CAPACIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ
Fernanda Mathias de Souza Garcia
O Estatuto da pessoa com Deficiência instituiu novos parâmetros para classificação da incapacidade civil ao alterar o Código Civil Brasileiro
A Constituição Federal assegura como um dos objetivos fundamentais da República, em seu art. 3º, inciso IV, a promoção do bem de todos sem quaisquer preconceitos ou formas de discriminação. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas – ONU -, por sua vez, foi internalizada ao ordenamento jurídico brasileiro mediante o decreto legislativo nº 186, de 9.7.2008 e promulgada por meio do decreto 6.949, de 25.8.2009.
A partir de então se introduziu um novo conceito, plural e aberto, relativo a pessoas com deficiência no ordenamento jurídico brasileiro, norma que, por versar acerca de direitos humanos, possui status de emenda constitucional. Desse modo, o texto deve reger a atuação dos intérpretes, por compor o bloco de constitucionalidade e, por isso, configurar parâmetro para o seu controle (art. 5º, § 3º, da CF/1988, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, denominada de reforma do Poder Judiciário). Em seu artigo 1º a Convenção apresenta a definição de pessoas com deficiência a partir de uma ótica social, em que as barreiras à plena participação de tais pessoas em igualdade de condições encontram-se na própria sociedade:
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas“.
A relevância do tema se afere de dados empíricos extraídos em 2021, já que, “de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 10% das pessoas – aproximadamente 17 milhões – têm algum tipo de deficiência no mundo”, enquanto, no Brasil, “segundo as últimas estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,2% da população nacional” possui alguma deficiência (Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo e Daniela Silva Fontoura de Barcellos, O regime jurídico da pessoa com deficiência: uma análise sobre os tratados, sobre a Constituição, sobre a legislação e a jurisprudência, Revista Jurídica da Presidência, v. 23, n. 129, Fev/Maio 2021, Brasília, pág. 201).
Desse modo, acertada a perspectiva de Gustavo Tepedino e Milena Donato no sentido de que reconhecer a vulnerabilidade da pessoa humana a partir de suas múltiplas feições é um aspecto evidenciado na Constituição da República, pela qual “quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, esta tomada como valor máximo pelo ordenamento jurídico“, sendo certo que a dignidade é uma das principais diretrizes axiológicas do ordenamento jurídico (Personalidade e capacidade na legalidade constitucional, in Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas, Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão, 2ª Edição, Editora Processo, Rio de Janeiro, 2020, págs. 292-293).
A curatela de uma pessoa com deficiência confere excepcionalmente a alguém o poder de reger atos da vida civil de outrem e está regulamentada no Código Civil de 2002, no Livro do Direito de Família, entre os arts. 1.767 e 1.783. Consta também no Código de Processo Civil de 2015, no Título dos Procedimentos Especiais, sob o Capítulo dos Procedimentos de Jurisdição Voluntária, entre os arts. 759 e 763.
Destaca-se que a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), inspirada pelo artigo 12 da Convenção da ONU, ao modificar os artigos 3º e 4º do Código Civil, assegurou maior amplitude dos direitos conferidos às pessoas com deficiência ao garantir-lhes amplo protagonismo na tomada de decisões em suas vidas, promovendo a sua inclusão social e o pleno exercício da capacidade jurídica. A partir desses novos paradigmas, a incapacidade civil restou desatrelada dos estigmas ou rótulos atrelados aos transtornos mentais ou físicos do reconhecimento da incapacidade.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência garante ampla capacidade à pessoa com deficiência, aventando, apenas excepcionalmente, a declaração de sua incapacidade relativa quanto a interesses patrimoniais e negociais a fim de promover a igualdade e a autonomia das pessoas com deficiência. Portanto, a incapacidade absoluta foi abolida com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Desse modo a curatela se submete a gradações e limites mais extensos quanto aos atos patrimoniais e negociais e, excepcionalmente, a atos da vida civil e existencial, já que o curador acaba por exercer um múnus público em prol da gestão da vida civil do curatelado, cujos contornos são sempre determinados e específicos.
Dessa forma, a depender do grau de incapacidade, a interdição poderá ser total ou parcial, devendo o juiz, a partir do contexto probatório apresentado, fixar os limites da curatela com fins de atender ao melhor interesse do interditado.
Outra não é a conclusão de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, para os quais incumbe ao magistrado, após a oitiva do Ministério Público Federal, com a realização de perícia médica obrigatória, a depender das idiossincrasias de cada pessoa e de sua condição psíquica, física e intelectual, definir a interdição a partir de três diferentes feições, no que tange à sua extensão:
“(i) o curador pode se apresentar como um representante do relativamente incapaz para todos os atos jurídicos, porque este não possui qualquer condição de praticá-los, sequer em conjunto. Seria o caso de alguém que se encontra no coma ou a quem falta qualquer discernimento;(ii) o curador pode ser um representante para certos e específicos atos e assistente para outros, em um regime misto, quando se percebe que o curatelando tem condições de praticar alguns atos, devidamente assistido, mas não possui qualquer possibilidade de praticar outros, como, por exemplo, os atos patrimoniais;(iii) o curador será sempre um assistente, na hipótese em que o curatelando tem condições de praticar todo e qualquer ato, dês que devidamente acompanhado, para a sua proteção”. (Curso de Direito Civil, Parte Geral, 21ª Edição, 2023, Editora Podivm, pág. 421)
Por sua vez Maria Helena Diniz alerta que toda e qualquer pessoa que possua doença incapacitante, tal como ocorre no “estado de coma, perda de memória (fraqueza mental), paralisia mental ou surdo-mudez, por hipnose, por contusão cerebral, por falta de controle emocional em razão de trauma provocado, p. ex., por acidente; por uso de entorpecente ou de drogas alucinógenas” deverão possuir apoio de um curador para viabilizar a assistência na expressão da sua vontade (Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral do Direito Civil, 40ª Edição, Saraiva, 2023, págs. 175-176 – grifou-se). Assim, a despeito de uma pessoa não possuir condições para praticar atos da vida civil, não deve ser considerada absolutamente incapaz diante das inovações legislativas, em especial aquelas extraídas dos artigos 6º, 84 e 85 da Lei nº 13.146/2015, que distinguem curatela de incapacidade.
