AUTONOMIZAÇÃO E ESTABILIZAÇÃO DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Daniel Mitidiero
Fugindo ao desenho tradicional da tutela antecipada, o legislador brasileiro inovou ao tornar procedimentalmente autônomo o juízo sumário que leva à concessão da tutela antecipada (art. 301) [1]. Em uma palavra: autonomizou a tutela antecipada. Trata-se de uma opção que tem como objetivo principal viabilizar a introdução do mecanismo da estabilização da tutela antecipada no direito brasileiro (art. 302).
Requerendo expressamente o autor na petição inicial (art. 301, § 5º), nos casos em que a “urgência for contemporânea à propositura da ação” (art. 301, caput), a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar, do valor da causa como um todo (art. 301, § 4º) e do perigo na demora [2]. A leitura do art. 301 suscita desde logo três observações.
A primeira é que qualquer tutela satisfativa do direito pode ser postulada mediante tutela antecipada antecedente. Está fora do alcance do art. 301 – e, portanto, do art. 302 – qualquer espécie de tutela cautelar, cujo regramento se encontra nos arts. 303 a 308. A segunda é que o pedido de tutela antecipada antecedente está limitado à urgência à propositura da ação, estando excluída a possibilidade de tutela antecipada antecedente – e, portanto, estável – nos casos de tutela da evidência. Embora tecnicamente possível, como mostra a experiência do référé provision francês (art. 809, Code de Procédure Civile), nosso legislador optou por limitar a tutela antecipada antecedente aos casos de urgência. A terceira é que a qualificação da urgência como contemporânea no caput do art. 301, embora à primeira vista possa sugerir uma restrição ao uso da tutela antecipada antecedente, é desmentida pelo incentivo que o legislador viabiliza ao autor para sumarizar formal e materialmente o processo com a sua estabilização. Lida a autonomização da tutela antecipada sistematicamente, a urgência que justifica o pedido de tutela antecipada antecedente não difere do perigo na demora capaz de justificar qualquer espécie de tutela antecipada.
Concedida a tutela antecipada na forma antecedente, tem o autor o ônus de aditar a petição inicial, com a complementação da sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em 15 dias ou em outro prazo que o juiz fixar (art. 301, § 1º, inciso I). O aditamento da petição inicial dar-se-á nos mesmos autos, sem incidência de novas custas processuais (art. 301, § 3º). Não realizado o aditamento, o processo será extinto sem resolução do mérito (art. 301, § 2º).
Realizado o aditamento, o réu será citado para a audiência de conciliação ou de mediação (art. 331). Não havendo autocomposição, começará a fluir o prazo para contestação (art. 332).
Não concedida a tutela antecipada, o órgão jurisdicional determinará o aditamento da petição inicial em até cinco dias. Não sendo aditada, a petição inicial será indeferida e o processo extinto sem resolução do mérito (art. 301, § 6º). O legislador fala em emenda à petição inicial. É certo, porém, que não se trata propriamente da emenda à petição inicial que se refere o art. 329: trata-se de aditamento da petição inicial a fim de que o processo, em sendo o caso, desenvolva-se regularmente. Em suma: é o aditamento a que se refere o art. 301, § 1º, inciso I.
A questão que ora mais interessa, porém, está ligada à hipótese em que a tutela antecipada é deferida, ocorre o aditamento da petição inicial pelo autor e é cientificado o réu da decisão que concede a tutela sumária. Isso porque o processo só prosseguirá rumo à audiência de conciliação e mediação se o réu interpuser agravo de instrumento contra a decisão que antecipou a tutela (art. 302). Se não o fizer, a decisão torna-se estável e o processo é extinto (art. 302, §§ 1º, 3º, 5º e 6º). Vale dizer: o juízo a respeito da tutela antecipada permanece procedimentalmente autônomo e a decisão provisória torna-se estável. Com isso, incentivado pela doutrina[3], o legislador logra seu intento de autonomizar e estabilizar a tutela antecipada.
No Código, o meio que dispõe o réu de evitar a estabilização da antecipação da tutela é a interposição do recurso de agravo de instrumento (art. 302, caput). Não interposto o agravo, estabiliza-se a decisão e o processo deve ser extinto (art. 302, § 1º) – obviamente com resolução do mérito favorável ao demandante. A decisão provisória projetará seus efeitos para fora do processo (art. 302, § 3º).
