutela (référé-provision) e o procedimento monitório (injonction de payer).
Registra, no entanto, que continua a existir um descompasso entre a demanda e a oferta dos serviços judiciários, frustrando a garantia constitucional de acesso à justiça.
Observa, ainda, o Prof. PERROT que, em nossos tempos, a angústia da sociedade diante da demora da prestação jurisdicional tornou-se mais intensa, não só pelo estímulo constitucional de acesso à justiça (direito cívico valorizado pelas constituições de todo o mundo civilizado), mas também e principalmente sobre a nova qualidade dos litígios. Hoje as demandas não se restringem, como outrora, ao direito de propriedade e de sucessão (questões que naturalmente exigiam ou toleravam processos lentos e complexos). O que hoje predomina no foro são as questões de massa e de interesses imediatos da pessoa, como as derivadas do direito de família, de locação, de indenização e pensionamentos por ato ilícito, as provocadas pelas relações de consumo, cuja solução não pode demorar, obviamente[7].
Muito embora disponha de uma das mais bem aparelhadas e eficientes justiças da Europa, a Alemanha também não está satisfeita com a prestação jurisdicional. Reclama a sociedade tedesca da sobrecarga de processos em seus tribunais e o seu volume não para de crescer[8].
Tanto entre os franceses como entre os alemães há um consenso de que não se deve admitir a solução do agigantar do volume dos processos por meio de “uma expansão indefinida do número de juízes.[9]”. Os custos dessa perpétua ampliação dos órgãos judiciários são insuportáveis mesmo para os países mais ricos[10].
Entre nós, também, vozes abalizadas reconhecem que não será pela via do simples crescimento numérico dos juízes que se terá de enfrentar o problema social da impotência da Justiça para dar vazão satisfatória à gigantesca e sempre crescente demanda pela prestação jurisdicional. MONIZ ARAGÃO é um daqueles que não vêem no aumento do número de juízes a “solução para o crescimento do volume de litígios[11]”. Seu posicionamento encontra respaldo nas ideias, entre outros, de GERHARD WALTER[12].
É, portanto, preciso conscientizar-se de que o aprimoramento da prestação jurisdicional não acontecerá somente em virtude de modificações procedimentais, nem tampouco do simples crescimento numérico dos juízes disponíveis. A solução para o mal da demora dos processos, seja aqui, seja na Europa, terá de ser procurada por outras formas[13].
6. Os caminhos realmente úteis para se tentar o aprimoramento da Justiça civil
É lastimável, mas não se pode deixar de reconhecer o regime caótico em que os órgãos encarregados da prestação jurisdicional no Brasil trabalham tanto do ponto de vista organizacional, como principalmente em torno da busca de solução para sua crônica inaptidão para enfrentar o problema do acúmulo de processos e da intolerável demora na prestação jurisdicional. Não há o mínimo de racionalidade administrativa, já que inexistem órgãos de planejamento e desenvolvimento dos serviços forenses, e nem mesmo estatística útil se organiza para verificar onde e porque se entrava a marcha dos processos.
Sem o apoio em dados cientificamente pesquisados e analisados, a reforma legislativa dos procedimentos é pura inutilidade, que só serve para frustrar, ainda mais, os anseios da sociedade por uma profunda e inadiável modernização da Justiça. Sem estatística idônea, qualquer movimento reformista perde-se no empirismo e no desperdício de energias por resultados aleatórios e decepcionantes.
Além disso, pensar-se em reformar a lei sem se preocupar com a reforma simultânea ou sucessiva dos agentes que irão operar as normas renovadas, chega a ser uma utopia, para não dizer uma temeridade.
Com a lucidez que lhe é própria, adverte MONIZ ARAGÃO, a propósito desses temas:
“De há muito tenho notado que não há no Brasil preocupação com duas questões de suma importância para localizar dificuldade no funcionamento do aparelho judiciário e tentar resolvê-las com dados reais e concretos, ao invés de ensaiar experiências fundadas em dados empíricos. Uma dessas questões é a da estatística judicial, que permitirá radiografar e diagnosticar os males que afligem e entravam a justiça; outra é a dos rendimentos que é lícito esperar dos magistrados, pois há os que produzem mais e os que produzem menos, sem que jamais se tenha tentado apurar qual a produção que se deve esperar de cada um e quais os meios de obter que ela seja alcançada[14]”.
