RKL Escritório de Advocacia

CAUTELAR ANTECEDENTE À RJ E SUSPENSÃO DAS EXECUÇÕES DE CREDORES FIDUCIÁRIOS

CAUTELAR ANTECEDENTE À RJ E SUSPENSÃO DAS EXECUÇÕES DE CREDORES FIDUCIÁRIOS

Doralúcia Azevedo Rodrigues

 

A recuperação judicial, regulamentada pela Lei nº 11.101/2005, com as recentes alterações introduzidas pela Lei nº 14.112/2020, se trata de uma medida que objetiva o soerguimento da sociedade empresária, que está passando por uma crise econômico-financeira que não seja substancial a ponto de levar a referida sociedade à quebra ou falência. Com essa medida, instaura-se o chamado “concurso de credores”, submetendo todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, por força do caput do artigo 49 da Lei nº 11.101/2005.

Porém, embora número de pleitos de recuperação judicial tenha crescido em 70%, comparando-se 2023 e 2022 [1], ainda existem alguns devedores reticentes sobre a utilização deste instrumento jurídico para o soerguimento societário em virtude de obstáculos como superação da desconfiança do mercado, elevados gastos com contratação de profissionais multifacetados para trabalhar no processo, desde a reunião dos vários documentos necessários para ajuizamento, dispostos no artigo 48 c/c 51 da Lei nº 11.101/2005, até o acompanhamento e a concessão da recuperação judicial, obtenção de crédito, negociação com os credores e manutenção das atividades empresariais.

Para que o devedor se motive [2] a requerer processamento da recuperação judicial e, assim, superar as celeumas levantadas, a legislação lhe oferece “benefícios”, sendo um dos mais relevantes a concessão do período de 180 dias de suspensão das ações e execuções contra ele ajuizadas e do curso da prescrição das obrigações do devedor, além da proibição de constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial.

Tal “benefício” é nomeado “stay period”, disciplinado no §4º do artigo 6º da Lei n.º 11.101/2005, e tem como finalidade dar um “respiro” em suas dívidas, facilitando a preservação da empresa, assim como gerando um ambiente negocial mais favorável.

Mas e se os credores mais importantes de uma determinada sociedade em dificuldade forem as instituições financeiras[3], que, em seus contratos, preveem a alienação fiduciária de direitos sobre os títulos de crédito, fazendo com que os créditos sejam “extraconcursais”, i.e., excluídos do “concurso de credores”?

É isso que ocorre na realidade da legislação brasileira, pois se estabeleceu instrumento chamado de “trava bancária”, que é constatada quando há créditos de instituições financeiras, oriundos de negócios fiduciários, os quais não se submetem aos efeitos deste tipo de processo, já que o titular do crédito possui direito real sobre bem próprio, o qual lhe foi dado em garantia de um negócio jurídico principal[4], consoante previsto no artigo 49, §3º da Lei nº 11.101/2005.

Nesse contexto, a jurisprudência pátria tem sido deveras cautelosa quanto à possibilidade da “quebra”, ainda que momentânea, da trava. Por exemplo, é inadmissível a equiparação dos recebíveis cedidos fiduciariamente aos bens de capital, que são aqueles essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão para fins de aplicação do § 7º-A do artigo 6 da Lei nº 11.101/2005[5], consoante entendimento firmado pelo STJ no AgInt nos EDcl no REsp 1.680.456/SE, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 30/8/2021, DJe de 3/9/2021.

Credores fiduciários

Então, questiona-se: existe algum instrumento, resguardado pela Lei nº 11.101/2005, que resulte, a um só tempo, em uma suspensão das execuções propostas contra a devedora pelo prazo de até 60 dias, e que essa suspensão atinja todos os credores indicados pela devedora, independentemente se seus créditos são concursais ou extraconcursais, como é o caso dos credores fiduciários? A resposta pode ser encontrada na jurisprudência em formação, que deve, sem dúvidas, ser objeto de estudo de todo jurista que atue na área.

