A AVARIA GROSSA E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Paulo Henrique Cremoneze
Entende-se por avaria grossa aquela voluntariamente causada pelo capitão do navio com o propósito de evitar o mal maior, desde que o perigo arrostado não tenha sido causado pelo próprio comandante, tripulação ou equiparados.
O novo Código de Processo Civil contém algumas poucas regras que interessam ao Direito Marítimo. Essas regras encontram-se na parte destinada aos procedimentos especiais e tratam da regulação da avaria grossa.
DA REGULAÇÃO DE AVARIA GROSSA
Antes de comentar os artigos que tratam da avaria grossa no Código de Processo Civil de 2015, faz-se necessário entender sua natureza jurídica e sua razão de ser.
Matéria extremamente importante para o Direito Civil e para o Direito Marítimo, a avaria grossa foi inserida no rol dos procedimentos especiais do novo Código de Processo Civil, Lei Federal nº 13.105/2015, sendo disciplinada nos seus aspectos formais nos artigos 707 a 711.
Não se pode dizer que o Código de Processo Civil de 2015 inovou com os referidos artigos, já que a avaria grossa há muito fazia e faz parte do sistema legal brasileiro, seja no corpo da parte não revogada do Código Comercial, seja nas letras do Código de Processo Civil anterior. Todavia, revestiu-se de maior formalidade com a previsão instrumental nos referidos artigos. As inovações foram poucas, porém consideráveis.
Basicamente, podemos afirmar, pouco coisa mudou em termos práticos com as regras do novo Código de Processo Civil, mas muito aproveita o estudo detalhado de cada artigo para a perfeita compreensão dessa figura legal tão importante para o Direito Marítimo.
E para entender corretamente a avaria grossa é importante um breve mergulho no tema “avarias” dentro do Direito Marítimo. Nesse breve mergulho, não nos limitares a expor a natureza jurídica da avaria grossa, mas, também seus reflexos jurídicos imediatos e mediatos.
A saber:
O tema avaria grossa é um dos maios polêmicos do Direito Marítimo e, portanto, de especial interesse dos seus atores: armadores, fretadores, afretadores, transportadores, consignatários, embarcadores e seguradores de cargas.
Isso porque, o reconhecimento ou não da validade e da eficácia da avaria grossa implica desdobramentos importantes nos cenários jurídicos e econômicos de um dado caso concreto.
Basicamente, pode-se dizer que a declaração de avaria grossa, efetivamente reconhecida, válida e eficaz, amortizará os deveres do transportador marítimo num sinistro.
Por outro lado, o não reconhecimento da validade e da eficácia da declaração ou a sua descaracterização imporão ao transportador todos os ônus jurídico-econômicos do sinistro.
Daí a importância do estudo dessa figura legal, tendo-se em conta que existem diferentes formas de inteligência do assunto no âmbito administrativo e no cenário judicial, bem como diferentes tratamentos pelos sistemas legais estrangeiros e o sistema legal brasileiro.
Em Direito Marítimo, existem dois tipos básicos de avarias: avaria simples, conhecida ainda por particular, e avaria grossa, também denominada avaria comum.
Por avaria, em sentido amplo, entende-se o dano havido ao bem confiado para transporte, ou seja, o prejuízo material resultante do transporte.
Trata-se de uma das modalidades de dano em transporte marítimo de cargas, caracterizando o inadimplemento contratual do transportador (a outra modalidade de dano é a falta na descarga, também conhecida por extravio de carga).
A avaria simples ou particular é a que recai sobre o bem transportado e tem como exclusivo responsável o transportador.
Nelson Nery Junior, na sua mais recente obra, “Comentários ao Código de Processo Civil: Novo CPC – Lei 13.015/2015” (Revista dos Tribunais, p.1535), diz: “(…) A avaria comum ou grossa é suportada em comum pelo proprietário do navio e pelos proprietários das cargas, e representa toda despesa ou dano que procede da vontade do homem, e feitos extraordinariamente em benefício comum, para salvação do navio e de seu carregamento, com resultado útil (Hugo Simas, Comentários ao Código de Processo Civil – arts. 675 a 781, RJ: Forense, 1940, p. 433), enquanto a avaria simples é aquela que deve ser suportada apenas pelo navio ou proprietário da coisa que sofreu o dano ou deu causa à sua despesa. V. CCom 763.”.