O certo é que sem órgãos adequados de estatística e de planejamento, o que a visão empírica do grave problema da justiça brasileira evidencia para os pensadores do direito processual é a realidade de “um grande descompasso entre a doutrina e a legislação de um lado; e a prática judiciária, de outro. Ao extraordinário progresso científico da disciplina processual não correspondeu o aperfeiçoamento do aparelho judiciário e da administração da justiça[15]”.
Em importante e sério estudo sobre a evolução do processo civil brasileiro, já em 2ª edição, SILVA PACHECO recorda a advertência de PONTES DE MIRANDA de que o direito processual é “o ramo das leis mais rente à vida, por isso, com base nele, poder-se-iam classificar os povos”. Acrescenta, ainda, a lição de G. J. HAMIOM de que é pelo processo que “se diferenciam os sistemas jurídicos civilizados[16]”, para, em seguida, concluir:
“Entretanto, ao estudá-lo, forçoso é reconhecer: a) as leis processuais ou o sistema de lei processual civil; b) o processo civil, como fato social, como instituição, como relação entre as partes (ação) e o juiz (jurisdição), com a interveniência instrumental de diversos órgãos auxiliares[17]”.
Como pretender, então, resolver o problema da lentidão da justiça apenas reformando normas processuais? O conhecimento objetivo e integral da sociedade e de suas instituições fundamentais, dentre elas o processo civil, jamais poderá ser obtido “pelo simples estudo de suas estruturas normativas ou legais, em virtude do fenômeno do formalismo nelas dominante[18]”.
O que urge enfrentar e analisar, não é a lei em si, mas seu impacto entre a ação da parte que postula a prestação jurisdicional e a conduta dos órgãos encarregados de realizá-la. E o que, empiricamente, se constata é que, malgrado as sucessivas alterações das leis processuais, a Justiça continua “rotineira e ineficiente”, apegada a métodos arcaicos e que, fatalmente, redundam em “julgamentos tardios”, que mais negam do que distribuem a verdadeira justiça[19].
O Poder Judiciário é lamentável reconhecê-lo, é o mais burocratizado dos Poderes estatais, é o mais ineficiente na produção de efeitos práticos, é o mais refratário à modernização, é o mais ritualista; daí sua impotência para superar a morosidade de seus serviços e o esclerosamento de suas rotinas operacionais.
Se se pretende enfrentar mazelas tão variadas e profundas, sem sequer buscar conhecer-lhes as entranhas e reais dimensões, e apenas se preocupando em reformar normas legais abstratas do processo civil, cair-se-á, fatalmente, “na tristura de fazer a lei bonita, monumental, que mais parecerá obra de arte, mas que se conservará intacta nas encadernações das bibliotecas daqueles que a devem operar. Urge, pois, além de conscientizar o Judiciário e os órgãos auxiliares da necessidade de modernização, impor-lhes normas destinadas a romper a rotina, a ineficiência, o anacronismo, a lerdeza e a injustiça, que a tanto equivale a justiça tardia[20]”.
Que adianta fixar a lei processual um prazo de três ou cinco dias para determinado ato da parte, se, na prática a secretaria do juízo gastará um mês ou dois (e até mais) para promover a respectiva publicação no diário oficial? Que adianta a lei prever o prazo de noventa dias para encerramento do feito de rito sumário se a audiência só vem a ser designada para seis meses após o aforamento da causa, e se interposto o recurso de apelação, só nos atos burocráticos que antecedem a distribuição ao relator serão consumidos vários meses ou até anos?