A propósito o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que a autonomia e plena capacidade do sujeito com deficiência é a atual regra:
“RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. CURATELA. IDOSO. INCAPACIDADE TOTAL E PERMANENTE PARA EXERCER PESSOALMENTE OS ATOS DA VIDA CIVIL. PERÍCIA JUDICIAL CONCLUSIVA. DECRETADA A INCAPACIDADE ABSOLUTA. IMPOSSIBILIDADE. REFORMA LEGISLATIVA. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INCAPACIDADE ABSOLUTA RESTRITA AOS MENORES DE 16 (DEZESSEIS) ANOS, NOS TERMOS DOS ARTS. 3° E 4° DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
A questão discutida no presente feito consiste em definir se, à luz das alterações promovidas pela Lei n. 13.146/2015, quanto ao regime das incapacidades reguladas pelos arts. 3º e 4º do Código Civil, é possível declarar como absolutamente incapaz adulto que, em razão de enfermidade permanente, encontra-se inapto para gerir sua pessoa e administrar seus bens de modo voluntário e consciente.
A Lei n. 13.146/2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem por objetivo assegurar e promover a inclusão social das pessoas com deficiência física ou psíquica e garantir o exercício de sua capacidade em igualdade de condições com as demais pessoas.
A partir da entrada em vigor da referida lei, a incapacidade absoluta para exercer pessoalmente os atos da vida civil se restringe aos menores de 16 (dezesseis) anos, ou seja, o critério passou a serem apenas etário, tendo sido eliminadas as hipóteses de deficiência mental ou intelectuais anteriormente previstas no Código Civil.
Sob essa perspectiva, o art. 84, § 3º, da Lei n. 13.146/2015 estabelece que o instituto da curatela pode ser excepcionalmente aplicado às pessoas portadoras de deficiência, ainda que agora sejam consideradas relativamente capazes, devendo, contudo, ser proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso concreto.
Recurso especial provido” (REsp 1.927.423/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 27/4/2021, DJe de 4/5/2021 – grifou-se).
No mesmo sentido confiram-se REsp 1.943.699/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/12/2022, DJe de 15/12/2022 REsp 1.694.984/MS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 14/11/2017, DJe de 1/2/2018.
No que se refere aos novos parâmetros para a classificação da incapacidade civil apta a ensejar a interdição judicial de uma pessoa, a partir da ótica emprestada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência válida mencionar que “para averiguar e mensurar se alguém não tem discernimento, ou a medida da redução do discernimento, deve o intérprete operar um raciocínio atento às singularidades da pessoa (‘raciocínio por concreção’) diverso do que desenvolve quando a incapacidade é determinada em vista de uma categoria genérica, como a idade, por exemplo. Não é a pessoa como abstrato sujeito, mas é a pessoa de carne e osso, em sua concretitude e em suas circunstâncias, que deverá estar no centro do raciocínio.” (Judith Martins-Costa, Capacidade para consentir e esterilização de mulheres, in Judith Martins-Costa; Letícia Ludwig Moller (orgs.), Bioética e responsabilidade, Rio de Janeiro: Forense, 2009, pág. 326 – grifou-se).
Com efeito, a extensão da curatela (art. 1.767 do Código Civil de 2002) deve ser proporcional às necessidades de amparo dos interesses e direitos do interditado. A averiguação do quadro de saúde apresentado por suposto curatelado, a partir de uma atenta percepção do nível de sua expressão da vontade, tem o condão de ser ampla, inclusive no que tange a direitos existenciais, a depender das especificidades do caso concreto, devendo o magistrado, contudo, considerá-lo relativamente incapaz, ante a regra do sistema, como se extrai da literalidade do art. 4º, III, do Código Civil de 2002, independentemente do comprometimento mental, intelectual, físico ou sensorial do curatelado.
A propósito, o Conselho da Justiça Federal editou em suas jornadas de Direito Civil os seguintes enunciados:
(i) Enunciado nº 138: “A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3° é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto“.
(ii) Enunciado nº 574: “A decisão judicial de interdição deverá fixar os limites da curatela para todas as pessoas a ela sujeitas, sem distinção, a fim de resguardar os direitos fundamentais e a dignidade do interdito (art. 1.772)“.
(iii) Enunciado nº 637: “Admite-se a possibilidade de outorga ao curador de poderes de representação para alguns atos da vida civil, inclusive de natureza existencial, a serem especificados na sentença, desde que comprovadamente necessários para proteção do curatelado em sua dignidade“.
Em síntese, a curatela pode abranger, excepcionalmente e de forma fundamentada, não apenas atos relativos aos direitos de natureza patrimonial e negocial, mas também outros atos da vida civil, o que não se confunde com a declaração de incapacidade, classificação inegociável, por representar a mens legis, bem como permitir a construção de políticas públicas em prol desse grupo tão vulnerável no Brasil.