Não há muito que se falar sobre a avaria simples, já que é a mais comum em lides forenses e, de certa forma, inserida no contexto da própria responsabilidade civil do transportador marítimo.
Por isso, concentramos estudos na avaria grossa, esta sim passível de grandes controvérsias nas lides espalhadas pelo país.
Entende-se por avaria grossa aquela voluntariamente causada pelo capitão do navio com o propósito de evitar o mal maior, desde que o perigo arrostado não tenha sido causado pelo próprio comandante, tripulação ou equiparados.
Em outras palavras, “avaria grossa é toda despesa extraordinária ou dano causado ao navio ou à carga, voluntariamente, em benefício comum de ambos.”[1]
Trata-se de uma figura tradicional do Direito Marítimo e que se confunde com a própria história da navegação, até porque de âmbito internacional.
Além de tratados e convenções internacionais (os quais não se encontram em vigor no Brasil), a avaria grossa é também disciplinada pelo Código Comercial, na parte não revogada pelo Código Civil de 2002.
Instituto complexo e importante do Direito Marítimo, a avaria grossa reclama algumas condições particulares para ser efetivamente configurada:
Origem voluntária. Precisa ser deliberadamente causada;
Ser em benefício de todos os envolvidos e interessados no transporte marítimo de cargas vale dizer, transportador marítimo e proprietários de cargas. O ato tem que visar à segurança comum e atender o interesse geral. A avaria grossa não pode ser apenas para atender ao interesse do transportador marítimo;
Ser estritamente necessária para se evitar um mal maior. Todas as despesas e todos os sacrifícios são extraordinários e necessários para o não agravamento de uma situação danosa;
Efetividade. A avaria grossa tem que ser plena e efetiva. Significa dizer que o mal maior precisa ser, de fato, arrostado. Não se vislumbrando a efetividade, isto é, o sucesso da empreitada, não há que se falar em avaria grossa;
Necessidade de perigo real e iminente. O receio de tal, ainda que justo, não induz avaria grossa;
Ausência de responsabilidade prévia do transportador. Não se fala em avaria grossa se o mal maior a ser evitado foi culposamente causado pelo próprio transportador marítimo.
Todos os elementos caracterizadores da avaria grossa, para sua declaração formal, devem estar presentes num determinado ato-fato jurídico, sob pena de não se desenhar à figura legal. Demais, os referidos itens seguem os ditames do princípio da proporcionalidade. Ora, se a proporcionalidade não estiver presente em cada um dos itens acima observados, impossível se falar em avaria grossa, pois não é razoável que despesas e sacrifícios enormes sejam empregados sem que o mal não seja, em essência, um mal maior.
O efeito imediato da avaria grossa é e exoneração parcial de responsabilidade do transportador marítimo, já que os prejuízos serão repartidos, proporcionalmente aos interesses, entre os envolvidos numa dada viagem, notadamente os proprietários, armadores e afretadores, de um lado, e os proprietários de cargas e seguradores, de outro, todos basicamente representados pelo binômio navio-carga.
Trata-se da aplicação do princípio da equidade, segundo os defensores da aplicação tradicional da figura da avaria grossa, pelo o qual os que se sacrificam pelo benefício geral, devem ser por todos ressarcidos. Da mesma forma, os que efetuam despesas para o bem comum, devidamente reembolsado.
Para tanto, o Código Comercial dispõe, artigos 784 e 785, a obrigação de fiança idônea por parte dos donos das mercadorias transportadas, a fim de fazer frente ao pagamento da contribuição da avaria grossa a que seus bens forem obrigados no rateio final. Em não sendo operada esta garantia, o transportador marítimo poderá, inclusive, requerer o depósito judicial das mercadorias e sua venda posterior.
