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CABIMENTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

CABIMENTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Fernando Célio de Brito Nogueira

 

Recuperação Judicial

A desconsideração da personalidade jurídica tem sido largamente utilizada nos vários ramos do direito, como nas áreas do consumidor, meio ambiente, processo do trabalho e tributário, com base na teoria menor, que prescinde de comprovação de fraude, bastando a constatação de que a personalidade jurídica seja óbice à reparação do direito lesado.

Essa utilização se verifica com intensidade, também, no direito da insolvência, na falência e na recuperação judicial.  Na falência, não há maior controvérsia sobre o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 82-A, da Lei n. 11.101/2005, com base na teoria maior (artigo 50, do CC de 2002).

Na recuperação judicial, o tema é controvertido na doutrina, que não é pacífica sobre a viabilidade do incidente na recuperação judicial.

Há um consenso de que a ordem jurídica não pode transigir com a fraude, nem com aquelas situações em que a personalidade jurídica sirva de obstáculo à reparação do direito lesado.

O texto traz considerações sobre vários aspectos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e viabilidade de seu uso na recuperação judicial.

Origem histórica

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica surgiu na Inglaterra, no final do século 19. Aron Salomon era um bem-sucedido empresário, que fabricava botas e sapatos de couro e tinha o governo inglês como um de seus maiores clientes. Ao longo de 30 anos, construiu considerável fortuna como empresário individual.

No fim do século 19, na década de 1890, seus filhos quiseram entrar no negócio. Salomon criou outra empresa, de responsabilidade limitada, com base na legislação inglesa de 1862, e subscreveu capital, com a esposa e os cinco filhos mais velhos, utilizando-se da empresa que já possuía.  A Inglaterra vive um período de greves e o governo resolve diversificar seus fornecedores de calçados. Salomon tinha grande estoque. Veio a crise e a empresa foi liquidada.

Primeiras decisões judiciais: Salomon deveria responder com seu patrimônio pessoal pelas dívidas.

Julgamento pela Câmara dos Lordes: se estabeleceu o Leading Case do Direito Societário. Decidiu-se que a sociedade constituída por Salomon obedecia à legislação e que ele não deveria responder pelas dívidas com seu patrimônio pessoal. Pela primeira vez, estabelecia-se a autonomia entre a responsabilidade dos sócios e a responsabilidade da sociedade empresária. Por isso, o caso Salomon é considerado o Leading Case do direito societário.  Assim, segundo Didier Jr., citando Warde Jr., “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não surgiu por conta do “mau uso” da pessoa jurídica; ela emergiu como um instrumento destinado a suprimir o privilégio da limitação da responsabilidade em determinados contextos” (Curso de Direito Processual Civil, 26ª ed. São Paulo: Jus Podivm, 2024, v. 1, p. 656-658).

Posição favorável ao IDPJ na recuperação judicial

É viável a utilização do IDPJ na recuperação judicial. Não houve previsão na Lei 11.101/05, tampouco vedação.

André Ferreira da Rosa Rocha em obra que se origina de dissertação de mestrado, traz estudo sobre o uso do IDPJ na recuperação judicial, com exame do caso da MMX Sudeste Mineração S/A, uma das empresas de Eike Batista. Houve a desconsideração da personalidade jurídica, por decisão da 1ª Vara Empresarial de Belo Horizonte, em maio de 2017, acolhido pedido de tutela de urgência, de natureza cautelar, para alcançar o patrimônio dos controladores, Eike F. Batista, Centennial Asset Mining Fund LLC e Mercatto Botafogo RFCP, Fundo de Investimento Longo Prazo, no valor de R$ 792.400.890,95 (O Combate à Fraude na Recuperação Judicial. São Paulo: Thomson Reuters, 2025, p. 19-25).

É admissível, portanto, a desconsideração da personalidade jurídica na recuperação judicial, mediante aplicação da teoria maior (artigo 50, do CC de 2002), que exige demonstração de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Na insolvência empresarial não é adequada a aplicação da teoria menor, pois sempre haverá necessidade de se comprovar desvio de finalidade ou confusão patrimonial (art. 50, CC de 2002).

Em reforço ao que dissemos, o parágrafo único do artigo 82-A, da Lei n. 11.101/05 (introduzido pela reforma de 2020), prevê que a desconsideração da personalidade jurídica da falidapara fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do artigo 50, do Código Civil de 2002, e dos artigos 133 a 137, do Código de Processo Civil.