É claro que pode ocorrer de o réu não interpor o agravo de instrumento, mas desde logo oferecer contestação no mesmo prazo – ou, ainda, manifestar-se dentro desse mesmo prazo pela realização da audiência de conciliação ou de mediação. Nessa situação, tem-se que entender que a manifestação do réu no primeiro grau de jurisdição serve tanto quanto a interposição do recurso para evitar a estabilização dos efeitos da tutela. Essa solução tem a vantagem de economizar o recurso de agravo e de emprestar a devida relevância à manifestação de vontade constante da contestação ou do intento de comparecimento à audiência. Em ambas as manifestações, a vontade do réu é inequívoca no sentido de exaurir o debate com o prosseguimento do procedimento.
Não tendo o réu se manifestado pelo exaurimento da cognição, qualquer das partes poderá, dentro do prazo de dois anos (art. 302, § 5º), propor ação visando a exaurir a cognição – isto é, com o objetivo de aprofundar o debate iniciado com a ação antecipada antecedente (art. 302, § 2º) [4]. O legislador vale-se aí da técnica da inversão da iniciativa para o debate, que se apoia na realização eventual do contraditório por iniciativa do interessado (contraditório eventual). Nesse caso, a petição inicial da ação sumária tem de ser desarquivada para instruir a ação exauriente. Embora o art. 302, § 4º, dê a entender que se trata de uma faculdade da parte, é fundamental que a petição inicial e a decisão anterior instruam o processo para fins de aferição dos limites do debate e da eficácia da decisão anterior. Trata-se de documento essencial. Como se trata de uma continuação do debate anterior, o juízo que conheceu da ação antecipada está prevento para conhecer da ação final (art. 302, § 4º).
Por fim, conforme refere o § 6º do art. 302, “a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2º deste artigo“. O legislador refere que a decisão que concede a tutela antecipada não fará coisa julgada (será apenas estável), mas seus efeitos não poderão ser afastados de modo nenhum se, depois de dois anos, não for proposta ação tendente ao exaurimento da cognição.
A disciplina do direito brasileiro encontra ao que tudo indica inspiração nos procedimentos “de référé” (arts. 485 a 492) e “sur requête” (arts. 493 a 498) do direito francês e nos “provvedimenti d’urgenza” com “strumentalità attenuata” do direito italiano (art. 669-octies, Codice di Procedura Civile). Do “procédure sur requête” o direito brasileiro importou a ausência do contraditório [5] (nem o “procédure de référé” [6], nem os “provvedimenti d’urgenza” [7] prescindem do direito ao contraditório prévio). A eficácia que procurou outorgar à decisão estável depois de transcorrido em branco o prazo previsto para o exaurimento da cognição, contudo, não tem paralelo no direito francês e no direito italiano [8].
O legislador é claríssimo ao afirmar que a decisão que concede a tutela antecipada antecedente não faz coisa julgada. Além de dizê-lo expressamente (art. 302, § 6º), prevê ainda ação exauriente para o aprofundamento da cognição (art. 302, §§ 2º e 5º). Contudo, a questão que fica – apenas aparentemente – em aberto é a seguinte: como qualificar a força da estabilidade depois de transcorridos dois anos sem que tenha sido proposta a ação exauriente? O legislador é igualmente claro – embora não tenha se atrevido a dizê-lo diretamente: se a “estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão” tomada na ação exauriente (art. 302, § 6º), então é evidente que, inexistindo ação posterior ajuizada no prazo legal, a estabilidade torna-se “inafastável“. Em outras palavras: “imutável” e “indiscutível” [9].
É claro que é legítimo, desde o ponto de vista do direito ao processo justo (art. 5º, inciso LIV, CRFB), criar vias alternativas ao procedimento comum [10]. Nada obsta, portanto, que o legislador desenhe procedimentos diferenciados sumários do ponto de vista formal (encurtamento do procedimento) e do ponto de vista material (com cognição sumária, limitada à probabilidade do direito). O que é de duvidosa legitimidade constitucional é equiparar os efeitos do procedimento comum – realizado em contraditório, com ampla defesa e direito à prova – com os efeitos de um procedimento cuja sumariedade formal e material é extremamente acentuada.
Essa opção do legislador, portanto, remete ao problema de saber qual é a função do processo civil no Estado Constitucional. Somente a partir dessa perspectiva será possível analisar se semelhante opção é suportada pela nossa ordem constitucional. Sendo a obtenção de uma decisão justa uma das finalidades do processo civil no Estado Constitucional, o que remete para a necessidade de construirmos procedimentos orientados à sua busca, parece-nos que a limitação do direito ao contraditório e do direito à prova ínsita à sumarização procedimental e material da ação antecedente atua em sentido contrário à busca por uma decisão justa – e, pois, desmente uma das razões de ser da necessidade de um processo justo. A eficácia bloqueadora do direito fundamental ao processo justo [11], portanto, impede que se tenha como constitucional a formação de coisa julgada na tutela antecipada requerida de forma antecedente no caso de transcurso do prazo legal sem o exaurimento da cognição.