Em que pese a tradição do Direito Marítimo e, em princípio, a razoabilidade do conceito da avaria grossa, bem como a equidade que se observa na ideia de rateio comum, posicionamo-nos contrários a manutenção da avaria grossa. Hoje, o transporte marítimo não é mais uma aventura como no passado.
Trata-se, sim, de uma atividade vital para a economia global, atrelada ao próprio conceito de comércio exterior, que gera riquezas e tida como estratégica para a economia saudável de um país. Por isso mesmo, exige-se elevado grau de profissionalismo.
O transportador é o beneficiário imediato da operação de transporte, aquele que mais lucra com o transporte de cargas e dele literalmente vivem. Logo, é razoável que venha a suportar, sozinho, os prejuízos decorrentes de um dado sinistro, não se falando em avaria grossa, mesmo que, a fim de evitar mal maior, tenha dependido muito.
Afinal, em se tratando de uma obrigação contratual de resultado, aquele que tem o benefício maior, também tem que arcar com eventuais ônus.
Se, no passado, era justa a repartição de prejuízos em casos configuradores de avaria grossa, hoje decerto não o é mais, devendo, portanto, o transportador arcar, sozinho, com todos os prejuízos decorrentes.
Por isso, combatemos os efeitos jurídicos da avaria grossa, não concordando de forma alguma com o rateio de despesas e prejuízos, os quais se revelam extremamente onerosos para os proprietários das cargas.
De qualquer modo, mesmo em se mantendo a avaria grossa como tradicionalmente se encontra, observamos que sua declaração depende, além dos itens já mencionados, de prova técnica em tal sentido, já que não basta por si mesma a simples declaração.
A experiência profissional nos autoriza afirmar que muitos casos de supostas avarias grossas, mediante declarações dos transportadores (armadores) foram desqualificadas pela verdadeira natureza dos fatos, forçando os declarantes ao ressarcimento de todos os prejuízos que causaram por conta de falhas operacionais.
Conceder a uma avaria particular o status de avaria grossa é algo temerário e que não pode ser abraçado de forma alguma, sob pena de injustiça flagrante aos donos de cargas e seus seguradores.
É possível afirmar, com base na legislação vigente, que a avaria grossa, segundo a inteligência do direito brasileiro, só tem guarida e aceitação quando a causa antecedente ao dano voluntariamente causado pelo transportador para salvaguarda de bens maiores não tiver sido, de algum modo, por conduta culposa (ou dolosa), provocada pelo próprio transportador.
Há inegáveis razões ontológicas e de boa lógica jurídica para tanto, na medida em que não pode um dado benefício legal prejudicar quem o causador do dano.
Nesse mesmo sentido, muito aproveita lembrar que o sistema legal brasileiro opera a ideia de reparação civil ampla e integral, disposta como garantia fundamental constitucional, de tal modo que o benefício da avaria grossa e repartição de prejuízos e ônus se revelam injusta quando a causa antecedente for provocada pelo próprio beneficiário.
Vale lembrar por fim, que esse mesmo entendimento foi rigorosamente mantido nos artigos do Código de Processo Civil, ora em “vacatio legis”, que passou e passará a dispor sobre os procedimentos e a natureza jurídica da avaria grossa.
Não é ocioso, por fim, afirmar que esse entendimento se encontra praticamente pacificado no acervo jurisprudencial brasileiro, tornando quase letra morta as discussões a respeito.No mundo ideal, tudo isso bastaria para pôr pá de cal no assunto e fazer imperar a absoluta tranquilidade.
Infelizmente, não vivemos no mundo ideal e o Direito é dialético por natureza e excelência.
Não raro, os sinistros marítimos com interesses de embarcadores, consignatários e seguradores de cargas brasileiros ocorrem em águas internacionais, sob o manto de legislações estrangeiras, sistemas jurídicos diversos e são regulados fora do país.
