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CASOS DE RESTRIÇÕES AO CONSENTIMENTO NA COMPRA E VENDA

Rogério Tadeu Romano

 

I – A COMPRA E VENDA

O  contrato de compra e venda, conforme a doutrina de Orlando Gomes (Contratos, Forense, 23ª ed., p. 222), pode ser tido como bilateral, oneroso, comutativo, ou aleatório, de execução instantânea, ou diferida. Havendo obrigações para ambas as partes, sendo para o vendedor a entrega do bem e para o comprador o pagamento do preço, o que também caracteriza a onerosidade da relação de compra e venda, não há dúvidas quanto à necessária bilateralidade inerente a este tipo de contrato. Isto porque, realizada a transferência a título gratuito, caracterizada estará a doação, exigindo-se deste modo a pretensão de vantagem patrimonial pelos contratantes. A comutatividade atribuída ao contrato de compra e venda diz respeito à equivalência da força das prestações para a realização do negócio, ainda que não necessariamente idênticas a título econômico, mas sempre interdependentes para a efetivação do pacto, ou seja, apenas havendo o pagamento haverá a entrega da coisa.

Verifica-se que, na compra e venda, como qualquer outro contrato, o consenso é essencial.

Mas há limitações a ele.

 

II – A PROBIÇÃO DE VENDA DE ASCENDENTES A DESCENDENTES

Ab initio, cabe lembrar que não podem os ascendentes vender ao descendente, sem que os demais descendentes expressamente o consintam. Com essa proibição pretendeu a lei civil resguardar o princípio da igualdade das legítimas contra a defraudação que resultaria de dissimular, sob a forma de compra e venda, uma doação que iria beneficiar a um, em prejuízo dos outros. Se assim fosse feito, a consequência dessa avença seria a nulidade, pois quando a lei considera uma formalidade essencial à validade do ato, sua preterição tem essa consequência.

Não estando em jogo interesse público, é privativo dos prejudicados promover a anulação ou deixar de fazê-lo, se assim interessar. O ato é suscetível de confirmação, bastando para a sua convalidação que os outros descendentes deem, a posteriori, seu acordo. Para Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, volume III, 1975, pág. 160), seria uma venda meramente anulável.

Se os demais descendentes do vendedor não consentirem expressamente, essa venda será passível de anulação (AJ, 119:90; RT 193: 327). O prazo decadencial de 2 (dois) anos para propositura dessa ação é previsto no artigo 179 do Código Civil, conforme ensinou Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, teoria das obrigações contratuais e extracontratuais, 24ª edição, pág. 184).

É igualmente anulável a venda feita a cônjuge, sem o consentimento expresso dos descendentes do vendedor.

Ainda entendeu Caio Mário da Silva Pereira (Venda de ascendente a descendente, in Revista Forense, volume 104, pág. 45) que se a venda não é feita diretamente, mas por interposição de pessoa, o negócio é objeto de simulação, sendo atacável.

Admitia Teixeira de Freitas que a forma de consentimento pudesse ser tácita na falta de oposição (Consolidação das leis civis, art. 582, nota 84), enquanto Coelho da Rocha (Instituições de direito civil, volume II, § 805) e Cândido Mendes (Código filipino, pág. 792, nota 1, segunda coluna) reclamavam fosse expresso.

O Código Civil exige o consentimento expresso.

Acresça-se que é insuprimível, em razão de constituir a faculdade de concordar, ou não, uma prerrogativa do descendente. Deve a anuência ser provada pela mesma forma que o ato, o que significa que, se for a venda do imóvel superior ao limite legal, deve ser dada por escritura pública.

Os descendentes, cujo consentimento se requer, são os herdeiros necessários ao tempo do contrato, os mais próximos em grau, salvo o direito de representação.

A 3ª turma do STJ reafirmou entendimento de que alienação feita por ascendente à descendente é ato jurídico que pode ser anulado. O ministro Sidnei Beneti ressaltou em seu voto que já é consolidado o entendimento de que para invalidação desse ato de alienação é necessário, além da iniciativa da parte interessada, os seguintes fatores: fato da venda; relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador; falta de consentimento de outros descendentes (artigo 1.132 CC); a configuração de simulação, consistente em doação disfarçada ou, alternativamente, a demonstração. O julgamento foi feito nos autos do REsp 953.461.

 

III – FORMALIDADES NA CESSÃO DA HERANÇA

De acordo com o Código Civil de 2002, nos artigos 1.793 e seguintes, há algumas formalidades que devem ser atendidas para que se atribua validade e eficácia à cessão de uma herança. A cessão de um quinhão pode ocorrer a título gratuito ou oneroso, assim como de toda a herança ou de parte dela. Deve ser formalizada mediante instrumento público, sob pena de nulidade, ou submetido à autorização judicial, como determinam os artigos 166 e 1.793, do Código Civil. A cessão perderá o caráter de cessão, se realizada após a partilha dos bens. Contudo, o instrumento será válido, mas na qualidade de mera alienação de bens. Frise-se que o cessionário receberá a herança no estado em que se encontra, pelo que correrá os riscos de ser absorvida por dívidas pendentes.

