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BREVES COMENTÁRIOS SOBRE FRAUDE E INSOLVÊNCIA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL e FALÊNCIA

BREVES COMENTÁRIOS SOBRE FRAUDE E INSOLVÊNCIA NA

RECUPERAÇÃO JUDICIAL e FALÊNCIA

Fernando Célio de Brito Nogueira

 

1. Fraude e insolvência: problema recorrente

O artigo 47, da Lei nº 11.101/2005, consagra o princípio da preservação da empresa, em norma que busca conciliar interesse de grande relevância econômica e social: 1) a superação da crise econômico-financeira do devedor; 2) a manutenção da fonte produtora; 3) a manutenção dos empregos; 4) o estímulo à atividade econômica.

O tema recuperação judicial tem sido muito noticiado nos últimos tempos, de crise econômica mundial, causada pela pandemia da COVID-19, que fez com que o número de recuperações judiciais aumentasse 52% em 2023, uma vez que, segundo dados da Serasa Experian, mais de 590 empresas recorreram ao instituto entre janeiro e junho deste ano de 2023 (acesso em 12 de novembro de 2023).

Esse aumento exponencial do número de casos de recuperação judicial eleva a preocupação, também, com o uso fraudulento do instituto, que pode evidentemente ocorrer, apesar dos esforços no sentido de coibi-la.

Ou seja, o princípio da preservação da empresa foi positivado na Lei de Falências e Recuperação de Empresas, visando o soerguimento da empresa em dificuldade econômico-financeira, sem desconsiderar a geração de riquezas e de tributos, pela atividade econômica, a manutenção dos postos de trabalho e o estímulo à atividade econômica.

E referido princípio não autoriza, em nenhum momento, transigir com a fraude.

 

2. Brevíssima notícia histórica sobre a fraude contra credores

Desde os primórdios da civilização, o Direito se viu sempre desafiado pela fraude, que vem do latim fraus, que significa erro, leva à ideia de engodo, logro, embuste, negócio escuso, meio de obtenção de vantagem à margem do direito e que se compõe de dois elementos: i) má-fé; ii) propósito de causar prejuízo a terceiros[1].

Desde o Direito Romano, Gai, 1,37, a libertação de um escravo em fraude a credor era considerada nula (Seckel, E, Kübler, B. Gai Institutiones, Ed. E. Seckel, 1935)[2].

 

3. A fraude e a recuperação judicial

Nosso Sistema de Justiça tem lidado com o enfrentamento da fraude na recuperação judicial.

A busca de julgados no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo, com as palavras recuperação e fraude aponta para cerca de 487 Acórdãos, na linha de busca por Ementas (em 16 de novembro de 2023).

Antes mesmo da reforma à Lei de Falências e Recuperação de Empresas, implementada pela Lei n. 14.112/20, o Enunciado VII, do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo[3], já previa a possibilidade do magistrado se valer da constatação prévia, antes de decidir sobre o processamento do pedido de recuperação judicial.

O Enunciado mencionado, fruto da prática jurisprudencial, contribuiu para a reforma legislativa que viria, pois o artigo 51-A, da Lei n. 11.101/2005, trazido pela Lei nº 14.112/20, passou a tratar expressamente da constatação prévia, que consistirá, objetivamente, na verificação das reais condições de funcionamento da empresa e da regularidade documental, vedado o indeferimento do processamento da recuperação judicial baseado na análise de viabilidade econômica do devedor (parágrafo 5º do artigo 51-A).

E a jurisprudência pós-reforma[4] continuou a tratar da constatação prévia como faculdade do juiz. Instrumento importante, para reprimir e talvez até mesmo para desencorajar o uso fraudulento da recuperação judicial.

 

4. A importância da repressão à fraude

A importância da repressão à fraude decorre da necessidade de estimular a confiança nas instituições que integram o sistema de justiça e proporcionar segurança jurídica ao mercado e aos negócios em geral.

A boa-fé deve ser à base dos negócios. Fraude e má-fé é seu oposto.

O dever de boa-fé objetiva, além disso, é um dos principais deveres impostos às partes que contratam, negocia e não raro discutem interesses de relevância jurídica no processo.

Esse dever de boa-fé está positivado em várias disposições do Código Civil, do Código de Processo Civil e do Código de Defesa do Consumidor.

Nossa Lei n. 11.101/2005 preocupou-se com a fraude na recuperação judicial nas disposições criminais, ao criminalizar hipóteses de fraude em detrimento de credores, antes ou depois da decisão que concede a recuperação judicial (artigos 168 a 178), entre outros delitos, assim como no artigo 64, III, ao prever a possibilidade de substituição dos gestores da sociedade empresária, que tenham procedido com má-fé ou fraude em detrimento dos credores.