Assim, os interessados brasileiros, ao menos num primeiro momento, numa fase inicial de tratamento de um determinado sinistro, são obrigados, não raro com alguma truculência comercial, à aceitarem imposições tidas como absurdas aos olhos do sistema legal do Brasil.
Com base em disposições contratuais adesivas dispostos nos anversos dos conhecimentos marítimos, os armadores e/ou transportadores declaram avarias grossas mesmo nos sinistros cujas causas antecedentes foram provocadas por eles mesmos.
E o fazem porque essas cláusulas contratuais (adesivas) remetem ao uso das Regras de York/Antuérpia, convenção internacional da qual o Brasil não foi signatário e que não é válida no sistema legal do país.
Aliás, muito válido afirmar que o Brasil, felizmente, reconhecendo sua condição de país “cargo” não assinou qualquer convenção internacional maritimista, preservando sua soberania e defendendo corretamente seus legítimos interesses. A única convenção que o Brasil assinou a de Hamburgo, em 1974, não foi ratificada pelo Poder Legislativo, de tal forma que não é parte integrante do seu acervo legal.
Assim, as regras de York/Antuérpia são ilustres desconhecidas do ordenamento jurídico nacional, felizmente.
Mas, em se tratando de uma questão apurada no exterior, impossível ao interessado brasileiro não se deixar submeter, mesmo que à contragosto, às avessas, ao sabor das referidas regras e aceitar a imposição do transportador.
Aceitar é o único meio de resolver eventuais pendências, obter a liberação da carga (quando for o caso) e não sofrer sanções de qualquer ordem e natureza.
Isso não quer dizer que, depois, sendo possível a invocação da jurisdição nacional (tudo, evidentemente dependerá das particularidades do caso concreto), a declaração de avaria grossa não poderá ser questionada.
Não só poderá como deverá ser questionada, se a causa antecedente tiver sido efetivamente provocada pelo transportador.
Ora, além de tudo o que já exposto sobre a verdadeira natureza jurídica da avaria grossa, ao menos segundo a legislação brasileira, tem-se que uma cláusula abusiva, presente num contrato de adesão, é tradicionalmente rotulada como nula de pleno direito pelo sistema legal brasileiro.
As leis e os órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz não aceitam as cláusulas abusivas, sejam elas delimitadores de foros, sejam elas limitativas de responsabilidade, sejam elas tipificadoras de benefícios legais-econômicos incompatíveis com a legislação brasileira, exatamente como as que tratam, nos conhecimentos marítimos, de forma absolutamente unilateral, adesiva, da avaria grossa.
E essa forma de encarar e aplicar o direito ganha ainda mais força e sentido quando a cláusula abusiva faz remissão aos termos de convenção internacional da qual o Brasil não foi signatário, como as tais regras de York/Antuérpia, absolutamente descompassadas com a ordem jurídica do Brasil e, até mesmo, coma realidade fática.
Com efeito, as referidas regras foram elaboradas para a manifesta proteção dos armadores e transportadores marítimos. Há nelas, sem exagero, elementos draconianos, os quais permitem o desequilíbrio de forças entre os transportadores de cargas e os proprietários dessas mesmas cargas, fazendo destes reféns daqueles. Além disso, o cenário da navegação naquele tempo era completamente diferente dos dias atuais. Os riscos eram maiores do que os de hoje, haja vista o desenvolvimento vertiginoso da engenharia, da indústria naval e dos sistemas de informação e de navegação.
Ora, até mesmo com base na jusfilosofia e na teoria tridimensional do Direito do Professor Miguel Reale (Direito é norma, fato e valor), qual o sentido de se aplicar à norma de ontem o mesmo valor diante do fato de hoje. A navegação contemporânea não é isenta de riscos e de perigos, de atos-fatos fortuitos, mas também não é mais uma aventura como no passado, sendo que o rol de riscos se torna menor a cada novo ano e o desenvolvimento exponencial da tecnologia empresa à essa arte precisa.