O retardamento dos processos impende reconhecer, quase nunca decorre das diligências e prazos determinados pela lei, mas, em regra, é o resultado justamente do desrespeito ao sistema legal pelos agentes da Justiça. “Quem contemplar os prazos previstos em lei ou nos regimentos dos tribunais verá que se forem respeitados o tempo necessário à tramitação do processo deixará de ser o fantasma que tanto assusta[21]”.
O que retarda intoleravelmente a solução dos processos são as etapas mortas, isto é, o tempo consumido pelos agentes do Judiciário para resolver a praticar os atos que lhes competem. O processo demora é pela inércia e não pela exigência legal de longas diligências.
NICETO ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, grande processualista espanhol que engrandeceu com suas lições a Universidade Nacional do México, quando se dispôs a anotar o anteprojeto do EDUARDO COUTURE para o Código de Processo Civil do Uruguai, criticou a preocupação do texto apenas com a economia processual preconizada como orientação para o juiz e órgãos auxiliares da Justiça. Ressaltava que “não basta economia, há necessidade também de rapidez”, já que, – acrescentamos – justiça demorada, tardia, equivale a denegação de justiça, para concluir:
“e que esta (a rapidez) somente se consegue evitando as etapas mortas, ou seja, a inatividade processual durante a qual os autos ou expedientes forenses permanecem paralisados nos escaninhos forenses”[22].
O drama envolve, são certas, algumas complicações de ordem normativa, como v.g., o excesso de recursos permitidos pela lei processual brasileira. Todavia, seu núcleo, seu ponto crítico, situa-se no plano administrativo, ou de organização e gerenciamento dos serviços forenses, já que “são as etapas mortas e não os prazos previstos em lei que retardam a marcha dos processos a ponto de exasperarem partes, advogados, interessados, com graves prejuízos para o bom nome da justiça e do próprio Estado”[23].
Na Itália, onde atualmente, se desenvolve intenso trabalho legislativo de reforma do Código de Processo Civil, o Prof. GIUSEPPE TARZIA, que desempenha notável papel no importante projeto, também teve o cuidado de localizar e destacar o foco da crise judiciária fora do campo das normas procedimentais:
“Os problemas mais graves da Justiça Civil, pelo menos na Itália, dizem respeito, de outra parte, não à estrutura, mas à duração do processo, dizem respeito aos tempos de espera, aos ‘tempos mortos’, muito mais que aos tempos de desenvolvimento efetivo do juízo. A sua solução depende, portanto, em grande parte, da organização das estruturas judiciárias e não das normas do Código de Processo Civil. A aceleração da Justiça não poderá, portanto, ser assegurada somente com a nova lei ou com a revisão de todo o processo civil italiano, que está atualmente em estudo”[24].
Como enfrentar esse tipo de problema, se não há fonte de controle e estatística para revelar, com precisão, onde a marcha processual se emperra e como sair dos respectivos gargalos?
A legislação processual é sem dúvida um sistema de técnica de realizar a composição dos litígios, mas não é um sistema completo e exaustivo, pois pressupõe organismos oficiais por meio dos quais irá atuar. Os métodos e recursos de trabalho desses organismos são vitais para que o propósito sistemático da lei processual seja corretamente alcançado. Para manter uma sincronia entre a norma legal e sua operacionalidade administrativa, é preciso conhecer, cientificamente, as causas que, in concreto, frustram o desiderato normativo. E isto, obviamente, será inatingível, pelo menos com seriedade e segurança, se a organização dos serviços judiciários não contar com órgãos especiais de estatística e planejamento.
As leis têm de traçar procedimentos simples, claros, ágeis. Mas, para fazê-los operar não pode a Justiça depender apenas do gênio individual de cada juiz ou auxiliar. É necessário que a organização dos serviços da Justiça se faça segundo os preceitos técnicos da ciência da administração e com o emprego dos meios e recursos tecnológicos disponíveis.
Não serão, como é intuitivo, as simples reformas das leis de procedimento que irão tornar realidade, entre nós, as garantias cívicas fundamentais de acesso à justiça e de efetividade do processo. O tão sonhado processo justo, que empolgou e dominou todos os processualistas no final do século XX continua a depender de reformas, não de leis processuais, mas da justiça como um todo.