É certa que a lei não previu, de forma expressa, no capítulo da recuperação judicial, como fez na falência, a ação declaratória de ineficácia objetiva (artigo 129), a ação revocatória por fraude (art. 130), tampouco o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (artigo 82-A, com a redação dada pela Lei nº 14.112/20).

Isso a princípio não implica vedação ao uso desses instrumentos na recuperação judicial, observadas as peculiaridades do caso concreto.

 

5. Repressão à fraude na insolvência empresarial: duas decisões importantes do E. Tribunal de Justiça de São Paulo

Há interessantes decisões do E. Tribunal de Justiça de São Paulo[5], no âmbito de recuperações judiciais, que reafirmam a repressão à fraude. Destacamos duas:

No Agravo de Instrumento n. 2251499-39.2022.87.26.0000, relator o desembargador Grava Brazil, na 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em 4 de abril de 2023, o E. Tribunal de Justiça, ao tratar de recurso em processo de recuperação judicial que tramitava há mais de 10 anos, decretou de ofício a falência em segundo grau de jurisdição, em virtude de várias ilegalidades do Plano de Recuperação Judicial, homologado em primeiro grau sem ressalvas, por descumprimento de prazos do artigo 54, da LFRE, quebra ao princípio do tratamento paritário entre os credores, violação da boa-fé objetiva e indícios de crimes falimentares. Decisão importante, que reafirmou a repressão à fraude na insolvência empresarial[6].

No Agravo de Instrumento nº 2264574-53.2019.8.26.0000, relator o saudoso desembargador Araldo Telles, na 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em 2 de fevereiro de 2021, o E. Tribunal de Justiça, em v. acórdão que transitou em julgado, manteve sentença que convolou a recuperação judicial em falência, por quebra da boa-fé objetiva da recuperanda, porque esta omitiu informações sobre a existência de outras empresas saudáveis do mesmo grupo empresarial, fez uso abusivo da recuperação judicial, com desvio de patrimônio da falida para as empresas saudáveis, fez pagamento antecipado a determinados credores sujeitos ao concurso, com violação ao princípio do tratamento paritário, entre outras ilegalidades.

Apesar de tudo isso, como houve a nomeação de gestor judicial para administrar as empresas, com bons resultados, o E. Tribunal de Justiça paulista manteve a continuação provisória das atividades (art. 99, X, da LFREJ), manteve a quebra, e determinou a submissão da nomeação do gestor judicial à Assembleia Geral de Credores.

Essas providências foram adotadas visando maximizar os ativos (artigo 75, da LFRE) e vislumbrando a possibilidade de alienação da empresa, nos termos do artigo 140, I, da LFRE). Tudo isso, nos termos do v. Acórdão, visando a proteção do interesse dos credores.

A decisão mencionada teve o mérito de demonstrar que é possível conciliar a repressão à fraude com o princípio da preservação da empresa, previsto no artigo 47, da LFRE. E essa conciliação de interesses conflitantes não é fácil e nem simples de ser realizada. Um dos grandes desafios dos operadores do direito.

 

6. As propostas da CPI das Americanas, para prevenir novos escândalos contábeis

A preocupação com a fraude na insolvência de empresas chegou ao Congresso Nacional, uma vez que a CPI das Americanas, em seu Relatório Final, após a constatação de vultoso escândalo contábil, de mais de R$ 40 bilhões, amplamente noticiados pela mídia nacional e internacional, propôs várias medidas, visando prevenir e evitar novos escândalos contábeis:

1) aprimorar e ampliar o sistema de proteção ao informante de boa-fé (whistleblower), previsto na Lei nº 13.608/18, para relatar crimes contra a administração pública, que passaria a contemplar também crimes contra o sistema financeiro nacional, contra o mercado de capitais, interesses difusos ou coletivos, ilícitos administrativos ou sobre quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público;

2) alterar o Código Penal, com a previsão do crime de infidelidade patrimonial, a princípio definido como o abuso dos “poderes de administração de um patrimônio alheio que lhe foram incumbidos por lei, ordem legal ou negócio jurídico, com o fim de obter vantagem de qualquer natureza em benefício próprio ou de outrem, mediante infração do dever de salvaguarda, causando prejuízo ao patrimônio administrado”;

3) permitir a obtenção, por auditores independentes, com registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), diretamente do Banco Central, de informações sobre operações de crédito contratadas pelas empresas auditadas, inclusive por meio de acesso direto aos sistemas de informações de crédito;

4) aprimorar a responsabilidade civil dos administradores de sociedades anônimas, com modificações à Lei nº 6.404/76; os administradores terão de devolver bônus, quando estes tiverem resultado de fraude ou erro;

5) ampliar a legitimidade para propor ação de responsabilidade civil contra o administrador pelos prejuízos causados ao patrimônio da empresa; hoje, acionistas detentores de 5% do capital social podem propor a ação, mas o relatório considera que ela poderá ser proposta por qualquer acionista, desde que arque com as custas, despesas processuais e honorários respectivos.