Aliás, faz muito, mas muito tempo, que o poeta já havia dito que “navegar é preciso, viver não é preciso” e só não entende a beleza dessa frase e a feição matemática da navegação quem não quer ou tem dificuldade em ler e interpretar a poesia e o Direito.
Em sendo assim, o interessado brasileiro, dono de carga ou seu segurador, que num primeiro momento foi premido a aceitar os efeitos jurídicos de uma avaria grossa poderá questionar, com ótima chance de êxito, esses mesmo efeitos no plano judicial brasileiro, afinal o que vale extrajudicialmente e à luz de um sistema jurídico estrangeiro, certamente não vale para o âmbito judicial, segundo o sistema jurídico brasileiro.
Não é exagero algum alegar que a declaração de avaria grossa – fundada no conhecimento marítimo e das regras de York/Antuérpia -, quando a causa antecedente ao dano voluntário não for efetivamente fortuita é ineficaz sob as lentes do Direito brasileiro, além de tudo já exposto, por agredir frontalmente o princípio-regra da boa-fé objetiva, prevista no artigo 422 do Código Comercial.
Também não é exagero algum afirmar que, de algum modo, a declaração de avaria grossa se enquadra nos vícios do consentimento, na medida em que os aceitantes não são de fato e de direito aceitantes, mas vítimas de uma imposição fática, não raro arbitrária, com uma roupagem jurídica sem moldes no Brasil.
Daí a convicção que, em muitos casos, bem dimensionadas as particularidades, a busca da ineficácia e invalidade da declaração de avaria grossa é perfeitamente possível, ensejando a luta pelo melhor Direito e a busca de simetria das relações jurídicas e negociais dos transportes internacionais de cargas.
Art. 707. Quando inexistir consenso acerca da nomeação de um regulador de avarias, o juiz de direito da comarca do primeiro porto onde o navio houver chegado, provocado por qualquer parte interessada, nomeará um de notório conhecimento.
Pelo teor dos comentários de introdução, vê-se a pertinência de o legislador ter aberto a parte destinada ao procedimento de avaria grossa com a possibilidade de o regulador ser nomeado pelo juiz.
A avaria grossa é essencialmente polêmica em sua constatação e apuração, na medida em que os interesses do navio não naturalmente divergente dos interesses dos donos das cargas.
Por isso, não é incomum as partes não concordarem com a escolha de um regulador, impondo a presença do juiz para designar alguém de sua confiança e presumidamente qualificado e idôneo para presidir os trabalhos de regulação.
Até o advento dos artigos 707 e seguintes do novo Código de Processo Civil, a regulação, quando efetuada no Brasil, tinha o procedimento previsto no artigo 783 do Código Comercial, não revogado pelo Código Civil de 2002, e algumas disposições no Código de Processo Civil de 1973. Parece-nos, pois, que o novo Código de Processo Civil chamou para si o procedimento e, mais importante, não excluiu a presença do Estado-juiz.
Com o enunciado do referido artigo e a possibilidade de o regulador, em caso de dissenso entre os interessados, ser nomeado pelo juiz, tem-se que o procedimento de avaria grossa poderá ser judicial, embora sua natureza inicial seja essencialmente extrajudicial.
A complexidade de uma avaria grossa, desde seu nascimento ao seu efetivo reconhecimento, implica, muitas vezes, calorosas divergências, reclamando-se a efetiva provocação do Poder Judiciário.
Logo, providencial a possibilidade, sem se descortinar a primazia da natureza extrajudicial do procedimento, de se poder buscar na arena do Poder Judiciário, em caso de divergência insuperável, a nomeação de um regulador idôneo e qualificado.
Com isso, não se tem por ferida a garantia constitucional de acesso à Justiça, dispensando-se a invocação desta e de maneira subjetiva.
A avaria grossa é uma realidade poliédrica e com gama de interesses muito complexa razão pela qual não pode deixar de ser apreciada, quando necessário, pelo Poder Judiciário, ainda que se tenha em alça de mira a preferência pela extrajudicialidade.