Cabe, agora, à sociedade do século XXI, exigir dos responsáveis pela Justiça brasileira que a façam “passar pela mesma revolução tecnológica por que estão passando as modernas administrações públicas e privadas, sob o impacto do planejamento, coordenação, controles, estatística, economia, ciência da administração, teoria das comunicações, informática, cibernética, processamento de dados, etc.[25]”. É preciso que os juristas tenham a humildade e a sabedoria de reconhecer que a modernização e aperfeiçoamento da Justiça não é tarefa que eles sozinhos possam executar.
7. Uma última observação sobre a relevância dos meios alternativos de realização da justiça
Desde que a consciência jurídica proclamou a necessidade de mudar os rumos da ciência processual para endereçá-los à problemática do acesso à Justiça, houve sempre quem advertisse sobre o risco de uma simplificação exagerada do processo judicial produzir o estímulo excessivo à litigiosidade, o que não corresponde ao anseio de convivência pacífica em sociedade. A proliferação de demandas por questões de somenos representa, sem dúvida, um complicador indesejável. Quando o recurso à Justiça oficial representa algum ônus para o litigante, as soluções conciliatórias e as acomodações voluntárias de interesse opostos acontecem em grande número de situações, a bem da paz social. Se, porém, a parte tem a seu alcance um tribunal de fácil acesso e custo praticamente nulo, muitas hipóteses de autocomposição serão trocadas por litigiosidade em juízo. É preciso, por isso mesmo, assegurar o acesso à Justiça, mas não vulgarizá-lo, a ponto de incentivar os espíritos belicosos à prática do “demandismo” caprichoso e desnecessário.
As últimas décadas do Século XX vieram demonstrar que o risco antes temido tornou-se apreensiva realidade. Após a implantação da Democracia ampla com a valorização do direito cívico de todos serem ouvidos em juízo, o volume dos processos, em todos os segmentos da jurisdição, tornou-se explosivo. Seu crescimento é incessante. Reconhece-se estar ocorrendo, em toda parte, uma verdadeira euforia no ânimo de demandar.
Essa vigorosa emancipação da cidadania tem gerado a tendência geral de cada vez mais se usar as vias processuais para a solução dos litígios, notando-se uma disposição de amplas camadas da população a não mais se resignar diante da injustiça e a exigir sempre a proteção dos tribunais. Fala-se, mesmo, numa síndrome de litigiosidade, para a qual concorre, também, a redução na sociedade contemporânea, da “capacidade para dialogar”. Nem se pode ignorar a pesada carga que, nesse incremento das tarefas judiciais, exerce o próprio Estado por meio de seu volumosos atrita com os cidadãos.
Observa-se, na Alemanha, um esforço legislativo intenso para introduzir modificações no direito processual, visando à simplificação dos procedimentos e a maior rapidez de solução dos litígios, dentro do que permite cada tipo de processo.
Mas, independentemente desses esforços de renovação legislativa, o que mais tem impressionado a doutrina alemã é a tese de que se deve impulsionar a reflexão sobre a grande crise da jurisdição. “En este sentido, se há pasado hoy a debatir más intensamente las causas y las formas de sobrecarga de los tribunales, las posibilidades de descongestionar el interior de los tribunales e, sobre todo, las posibilidades alternativas de solución de conflictos.[26]”
Também na Alemanha, tal como entre nós, se reclama dos operadores do direito processual uma maior preocupação com os problemas sociológicos, para tentar “dar resposta à generalizada insatisfação ou desconfiança frente à Justiça”. Nem sempre se pode esperar da decisão judicial a verdadeira e efetiva participação dos conflitos. Daí a importância do papel reservado às soluções alternativas de litígio, antes do processo ou em seu curso.