6) fortalecer e expandir a atuação da autarquia federal, CVM, Comissão de Valores Mobiliários,  em seu orçamento, quadro de servidores e capacitação (acesso em 12 de novembro de 2023).

 

7. Conclusão: a importância da repressão à fraude e do aprimoramento da falência e da recuperação judicial para a economia e para o ambiente de negócios

No Ciclo de Debates sobre Insolvência Empresarial[7], em painel sobre renovação da recuperação judicial, presidido pelo advogado, doutor Odair de Moraes Júnior, com exposições dos doutores Paulo Roberto Grava Brazil, desembargador da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Eduardo Secchi Munhoz, professor doutor de Direito Comercial da Universidade de São Paulo, e Maurício Pessoa, desembargador da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo e coordenador da área de Direito Empresarial da Escola Paulista de Magistratura, evento realizado em Campinas entre os dias 7 e 9 de novembro de 2023, foi ressaltada a necessidade de repressão à fraude na insolvência empresarial, que não deve ser menosprezada em nome  do princípio da preservação da empresa, que não deve ser considerado um “mantra”, pois não se pode permitir o mau uso da recuperação judicial.

Observou-se que muitas vezes o que restará a ser preservado é a atividade econômica e não a empresa propriamente dita.

Concluiu-se ainda, por outro lado, que o princípio da preservação da empresa precisa ser concretizado e que a experiência demonstra que países que têm um sistema de insolvência eficaz têm ambiente mais favorável aos negócios e ao desenvolvimento da economia.

Ou seja, para além da repressão à fraude, é preciso melhorar a eficácia da falência e da recuperação judicial em nosso país.

Tarefa que, segundo cremos, certamente não se esgota nas reformas legislativas.

 

[1] Nesse sentido, o magistério de Caio Mario da Silva Pereira: “Na fraude, o que estará presente é o propósito de levar aos credores um prejuízo, em benefício próprio ou alheio, furtando-lhes a garantia real que devem encontrar no patrimônio do devedor. Seus requisitos são a má-fé ou malícia do devedor, e a intenção de impor um prejuízo a terceiro” (Instituições, Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2022, p. 460).

[2] Referência feita pelo advogado, Doutor Rafael Barud Casqueira Pimenta, no Ciclo de Debates Sobre Insolvência Empresarial, em seminário sobre recuperação judicial e fraude, no penúltimo painel, evento realizado em Campinas, de 7 a 9 de novembro de 2023, pela Fundação Arcadas, com a Escola Paulista de Magistratura, coordenado pelo Professor Doutor Oreste Nestor de Souza Laspro (Fundação Arcadas) e pelos Doutores Maurício Pessoa (Desembargador do TJSP) e Maria Rita Rebello Pinho Dias (Juíza da 3º VFRE da Capital), pela Escola Paulista de Magistratura.

[3] Nesse sentido, o julgamento do E. TJSP, no Agravo de Instrumento n.  2019089-77.2020.8.26.0000, Relator Desembargador Cesar Ciampolini, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em 22 de maio de 2020, pouco antes da reforma à LFRJ.

[4] Nesse sentido, o julgamento do E. TJSP, no Agravo de Instrumento n.  2046406-45.2023.8.26.0000, Relator o Juiz de 2º Grau, Jorge Tosta, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em 31 de maio de 2023.

[5] Essas decisões foram mencionadas em painel sobre Fraude e Recuperação Judicial, do qual tivemos a honra de participar, ao lado do Desembargador Ricardo Negrão e do advogado, Doutor Rafael Pimenta, no Ciclo de Debates sobre Insolvência Empresarial, em evento realizado pela Fundação Arcadas e Escola Paulista da Magistratura, em Campinas, SP, entre os dias 7 e 9 de novembro de 2023, sob a coordenação do Professor Doutor Oreste Nestor de Souza Laspro, pela Fundação Arcadas, e dos Doutores Maurício Pessoa, Desembargador do E. TJSP, e Maria Rita Rebello Pinho Dias, Juíza da 3ª Vara de Falências e Recuperação de Empresas, da Capital, pela Escola Paulista de Magistratura.

[6] Importante observar que, em sede de tutela cautelar antecipada, o C. STJ suspendeu os efeitos do v. Acórdão, até que haja o julgamento do Recurso Especial interposto e já admitido.

[7] No primeiro painel do dia 9 de novembro, foi abordado o tema Tutelas provisórias na recuperação judicial, em mesa presidida pelo advogado, Doutor Guilherme França, com exposições dos Doutores Jorge Tosta, Juiz em 2º Grau na 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, Clarissa Somesom Tauk, Juíza da 3ª VFRE da Capital, e Elias Mubarak Júnior, advogado.