É bem verdade que o rito de regulação judicial está em desuso, mas não quer dizer que não se possa dele valer.
De outra banda, a possibilidade de o juiz nomear o regulador não significa uma adoção plena do rito judicial, mas apenas a presença pacificadora de conflitos do Judiciário num dado momento, equacionando interesses e legitimando-se ainda mais a regulação. Isso é o que o artigo 707 permite e garante.
Embora o artigo não faça menção a respeito, até por se tratar de questão de Direito Material, não processual, convém explicitar que o prazo prescricional para ações entre os contribuintes de uma avaria grossa é de um ano, com base no artigo 8º do Decreto-lei nº 116/67. Esse prazo nasceu, em verdade, com o artigo 449 do Código Comercial e se cristalizou no cenário jurídico brasileiro. Com a revogação do artigo 449 do Código Comercial pelo Código Civil de 2002, o prazo ânuo se manteve por força do referido Decreto.
Embora o procedimento de regulação de avaria grossa seja essencialmente extrajudicial, mesmo quando um juiz é provocado formalmente à nomear um regulador para um determinado caso concreto, nenhuma lesão ou ameaça de lesão à direito poderá deixar ser apreciada pelo Poder Judiciário, haja vista a garantia constitucional fundamental do acesso à Justiça.
Igualmente, a parte interessada poderá questionar se a avaria grossa merece ou não essa chancela, tendo-se em conta os muitos e diferentes efeitos jurídicos de sua declaração, com questionamento perante o Poder Judiciário, seja na hora da homologação da decisão final da regulação – se for o caso de se levar ao Judiciário essa homologação – seja, depois, via ação regressiva de ressarcimento se se configurar alguma causa desqualificadora da essência da avaria grossa. O reconhecimento num dado momento, à luz do procedimento cautelar previsto no Código de Processo Civil, não impede questionamento futuro com base exclusivamente no Direito Civil, embora o Código mencione a homologação
Art. 708. O regulador declarará justificadamente se os danos são passíveis de rateio na forma de avaria grossa e exigirá das partes envolvidas a apresentação de garantias idôneas para que possam ser liberadas as cargas aos consignatários.
1º A parte que não concordar com o regulador quanto à declaração de abertura da avaria grossa deverá justificar suas razões ao juiz, que decidirá no prazo de 10 (dez) dias.
2º Se o consignatário não apresentar garantia idônea a critério do regulador, este fixará o valor da contribuição provisória com base nos fatos narrados e nos documentos que instruírem a petição inicial, que deverá ser caucionado sob a forma de depósito judicial ou de garantia bancária.
3º Recusando-se o consignatário a prestar caução, o regulador requererá ao juiz a alienação judicial de sua carga na forma dos arts. 879 a 903.
4º É permitido o levantamento, por alvará, das quantias necessárias ao pagamento das despesas da alienação a serem arcadas pelo consignatário, mantendo-se o saldo remanescente em depósito judicial até o encerramento da regulação.
NOTA: Não há artigo correspondente no CPC/73
Ousamos dizer que dos artigos que trata do procedimento especial de regulação da avaria grossa, este é, sem dúvida, o mais importante, o que constitui o âmago do instituto.
Um artigo robusto e que disciplina a grande questão da avaria grossa: o seu efetivo reconhecimento num dado caso concreto.
Como mencionado na introdução dos presentes comentários, nem sempre é fácil de avaliar se um dado sinistro, se uma avaria, merece mesmo o signo de avaria grossa, comum.
E em virtude dessa dificuldade, muito interessante notar a determinação legal de o regulador identificar com precisão os danos próprios da avaria grossa e àqueles que são próprios das chamadas avarias simples, à serem suportadas exclusivamente pelo transportador marítimo.
Vale destacar que no “caput”, o legislador processual civil explicitou a necessidade de o regulador declarar, mediante detalhada justificativa, se os danos são ou não passíveis da chancela da avaria grossa.