A partir da experiência do direito anglo-americano com os chamados “meios alternativos” de solução extrajudicial de conflitos de interesses – Alternative Dispute Resolution (ADR) – a doutrina européia e latino-americana voltou os olhos para a necessidade de buscar na justiça coexistencial um remédio para enfrentar a crise da justiça oficial.
O que conduziu o direito norte-americano a se preocupar com fontes alternativas de solução de litígios foi a constatação, de um lado, da inadequação dos tribunais ordinários para dirimir certos tipos de conflito, e, de outro lado, a impossibilidade de o enorme e crescente volume de litígios ser absorvido exclusivamente pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, para o Prof. BRYANT GARTH, o acesso à justiça, para o seu país, diversamente do que se passa em alguns países europeus, “não é visto ali como um direito social, mas antes como um problema social, do qual uma solução consiste em retirar dos tribunais boa quantidade de litígios[27]”.
Mas, não é só para desafogar a justiça ordinária que se reconhece importância à justiça coexistencial (ou conciliatória). Esta, muitas vezes, chega não só a resultados mais rápidos e menos onerosos que a justiça comum, como a resultados melhores, até mesmo em qualidade, do que os produzidos pelo processo contencioso[28].
No direito francês, a reforma do Código de Processo Civil prestigiou a “solução alternativa dos litígios”, impondo e valorizando a conciliação e a mediação.
A solução consensual, segundo ROGER PERROT, favorece a todos os sujeitos do processo: primeiro, o jurisdicionado que economizará as despesas de um processo, e, em seguida, a Justiça, que se espera fique liberada de certo número de causas.
De duas maneiras a lei francesa enfrenta o problema: a) entre aquilo que constitui a função do juiz, se inclui “a missão de conciliar as partes” (art. 21 do novo CPC); b) além disso, em todo órgão judicial, deverá existir um elemento auxiliar do juiz, denominado “conciliador”.
O conciliador é designado pelo juiz e atua preventivamente, isto é, antes da abertura do processo judicial. Não é um magistrado. “Sua função não é a de julgar, mas simplesmente a de aproximar as posições. Se ele o consegue, lavra um termo de conciliação que documenta o acordo das partes e ao qual, em seguida, o tribunal dará efeito executivo. Se não o consegue, seu papel termina aí, e não lhe compete formular opinião”. Essa instituição, para PERROT, “oferece às partes uma estrutura amigável destinada a evitar o processo”. Seus resultados são positivos, principalmente em litígios de pequena monta.
Mesmo quando o processo já se instalou na Justiça, ainda cabe ao juiz valer-se da intervenção de um agente conciliador, que então se denomina “mediador”. Seu papel é o mesmo do “conciliador”: “não é um juiz; sua missão consiste simplesmente em aproximar as posições antagônicas, a fim de tentar encontrar solução amigável para litígio”.
PERROT resume e louva essa nova modalidade de solução alternativa dos litígios da seguinte maneira: “Através da conciliação e da mediação, vê-se aparecer uma sorte de justiça consensual. Neste instante, ela goza de todos os favores do legislador francês, que nela enxerga um meio de aliviar os tribunais e de tornar mais humana a Justiça. A preocupação é louvável; liga-se à idéia de que, neste fim de século XX, o jurisdicionado aspira a uma Justiça mais simples, menos solene, mais próxima de suas preocupações quotidianas, àquilo que numa palavra se de denomina Justiça de proximidade”.
Na América Latina, merece destaque a posição da Argentina, que há algum tempo alterou o seu Código de Processo Civil para instituir em caráter obrigatório a mediação prévia a todos os juízos, destinada a promover a comunicação direta entre as partes em busca da “solução extrajudicial da controvérsia[29]”.
O novíssimo Código de Processo Civil de Portugal, preocupado também com a importância da solução consensual dos conflitos, preconiza a audiência prévia de conciliação.