Poder-se-ia objetar que, na fase de processamento da recuperação judicial – que exige celeridade – não caberia o IDPJ, por incompatibilidade entre a rapidez necessária a essa fase inicial do processo de soerguimento e a cognição exauriente do IDPJ, à luz da teoria maior. A objeção, contudo, pode ser superada na medida em que a desconsideração se processe em incidente apartado, sem prejuízo do processamento da RJ, que deve ser ágil.

Competência para o IDPJ na RJ

Quando o incidente de desconsideração versar sobre bens essenciais à manutenção da atividade da empresa, o juízo da recuperação judicial, também chamado juízo universal mitigado, é que deverá apreciar a matéria, pois preside o processo de soerguimento da empresa e deverá sempre decidir sobre bens essenciais à manutenção da atividade empresarial, cuja continuidade é fundamental ao próprio êxito e eficiência do processo de recuperação judicial (CPC, artigo 8º, parte final; artigo 47, da Lei nº 11.101/2005).

Ao visar bens dos sócios, a competência será do juízo perante o qual tramite a ação principal em que se persiga dívida ou crédito não sujeito ao processo de recuperação judicial (artigo 49, § 3º, da LREF, e Tema 1.051 do STJ) ou bens que devam responder por determinadas obrigações, em razão do cometimento de fraude, por desvio de finalidade ou confusão patrimonial (CC, artigo 50). Isso em razão da conexão, nos termos do artigo 55, do CPC. Apesar da distinção, cremos que o juízo da recuperação judicial poderá julgar o IDPJ em ambos os contextos mencionados. Caso se trate de IDPJ que tramite em juízo diverso da recuperação judicial, toda controvérsia que demande decisão sobre a essencialidade dos bens caberá ao juízo em que tramita a recuperação judicial.

Legitimidade para propor o IDPJ

O incidente poderá ser proposto por quem tenha legítimo interesse jurídico (não apenas econômico) no processo de soerguimento em curso, pela recuperanda, pelo Administrador Judicial, por qualquer credor e pelo Ministério Público, quando intervir no processo principal que evidenciou a necessidade de utilização da desconsideração.

Na recuperação judicial, o IDPJ tem sido admitido em vários precedentes da jurisprudência especializada das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça.

Prazo para propositura do incidente: posição do professor Manoel Justino

A lei não previu prazo para propositura do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Em oportuno texto publicado em obra coletiva, em homenagem ao professor Fábio Ulhoa Coelho, o professor Manoel Justino Bezerra Filho, examina a questão e conclui que não pode haver perpetuidade para propositura do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, mas o prazo decadencial deve ser contado a partir do momento em que se toma conhecimento da fraude.

O entendimento é bastante assertivo, pois a lida com processos de insolvência demonstra que, muitas vezes, depois de anos de tramitação, é que são descobertas determinadas fraudes, na falência ou na recuperação judicial (Direito Empresarial e suas Interfaces – Vol. V. São Paulo: Quartier Latin, 2022).

Isso torna inviável — afirmamos — que se conte o prazo decadencial da decisão que deferir o processamento da RJ por exemplo.

O professor Justino sugere aplicação da regra geral do artigo 179, do Código Civil de 2002, e examina com profundidade o julgamento do REsp. 1.180.191-RJ (escandalosa falência de próspera transportadora do Rio de Janeiro, que “foi literalmente esvaziada de seus bens, por meio de manobras fraudulentas descobertas durante o processamento da falência”, o incidente de desconsideração foi julgado procedente pelo TJ-RJ, com confirmação do julgado pelo STJ). Demonstra como é importante a leitura dos votos e conclui que se atribui ao precedente citado tese não afirmada, sobre a não submissão do IDPJ a prazo de decadência ou prescrição.

 Tendência à aplicação expansiva da desconsideração: REsp nº 1.792.271/SP.

No julgamento do REsp nº 1.792.271/SP pelo STJ, verificou-se discussão sobre a aplicação expansiva da desconsideração.

Em texto de Leonardo Pelati, que fez análise do precedente, o autor menciona que o julgamento do STJ, por sua 4ª Turma, “…divulgado sob a premissa de que o IDPJ não poderia alcançar os filhos beneficiados por desvio patrimonial dos sócios, tem sido interpretado de forma equivocada” (Desconsideração Expansiva da Personalidade jurídica: contraponto ao REsp 1.792.271/SP).