Isso é algo muito importante, porque retira parte da antiga unilateralidade existente e segundo a qual o comandante do navio detinha a primazia da declaração.
O regulador, segundo Nelson Nery Junior, na obra já citada (p. 1545), “deve separar o que é passível de ser rateado por meio de avaria grossa e o que deve ficar a cargo de apenas uma das partes envolvidas”.
Para que os danos sejam considerados como próprios de avaria grossa, o regulador terá que os apontar, detalhar e justificar pormenorizadamente, para, somente depois, sendo aceita amplamente a declaração, exigir as garantias idôneas devidas e que tipificam os efeitos jurídicos da declaração.
O parágrafo primeiro autoriza a parte que não concordar com o regulador a apresentar impugnação, insurgindo-se formalmente. E isso é muito interessante e válido, pois, como já mencionado, o procedimento de avaria grossa requer máxima atenção, inclusive no que tange à própria avaria, vale dizer, se ela é ou não passível do signo de comum, grossa, com todos os efeitos jurídicos decorrentes e derivados.
A impugnação com remessa ao juiz para decisão ajusta melhor o procedimento e filtra bem o caso concreto, no sentido de ele corresponder ou não ao conceito de avaria grossa, cingindo a matéria com o rótulo da segurança jurídica.
O artigo trata da garantia idônea e dos gravames da não apresentação, impondo atos e procedimentos específicos dentro de um procedimento especial, tudo com vistas a equalizar direitos e interesses. Questões formais, mas que incidem positivamente dentro do quadro geral da avaria grossa.
Não é ocioso comentar que a oferta de garantias é bastante ampla, de tal sorte que todas são aceitas, ao menos em princípio, ficando ao critério do regulador eventual seleção.
Algo importante e que não pode deixar de ser devidamente anotado é quem em caso de não prestação espontânea da garantia, a lei processual autoriza a alienação judicial, incluindo as particularidades do Direito Marítimo.
Com efeito, ao tratar do artigo 708, como um todo, Cassio Scarpinella Bueno é enfático ao apontar uma dessas particularidades próprias do Direito Marítimo e diz que o referido artigo “se ocupa com a possibilidade de liberação da carga do navio enquanto tem início o procedimento de regulação das avarias e com os incidentes que podem ter lugar se houver discordância entre as primeiras deliberações do regulador e os consignatários para haverem a carga” (Novo Código de Processo Civil Anotado, Saraiva, São Paulo: 2015, p. 446).
Enfim, o acervo de regras do artigo 708 e parágrafos tem por objetivo o equilíbrio de interesses entre as partes envolvidas na avaria grossa, num verdadeiro mecanismo de calibragem, com sinais evidentes de proteção ao conceito de garantia jurídica.
Art. 709. As partes deverão apresentar nos autos os documentos necessários à regulação da avaria grossa em prazo razoável a ser fixado pelo regulador.
Inteligentemente, o legislador processual civil não fixou um prazo específico, permitindo o consenso entre as partes, certa liberalidade e a vontade do regulador, seja ele ou não nomeado pelo juiz.
Isso porque um sinistro envolvendo avaria grossa normalmente é muito complexo, com suporte-fático difícil e que exige especial atenção de cada envolvido.
Não raro, a coleta e apresentação de documentos não são coisas fáceis de serem levadas a efeito.
O princípio da razoabilidade é muito importante e ganha corpo especial por meio deste artigo.
No sistema do antigo Código, o prazo era fixo. Em verdade, prazos. Isso porque havia o prazo de 60 dias para embarcadores domiciliados no Brasil e 120 dias para os domiciliados no estrangeiro. O atual Código, dentro da visão pragmática que o informa, concedeu ao regulador a prerrogativa de fixação do prazo ou dos prazos, observadas as particularidades do caso concreto. Muito feliz tal disposição que longe de importar insegurança, permitirá maior fluidez e ideal carga dinâmica do procedimento, retirando gessos e infiltrando vigor.