Para a doutrina argentina, espelhada nas experiências já realizadas em outros países, a implementação de formas alternativas de resolução dos conflitos produz duplo e relevante efeito:
a) a curto prazo, tende a aliviar a sobrecarga de trabalho dos juízes; e
b) a longo prazo, se pode esperar uma mudança de mentalidade da sociedade, especialmente dos operadores do direito, por meio da qual, a um só tempo, será possível “um maior acesso à justiça” conjugado com “uma baixa no índice de litigiosidade, ou seja, redução do ingresso de causas no sistema jurisdicional[30]”.
Enquanto a solução contenciosa frequentemente agrava a discórdia entre os litigantes, a solução alternativa coexistencial ou conciliatória pode, não raro, salvar e preservar relacionamentos jurídicos que, naturalmente, devam ser duradouros.
Não basta, outrossim, prever simplesmente, como faz nosso Código de Processo Civil, que haverá sempre uma audiência de conciliação. O mais importante é que o conciliador seja preparado, técnica e psicologicamente, para promover a solução consensual e, para tanto, tudo aconselha que não seja o próprio juiz togado, isto é, a aquele a quem toca julgar contenciosamente o conflito[31].
Não podem, destarte, os reformadores do direito processual brasileiro fecharem os olhos para essa realidade universal de valorização das vias alternativas de solução de litígios.
O que realmente convém – como adverte MONIZ ARAGÃO – é, também, no direito brasileiro, “engendrar e oferecer novas fórmulas de alcançar a composição dos conflitos, de que a arbitragem e os juizados especiais são exemplos, mas não devem ser consideradas soluções únicas; há que se investigar se é possível ofertar outras, aceitáveis, que sirvam de alternativas para os interessados[32]”.
8. Conclusões
Tal como BARBOSA MOREIRA, também me convenço, cada vez mais, “de que, de vez em quando, o processualista deve deixar de lado a lupa com que perscruta os refolhos de seus pergaminhos e lançar à sua volta um olhar desanuviado. O que se passa cá fora, na vida da comunidade, importa incomparavelmente mais do que aquilo que lhe pode proporcionar a visão de especialista. E, afinal de contas, todo o labor realizado no gabinete, por profundo que seja, pouco valerá se nenhuma repercussão externa vier a ter… O processo existe para a sociedade, e não a sociedade para o processo”[33].
O que é lícito esperar é que, por meio de modernas técnicas de gerenciamento de qualidade, os responsáveis pela Justiça brasileira assumam postura de maior ousadia e criatividade.
Ousadia para traduzir em provimentos práticos aquilo que a ideologia da Carta Magna assegura aos cidadãos em termos de garantias fundamentais e da respectiva tutela jurisdicional. Criatividade, para superar vícios e preconceitos arraigados nas arcaicas praxes do foro e para forjar “uma vontade firmemente voltada à edificação de uma nova Justiça. Mais transparente, mais eficaz e efetiva, econômica e, sobretudo, rápida”[34].
Urge superar, sem mais delongas, o estágio da retórica jurídica para penetrar na prática inadiável da gestão de qualidade da prestação jurisdicional. Só assim, tranformar-se-á o processo civil no efetivo instrumento de realização da missão cívica que a declaração fundamental lhe destina.
É, enfim, a hora de dar vida à lição doutrinária sobre a efetividade e instrumentalidade do processo; de tornar realidade a vontade política proclamada na Carta Magna, asseguradora da paz social e aplacadora da natural sede de justiça da sociedade.
É por isso que estou certo, acima de tudo, da extrema necessidade de empenhar-se a Nação na reforma dos serviços judiciários e no aperfeiçoamento de seus operadores em todos os níveis, quer para solucionar contenciosamente os conflitos, quer para estimular a busca de soluções consensuais alternativas. Sem aprimorar os homens que irão manejar os instrumentos jurídicos, toda reforma da lei processual será impotente para superar os verdadeiros problemas da insatisfação social com o deficiente acesso à Justiça que, entre nós, o Poder Judiciário hoje proporciona.
[1] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris Editor, 1988, p. 8.
[2] CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 13.
[3] PACHECO, José da Silva. Evolução do Processo Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 387.
[4] Teoria Geral do Processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 35 e segs. e 81 e segs.