Conforme precedente recente e inovador, o Agravo Interno Cível 2020046-39.2024.8.26.0000, publicado em 25/03/24, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP, decidiu-se que, em se tratando de procedimento de tutela cautelar instaurado com base no 20-A e seguintes da Lei nº 11.101/2005, é possível a produção de efeitos da suspensão, tratada no artigo 20-B, § 1º,  Lei nº 11.101/2005[6], diante de todos os credores convidados a participar do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no Cejusc, ainda que seus créditos posteriormente possam ser tidos como extraconcursais, como créditos das instituições financeiras que sejam garantidos com alienação fiduciária, no caso de início do processo de concurso de credores. Observemos a ementa do julgado em questão:

Tutela cautelar antecedente ao ajuizamento de recuperação judicial – Pleito fundado no artigo 20-B, inciso IV e § 1º da Lei 11.101/2005 – Decisão de deferimento parcial da tutela de urgência – Suspensão pelo prazo de 60 (sessenta) dias de execuções judiciais e medidas administrativas coercitivas e constritivas, feita limitação quanto aos créditos eventualmente sujeitos a uma futura recuperação judicial – Antecipação da tutela recursal deferida no agravo antecedente que merece ser mantida – Probabilidade do direito alegado e do risco de dano presentes – Orientação fornecida pela doutrina e pelo Enunciado 6 do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falência (FONAREF) no sentido de produzir efeitos dita suspensão diante de todos os credores convidados a participar do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC – Decisão mantida – Recurso desprovido.

(TJ-SP – Agravo Interno Cível: 2020046-39.2024.8.26.0000 São Paulo, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 25/03/2024, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 25/03/2024)

Diz-se que a compreensão é inovadora porque o procedimento tratado no artigo 20-A e seguintes da Lei nº 11.101/2005, que aborda as conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, foi incluído pela última reforma na Lei nº 11.101/2005, pela Lei nº 14.112/2020, não havendo, ainda, um verdadeiro consenso sobre essa aplicação.

Além disso, a conclusão adotada no julgado supra se revela arrojada porque o próprio TJ-SP, em julgado datado de 2022, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, já havia se manifestado no sentido de que a suspensão das ações e execuções em curso contra a autora deferida em procedimento de mediação antecedente ao processo de recuperação judicial não alcança proibição de constrições oriundas de demandas extrajudiciais ou detentores de direitos creditórios não sujeitos ao concurso recuperacional. Veja-se a ementa do Agravo de Instrumento 2182830-31.2022.8.26.0000:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Tutela cautelar antecedente a recuperação judicial – Decisão que defere a tutela cautelar em caráter antecedente (LREF, art. 20 – B, § 1º) e suspende, de maneira abrangente, todas as ações e execuções em curso contra a autora, inclusive medidas administrativas, pelo prazo de 60 dias – Minuta recursal que pretende limitar o alcance apenas a créditos não excluídos de eventual recuperação judicial – Cabimento – Texto legal que possui exegese estrita – Medida específica, deferida em procedimento de mediação antecedente ao processo de recuperação judicial, que não alcança proibição de constrições oriundas de demandas extrajudiciais ou detentores de direitos creditórios não sujeitos ao concurso recuperacional – Agravo de instrumento provido, com recomendação. Dispositivo: Dão provimento ao agravo de instrumento, com recomendação.

(TJ-SP – AI: 21828303120228260000 SP 2182830-31.2022.8.26.0000, Relator: Ricardo Negrão, Data de Julgamento: 18/10/2022, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 21/10/2022)

Com o devido respeito ao juízo formulado pelo TJ-SP no julgado ementado acima, entende-se que a compreensão adotada no Agravo Interno Cível 2020046-39.2024.8.26.0000 pode ser tida como mais adequada, tecnicamente, à finalidade da medida cautelar de suspensão das execuções, bem como à inexistência de discussão sobre concursalidade dos créditos, enquanto não iniciado o processo de concurso de credores, que pode, inclusive, nem vir a ser ajuizado, eis que o posterior ajuizamento de um requerimento de recuperação judicial não é, portanto, “condição para a deflagração da mediação pré-processual”[7].

Além disso, segundo o Enunciado 6 do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falência (Fonaref):

A medida cautelar de suspensão prevista no art. 20-B, § 1º, da Lei n. 11.101/2005 vincula os credores convidados a participar do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada, ainda que não tenham aceitado o convite, não vinculando os credores que não tenham sido convidados.

Desse modo, para dar efetividade à medida cautelar prevista no artigo 20-B, §3º da Lei 11.101, todos os credores convidados à mediação devem estar submetidos a seus efeitos. A propósito, como dito pelo relator do Agravo Interno Cível 2020046-39.2024.8.26.0000, “a análise da concursalidade de créditos esbarra, repita-se, no fato incontornável de inexistir um concurso, inviabilizando seja atingido o escopo primário da medida cautelar em apreço”. Nesse sentido, se assemelha a justificativa empregada pelo Fonaref para a edição do enunciado:

Justificativa: O objetivo da medida cautelar de suspensão das execuções é proporcionar um espaço de respiro e um ambiente mais adequado de negociação da devedora com os seus credores. Na medida em que os credores sujeitos à negociação não podem prosseguir nas suas execuções individuais, cria-se o estímulo necessário para que se sentem à mesa para negociar com a devedora. Nesse sentido, é importante esclarecer que a suspensão das execuções só faz sentido em relação àqueles credores envolvidos na mediação ou conciliação, não atingindo os demais credores que não tenham sido convidados a participar do procedimento de negociação.