Os documentos são muito importantes para o regulador conhecer a situação fática do sinistro e, portanto, ninguém melhor do que ele, segundo o esquadrinhamento do caso, para disciplinar o momento ideal e oportuno, pelas partes, dos documentos. E por documentos necessários, tenha-se por certo, entendam-se todos aqueles capazes de permitir ao regular uma perfeita avaliação do caso.
Art. 710. O regulador apresentará o regulamento da avaria grossa no prazo de até 12 (doze) meses, contado da data da entrega dos documentos nos autos pelas partes, podendo o prazo ser estendido a critério do juiz.
1º Oferecido o regulamento da avaria grossa, dele terão vista as partes pelo prazo comum de 15 (quinze) dias, e, não havendo impugnação, o regulamento será homologado por sentença.
2º Havendo impugnação ao regulamento, o juiz decidirá no prazo de 10 (dez) dias, após a oitiva do regulador.
Este artigo guarda correspondência com a 2ª parte do artigo 766 do Código de Processo Civil de 1939.
Trata-se de uma norma procedimental sobre um procedimento, bem ao sabor do princípio do “Recht über Recht” do Direito alemão. Norma sobre norma, relativamente ao desenrolar do procedimento de avaria grossa.
O prazo é justificado pela própria natureza de um sinistro envolvendo avaria grossa. A investigação cuidadosa dos fatos é imprescindível para que o regulamento seja levado a bom termo. Esse mesmo prazo, previsto na vigência do CPC de 1939 já era considerado excessivo. Muitas são as críticas ao mesmo, principalmente daqueles que acreditam que o prazo poderia ser de apenas um mês, prorrogável por eventual necessidade.
Tal questão à parte, trata-se de algo muito importante a possibilidade de impugnação, em tempo muito razoável. Isso porque nem sempre o que um transportador marítimo considera ato-fato típico de avaria grossa o é em essência. A impugnação é importante para que não haja, no futuro, causa determinante de uma disputa judicial autônoma relativamente ao reconhecimento ou não da declaração de avaria grossa.
Sobre o procedimento estampado nos parágrafos do artigo, tem-se o magistério de Nelson Nery Junior: “O procedimento judicial da regulação de avaria grossa é bastante simplificado: caso não haja impugnação ao regulamento, o juiz simplesmente procede a homologação; havendo a impugnação, o juiz abre vista e prazo para o regulador se manifestar a respeito, devendo proceder à sua própria manifestação dez dias dez dias depois do regulador” (Comentários ao Código de Processo Civil – Novo CPC – Lei 13.105/2015, São Paulo: RT, 2015, p. 1547).
Evidentemente que o juiz pode e deve entrar no exame do laudo, uma vez que não se pode admitir qualquer ofensa, mesmo em nome da arbitragem ou da natureza extrajudicial de um procedimento, aos princípios constitucionais fundamentais ligados ao amplo exercício da jurisdição. E se pode o mais, pode evidentemente o menos, vale dizer, tratar dos aspectos formais dos documentos coligidos aos autos do processo de regulação da avaria grossa. A homologação pelo juiz do regulamento de avaria grossa é ato soberano e que não comporta qualquer mitigação, submetido ao princípio da livre convicção do magistrado.
Art. 711. Aplicam-se ao regulador de avarias os arts. 156 a 158, no que couber.
NOTA: Sem artigo correspondente no CPC/73
Trata-se de uma regra que faz remissão ao estado do regulador da avaria grossa como auxiliar da justiça. Ora, em sendo assim, em sendo alguém comparado ao perito judicial, absolutamente normal que suas atribuições sejam dispostas dessa forma, à luz dos artigos 156 a 158, inclusive no que tange ao impedimento e à suspeição. Aliás, a equiparação não se dá apenas por pertinência lógica, mas por determinação expressa do artigo 149.
[1] Material didático da Funenseg – Fundação Escola Nacional de Seguros. Glossário de Terminologia Técnica Comercial Marítima. 2ª ed. Rio de Janeiro: 2002, p. 7