 

IV – PROIBIÇÕES DIVERSAS NA COMPRA E VENDA

Ademais, proíbe-se que sejam adquiridos, mesmo em hasta pública: a) pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens confiados à sua guarda e administração ou alienação estejam encarregados; b) pelos mandatários, os bens de cuja administração ou alienação estejam encarregados; pelos empregados públicos, os bens da União, dos Estados e dos Municípios, que estiverem sob sua administração direta ou indireta, e bem assim os juízes, arbitradores ou peritos que, de qualquer modo, possam influir no ato ou no preço da venda; pelos juízes, empregados de fazenda, secretários de tribunais, escrivães, oficiais de justiça, os bens ou direitos sobre que se litigar em tribunal, juízo, ou conselho no lugar onde esses funcionários servirem ou a que se estende a sua autoridade. A proibição estende-se à cessão de direitos, mas não vigora entre coerdeiros, nem se a alienação se der em pagamento da dívida ou para a garantia de bens já pertencentes ás pessoas designadas na lei.

Mas entenda-se que os mandatários não estão atualmente proibidos de adquirir bens de cuja administração ou alienação estejam encarregados (RT 119: 751, 225:572, dentre outros).

Pelos mesmos motivos, a proibição alcança os corretores de bolsas quanto aos bens a eles confiados, e os militares a respeito dos bens a seus subordinados.

Os ascendentes têm o direito de, a qualquer tempo, alienar seus bens a quem quiserem, mas não podem vender ao descendente (filho, neto, bisneto etc), sem que os demais descendentes e o cônjuge do alienante (salvo se casado em regime de separação obrigatória, artigo 1.641 do CC; RT 789:180), expressamente consintam por meio de escritura pública ou no mesmo instrumento(público ou particular) do negócio principal ou, ainda, por meio de mandato com poder especial (CC, artigo 220 e ainda, no mesmo diploma, artigo 496 e parágrafo único, RT 701: 687; 631: 116, dentre outros). Isso porque esta venda de bens móveis ou imóveis poderia acobertar uma doação, em prejuízo dos demais herdeiros necessários. Se entre esses herdeiros houver um incapaz, será necessário curador. Isso para evitar qualquer dissimulação de doação inoficiosa em favor de um dos descendentes. Esses herdeiros envolvidos são os herdeiros necessários do alienante ao tempo da celebração do negócio jurídico. Mas se a venda se deu antes do reconhecimento da filiação, o reconhecido não poderá invalidá-lo(RT 606:231), por não ter consentido naquele negócio.

O proprietário da coisa alugada, para vendê-la, deverá dar conhecimento do fato ao inquilino, que terá o direito de preferência para adquiri-la em igualdade de condições com terceiros (RT, 732: 286). E, se este prédio estiver sublocado em sua totalidade, a preferência caberá ao sublocatário, e, sendo vários os sublocatários, a todos em comum ou a qualquer deles, se um só for o interessado. Se muitos forem os interessados, a preferência caberá ao locatário mais antigo. O inquilino terá trinta dias subsequentes àquele em for notificado para exercer seu direito à preferência (Lei 8.245, artigos 27a 31 e 34). O locatário que não foi notificado da venda poderá, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, haver para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses contados do assento do ato competente no Cartório de Registro de Imóveis, desde que o contrato de locação esteja assentado no Registro de Imóveis pelo menos trinta dias antes da venda, na forma estabelecida em regulamento. Além disso, o inquilino preterido poderá reclamar do alienante perdas e danos (Lei 8.245/91, artigo 33).

 

V – A COMPRA E VENDA E O ESTADO DE INDIVISÃO

Outra questão importante tem-se com relação a compra e venda e o estado de indivisão.

Assim, enquanto pende o estado de indivisão, o condômino não pode vender a sua parte a estranho, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. No caso de mais um condômino se interessar pela coisa procede-se uma licitação entre eles, preferindo o que tiver na coisa benfeitorias de valor maior; na falta deles, o de maior quinhão; se os quinhões forem iguais, haverão a parte vendida os coproprietários que o quiserem, depositando o seu preço. Dentro do prazo de seis meses, o condômino interessado, a quem não se der conhecimento da venda, tem a faculdade de requerer para si a parte alienada, depositando o preço, segundo constar do contrato. Alerte-se que a indivisão que autoriza a aplicação do artigo 504, primeira parte do Código Civil (RT 478:62, dentre outros) é a natural e não a decorrente de lei (RT 494:149).

Por força de lei, é vedada a cessão, por um dos herdeiros, do seu direito hereditário, em relação a qualquer bem da herança considerado singularmente, como manda o artigo 1.793, parágrafo 2º, do Código Civil, exceto se precedida de autorização judicial, enquanto estiver pendente a indivisibilidade. Todavia, a autorização judicial pode ser dispensada caso todos os demais herdeiros, desde que maiores e capazes, manifestem sua anuência em relação à cessão do bem individualizado.