Assim, a 4ª Turma do STJ, sob relatoria do Ministro Antonio Ferreira, afastou a responsabilidade de filhos que receberam imóveis / valores próximos ao inadimplemento, entendendo que o IDPJ não alcança terceiros sem vínculo societário formal. O autor, porém, menciona os Votos divergentes dos ministros Belizze e Raul Araújo, favoráveis à responsabilização de todos aqueles que atuaram de forma integrada ao núcleo da fraude, que se sobrepõe ao mero vínculo societário formal. Aponta o julgamento do REsp nº 2.055.325/MG como “precedente paradigmático e ratio decidendi”, porque referida decisão entendeu que “a responsabilidade patrimonial impõe-se não pela posição formal, mas pela participação material na fraude ou comando efetivo da estrutura societária”, apontando que essa ratio decidendi aplica-se a casos como o REsp 1.792.271/SP, e com propriedade conclui que este julgamento último contrasta a jurisprudência do próprio STJ e não deve se tornar decisão-paradigma.

IDPJ contra pessoa natural

Há quem sustente que até mesmo contra a pessoa natural, para coibir fraudes em prejuízo de credores, pode ser admitida a desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, a posição do professor Marcelo Abelha Rodrigues, no artigo Notas sobre a possibilidade de desconsideração da personalidade da pessoa física para alcançar outra pessoa física.

O autor traz exemplo de médico endividado, que orienta seus pacientes para que paguem seus honorários diretamente na conta de sua namorada, que anui à manobra e franqueia ao namorado não apenas o uso da conta, mas de seus cartões etc para blindar o devedor de execuções e outras medidas que virão.

As menções à desconsideração expansiva da personalidade jurídica e à possibilidade de utilização da desconsideração contra pessoas naturais, como no caso da “laranja afetiva” mencionada por Abelha Rodrigues, reforçam a ideia de que não há razão jurídica para limitar ou vedar o uso do IDPJ na RJ para combater fraudes e recuperar ativos, desde que presentes os requisitos do artigo 50 do CC de 2002.

Conclusão

Não há dúvida de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, na recuperação judicial, é viável e pode ser instrumento de relevância para buscar bens essenciais à manutenção da atividade empresarial e ativos para pagamento das dívidas, para efetivo cumprimento do plano de recuperação judicial. A ordem jurídica não pode transigir com a fraude, deve combatê-la e se valer de instrumentos processuais para reverter seus efeitos danosos aos credores, ao ambiente de negócios, ao sistema de insolvência e à boa-fé contratual.

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Nesse sentido, contrariamente ao cabimento do IDPJ na RJ, as posições de Marcelo Barbosa Sacramone, em seus Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 407, e de Márcio Souza Guimarães, em texto publicado no site Migalhas. Direito processual civil e empresarial. Agravo de instrumento. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Desvio de finalidade. Confusão patrimonial. Requisitos do art. 50 do Código Civil. (…) Razões de decidir: (…) 4. Questão atinente à homologação superveniente do plano de recuperação judicial não conhecida, pois o fato não foi apreciado em primeiro grau, implicando supressão de instância. 5. Restou comprovado o desvio de finalidade pela disposição patrimonial a favor da agravante, mediante a transferência de 27 imóveis da executada por valores vilíssimos (inferiores a 3% do valor de mercado) e pela cessão das quotas sociais da agravante a familiares do sócio controlador da executada, caracterizando blindagem patrimonial e abuso da personalidade jurídica. 6. Não se impede a desconsideração da personalidade jurídica quando demonstrado o abuso previsto no art. 50 do código civil, cujo escopo visa coibir práticas de esvaziamento patrimonial e blindagem em prejuízo dos credores (…). (TJSP; Agravo de Instrumento 2162695-90.2025.8.26.0000; Relator (a): Júlio César Franco; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 17ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/07/2025; Data de Registro: 10/07/2025).

DIREITO EMPRESARIAL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INAPLICABILIDADE DO ART. 82-A DA LEI N. 11.101/2005. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO (…) Tese de julgamento: “1. A competência para desconsiderar a personalidade jurídica de sociedades em recuperação judicial não é exclusiva do Juízo recuperacional. 2. A superveniência da decretação de falência não altera atos jurídicos perfectibilizados anteriormente, quando o juízo laboral era competente. 3. O art. 82-A da Lei n. 11.101/2005 aplica-se apenas a empresas falidas, não a empresas em recuperação judicial” (…) (AgInt nos EDcl no AgInt no CC n. 200.959/RJ, relator Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 9/4/2025, DJEN de 14/4/2025.)

CC, art. 179. Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-jul-28/desconsideracao-da-personalidade-juridica-na-rj-cabimento/