Por derradeiro, a medida cautelar em questão, ao que tudo indica, promete possuir um procedimento mais facilitado e menos custoso do que o processo de recuperação judicial de per si, o que acaba mitigando as adversidades apontadas no início desse texto, sentidas pelas empresas em dificuldade. É o que se extrai do Enunciado 10 do Fonaref, que dispensa a apresentação dos documentos previstos no art. 51 da Lei n.º 11.101/2005, que devem instruir a petição inicial somente no caso de ajuizamento da ação principal de recuperação judicial:

Enunciado 10- Os documentos demonstradores de que a empresa em dificuldade preenche os requisitos legais para requerer recuperação judicial, para os fins do art. 20-B, § 1º, da Lei n. 11.101/2005, são aqueles previstos no art. 48 da Lei n. 11.101/2005.

Desse modo, observa-se que a solução ora proposta aparenta ser viável para empresas em crise que, de modo até mesmo preventivo ao ajuizamento de um processo de recuperação judicial, detenham a capacidade de negociar com os credores por ela listados.

O grande diferencial dessa proposta é o de possibilitar trazer as instituições financeiras credoras para uma mesa de acordo, com a aplicação do prazo de suspensão de 60 dias, na forma do artigo 20-B, § 1º, Lei nº 11.101/2005, independentemente de haver questionamentos sobre a extraconcursalidade do crédito, vez que não se estará diante de um concurso de credores propriamente dito.

Com isso, a estratégia processual da empresa em dificuldade permitirá que obtenha um período de “respiro”, ainda que inferior ao “stay period” do artigo 6º da lei de regência, o qual se faz essencial para que seja criado um ambiente negocial mais saudável e adequado entre credores e devedora.

[1] Exame. Número de pedidos de recuperação judicial sobe 70% em 2023, 2024. Disponível em: <https://exame.com/negocios/numero-de-pedidos-de-recuperacao-judicial-sobe-70-em-2023/> Acesso em 10 jun. 2024.

[2] A importância da motivação para a utilização da recuperação judicial como método de soerguimento da sociedade não alcança resultados positivos somente em benefício da sociedade recuperanda, “mas também dos credores, dos empregados, da própria sociedade e até mesmo do Estado, para quem a preservação da atividade empresarial saudável repercute em fatores como obtenção de recursos por meio da tributação, distribuição de rendas, aumento do índice de empregabilidade e fomento da atividade econômica”. RODRIGUES, Doralúcia Azevedo. Soberania dos credores pode evitar falência em descumprimento ao plano de recuperação. Revista Consultor Jurídico, 2024. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2024-mai-25/soberania-dos-credores-pode-evitar-falencia-em-caso-de-descumprimento-do-plano-de-recuperacao/> Acesso em 10 jun. 2024.

[3] Essa realidade é notória até nas grandes empresas, como é o caso das Americanas, cujas dívidas com bancos brasileiros ultrapassam R$ 22 bilhões. Veja-se: CNN. Dívida da Americanas com os maiores bancos brasileiros ultrapassa os R$ 22 bilhões, 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/economia/divida-das-americanas-com-os-maiores-bancos-ultrapassa-os-r-22-bilhoes/> Acesso em 10 jun. 2024.

[4] BEDÊ, Rebeca Simão; SANTOS, Saulo Gonçalves. Trava bancária: cenário de incertezas nos processos de recuperação judicial. Revista Consultor Jurídico, 2024. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2024-abr-30/trava-bancaria-cenario-de-incertezas-nos-processos-de-recuperacao-judicial/> Acesso em 10 jun. 2024.

[5] Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:        (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020)          (Vigência)

[…]

7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

[6] Art. 20-B. Serão admitidas conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, notadamente:     (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)   (Vigência)

IV – na hipótese de negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial.  (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)   (Vigência)

1º Na hipótese prevista no inciso IV do caput deste artigo, será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar, nos termos do art. 305 e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a fim de que sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do tribunal competente ou da câmara especializada, observados, no que couber, os arts. 16 e 17 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

[7] SCHMIDT, Gustavo da Rocha; BUCHAMAR, Juliana, Sistema de Pré-Insolvência Empresarial Mediação e Conciliação Antecedentes, in “Recuperação de Empresas e Falência: Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência, Coord. Luis Felipe Salomão, Flávio Tartuce e Daniel Carnio, Atlas, São Paulo, 2021, p. 265.