[5] PACHECO, José da Silva, ob. cit., p. 387-388.
[6] TARZIA, Giuseppe. Lineamenti del nuovo processo di cognizione. Milano: Giuffrè, 1996, n.º 10, p. 54.
[7] PERROT, Roger. O processo civil francês na véspera do século XXI. Trad. de Barbosa Moreira, Rev. Forense, v. 342, p. 161-168.
[8] HEYDE, Wolfgang. La Jurisdicción, in Manual de Derecho Constitucional. In: BENDA et al, Madrid: Marcial Pons Ediciones, 1996, p. 819.
[9] HEYDE, Wolfgang, op. cit., loc. cit.
[10] PERROT, Roger, op. cit., loc. cit.
[11] MONIZ DE ARAGÃO. As tendências do processo civil contemporâneo. Gênesis – Revista de Direito Processual Civil, v. 11, jan-março/99, p. 155. Para BARBOSA MOREIRA, o inusitado avolumar de transgressões jurídicas, fruto da crise mundial em que se debate a humanidade em nossos dias, estigmatizada por profundo desequilíbrio dos valores éticos, é que responde pelo crescimento assustador dos serviços do Poder Judiciário. Como os quadros da Justiça “não pode alargar-se na mesma proporção em que cresce a demanda, inevitáveis serão os engarrafamentos do trânsito” (O juiz e a cultura da transgressão. Revista Jurídica, v. 267, p. 10, jan./2000).
[12] WALTER, Gerhard. Cinquanta anni di studi sul processo civile in Germania: dal construtivismo all’apertura internazionale, 1998, p. 36.
[13] MONIZ DE ARAGÃO. As tendências do processo civil contemporâneo. Gênesis – Revista de Direito Processual Civil, v. 11, jan-março/99, p. 155.
[14] MONIZ DE ARAGÃO, op. cit., p. 155-156.
[15] GRINOVER, Ada Pellegrini. Tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro, 1990, p. 177 apud PACHECO, José da Silva, op. cit., p. 309.
[16] PACHECO, José da Silva, op. cit., n.º 360, p. 350.
[17] PACHECO, José da Silva, op. cit., loc. cit.
[18] RIGGS, Fred W., A Ecologia da Administração Pública, Rio de Janeiro: FGV, 1964, p. 123 apud SILVA PACHECO, op. cit., loc. cit.
[19] CAMPOS, Roberto, cit. por SILVA PACHECO, op. cit., n.º 363, p. 352.
[20] PACHECO, José da Silva, op. cit., n.º 363, p. 353.
[21] MONIZ DE ARAGÃO, op. cit., p. 156.
[22] ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Estúdios de teorial general e historia del proceso. México: UNAM, 1974, apud PRATA, Edson. Direito processual civil. Uberaba: Ed. Vitória, 1980, p. 228.
[23] PRATA, Edson. Direito processual civil cit., p. 229.
[24] TARZIA, Giuseppe. O novo processo civil de cognição na Itália. Ajuris, 65/89.
[25] PACHECO, José da Silva, op. cit., n.º 374, p. 366.
[26] HEYDE, op. cit., p. 820.
[27] Observação feita por ocasião do simpósio de Upsala, Suécia, abril de 1992, apud CAPPELLETTI, Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça, Rev. Forense, 326/127.
[28] CAPPELLETTI, op. cit., p. 126.
[29] CUNHA, J. S. Fagundes. Da mediação e da arbitragem endoprocessual. Gênesis – Rev. de Direito Processual Civil, 6/644.
[30] CUNHA, J. S. Fagundes, op. cit., p. 641-642.
[31] CAPPELLETTI, e GARTH. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, pp. 86 e 110-111.
[32] MONIZ DE ARAGÃO, op. cit., p. 159.
[33] MOREIRA, Barbosa. O juiz e a cultura, cit., p. 12.
[34] NALINI, José Renato. A gestão de qualidade na Justiça. Revista dos Tribunais, v. 722, p. 373.