Destaque-se que a cessão deve ser precedida de exercício do direito de preferência dos coerdeiros, que decairá no prazo de 180 dias após a transmissão, nos artigos 1.794 e 1.795, do Código Civil. Caso mais de um coerdeiro pretender a parte cedida, “entre eles se distribuirá o quinhão cedido”, como dita o artigo 1.795, parágrafo único, do Código Civil.

Mas essas regras não se aplicam ao regime de propriedade horizontal, onde há propriedade exclusiva do condômino com relação ao apartamento, ao mesmo passo que o condômino sobre o solo e partes comuns somente existe em atenção ao objetivo de proporcionar a utilização exclusiva da parte exclusiva.

 

VI – A VENDA COMERCIAL E O DIREITO À EXCLUSIVIDADE

Há ainda, na vida comercial, a existência de cláusula de exclusividade, as quais impõem a obrigação de adquirir certas mercadorias de um produtor determinado ou vender por determinado preço, traduzindo tal conduta uma verdadeira restrição à liberdade de contratar.

 

VII – COMPRA E VENDA E OS CÔNJUGES

Ainda se sabe que é vedada a compra e venda entre marido e mulher. Se o regime for de comunhão universal, ter-se-á uma venda fictícia, pois os bens do casal são comuns e ninguém pode comprar o que já lhe pertence. Todavia, mesmo nesse regime, ou se for outro o regime matrimonial, tal venda, desde que efetiva e real e não venha a ferir direitos de terceiros poderá se entender como lícita, relativamente a bens particulares, ou seja, que sejam excluídos da comunhão (CC, artigos 499, 1.659 e 1.688), uma vez utilizado o princípio da mutabilidade justificada, previsto no artigo 1.639, § 2º.

A pessoa casada, exceto no regime de separação absoluta de bens, e, em razão de convenção antenupcial, no de participação final nos aquestos, não poderá alienar ou gravar de ônus os bens imóveis do seu domínio sem a autorização do outro cônjuge (CC, artigos 1.647, I e 1.656; RT, 538:135, 397: 171, 614; 164).

 

VIII – CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS E NOTIFICAÇÃO ADEQUADA AOS COERDEIROS

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.620.705, entendeu que a cessão de direitos hereditários exige notificação adequada aos coerdeiros.

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu recurso especial interposto por um dos coerdeiros de bem imóvel inventariado que requereu o reconhecimento do direito de preferência na aquisição de quinhão hereditário do irmão cedido a terceiro.

O coerdeiro que interpôs o recurso sustentou que deveria ter sido previamente comunicado da proposta de venda, pois, conforme previsão do artigo 1.794 do Código Civil, tem preferência legal de compra da cota-parte do irmão.

O relator do processo, ministro Villas Bôas Cueva, salientou que o coerdeiro tem permissão de conceder, no todo ou em parte, os direitos que lhe assistem na sucessão aberta, entretanto, “a prévia notificação dos coerdeiros, para fins do exercício de seu direito de preferência, deve ser capaz de assegurar-lhes plena ciência não apenas do interesse do herdeiro cedente na alienação futura de sua cota hereditária, mas também do preço e das condições de pagamento oferecidas ao pretenso terceiro cessionário” afirmou.

Segundo o site do STJ, em divulgação de 27 de dezembro de 2017, em 2010, o terceiro interessado apresentou proposta para aquisição integral do imóvel, mas o herdeiro que ajuizou a ação se opôs à venda, o que resultou no indeferimento da expedição de alvará para essa finalidade. Com isso, o irmão apresentou petição comunicando ao juízo ter cedido seus direitos hereditários ao terceiro.

O Tribunal de Justiça de Rio Grande do Sul (TJRS) entendeu que o coerdeiro tinha ciência da intenção do irmão de alienar seu quinhão hereditário, no entanto, só manifestou interesse em exercer seu direito de preferência depois da formalização de instrumento da cessão de direitos hereditários.

A ciência de tal intenção é inequívoca, não podendo vir agora o agravante beneficiar-se da sua inércia e invocá-la para desconsiderar o negócio hígido entabulado”, afirmou o TJRS.

O ministro Villas Bôas Cueva explicou que o cedente não notificou adequadamente os demais coerdeiros a respeito da cessão de sua cota hereditária, tendo informado apenas a respeito da proposta de aquisição integral do imóvel.

Segundo o relator, o recorrente tomou ciência da cessão dos direitos hereditários de seu irmão apenas no ano seguinte, por meio do Diário da Justiça Eletrônico (DJe), e realizou o depósito integral do preço pago pelo terceiro dentro do prazo legal de 180 dias, conforme previsão dos artigos. 1.794 e 1.795 do Código Civil.

A alienação dos direitos hereditários a pessoa estranha “exige, por força do que dispõem os artigos 1.794 e 1.795 do Código Civil, que o herdeiro cedente tenha oferecido aos coerdeiros sua cota parte, possibilitando a qualquer um deles o exercício do direito de preferência na aquisição, ‘tanto por tanto’, ou seja, por valor idêntico e pelas mesmas condições de pagamento concedidas ao eventual terceiro estranho interessado na cessão”, finalizou o ministro.

A decisão foi unânime.

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