Isso quer dizer a estabilização da tutela antecipada antecedente não pode lograr a autoridade da coisa julgada – que é peculiar aos procedimentos de cognição exauriente. Passado o prazo de dois anos, continua sendo possível o exaurimento da cognição até que os prazos previstos no direito material para a estabilização das situações jurídicas atuem sobre a esfera jurídica das partes (por exemplo, a prescrição, a decadência e a supressio) [12].
Em resumo: o direito à adequada cognição da lide constitui corolário do direito ao processo justo e determina a inafastabilidade da ação exauriente para formação da coisa julgada [13]. Fora daí há ofensa ao direito fundamental ao processo justo pelo próprio legislador infraconstitucional incumbido de densificá-lo.
[1] As alusões aos artigos do Projeto do novo Código de Processo Civil levam em consideração a versão divulgada no sítio do Senado Federal em dezembro de 2014, isto é, a versão aprovada na comissão especial destinada a examiná-lo.
[2] O legislador alude ainda no final do caput do art. 301 ao “risco ao resultado útil do processo”, expressão notoriamente ligada a um determinado período da história do processo civil em que a tutela cautelar era vista como uma tutela ao processo e não como uma tutela do direito material. É claro, porém, que está fora do âmbito dos arts. 301 e 302 a tutela cautelar antecedente. Daí que a referência ao “risco ao resultado útil do processo” nesse particular tem de ser vista como um evidente descuido do legislador. A tutela cautelar antecedente é assunto dos arts. 303 a 308.
[3] A proposta é notoriamente devida a Ada Pellegrini Grinover: Proposta de alteração ao Código de Processo Civil. Justificativa. Revista de Processo, p. 191-195, n. 86; e Tutela jurisdicional diferenciada: a antecipação e sua estabilização. Revista de Processo, p. 11-37, n. 121. Nessa linha, essencialmente, José Roberto dos Santos Bedaque: Estabilização das tutelas de urgência. Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. p. 660-683. Ademais, a proposta de inversão do contraditório ligada à autonomização da tutela sumária sempre permeou a doutrina de Ovídio Baptista da Silva (por exemplo, O contraditório nas ações sumárias, Da sentença liminar à nulidade da sentença. p. 283). Todavia, Ovídio Baptista da Silva não esclarece se, na sua visão, a tutela sumária poderia levar à coisa julgada – como no pensamento de Ada Pellegrini Grinover. Sobre a estabilização da antecipação da tutela na doutrina brasileira, André Tesser, Tutela cautelar e antecipação de tutela, p. 159 e seguintes; Gustavo Paim, Estabilização da tutela antecipada, passim; Jânia Saldanha, Substancialização e efetividade do direito processual civil. A sumariedade material da jurisdição, passim; Guilherme Recena Costa, Entre função e estrutura: passado, presente e futuro da tutela de urgência no Brasil, tutelas de urgência e cautelares, p. 659-675.
[4] Como simples prosseguimento da ação antecedente, o processo oriundo da ação exauriente não implica por si só inversão do ônus da prova: a prova do fato constitutivo do direito permanece sendo do autor da ação antecedente – agora réu na ação exauriente. Ao réu da ação antecedente – agora autor da ação exauriente – tocará, em sendo o caso, a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo.
[5] CADIET, Loïc; JEULAND, Emmanuel. Droit judiciaire privé. p. 517.
[6] CADIET, Loïc; JEULAND, Emmanuel. Droit judiciaire prive. p. 513.
[7] CARPI, Federico; TARUFFO, Michele. Commentario breve al Codice di Procedura Civile. p. 2.434.
[8]RICCI, Edoardo. Verso un nuovo processo civile? Rivista di Diritto Processuale, 2003, p. 214-216; THEODORO Jr., Humberto. Tutela antecipada. Evolução. Visão comparatista. Direito brasileiro e direito europeu. Temas atuais de tutelas diferenciadas: estudos em homenagem a Donaldo Armelin, passim.
[9] Como observa Sergio Menchini, “Nuove forme di tutela e nuovi modi di risoluzione delle controversie: verso il superamento della necessità dell’accertamento con autorità di giudicato”, Rivista di Diritto Processuale, 2006, p. 878: é difícil “individuare, per la produzione di effetti preclusivi, capaci di impedire, in processi sucessivi, la negazione, in tutto o in parte, del diritto di obbligazione, un titolo giuridico differente dell’autorità di cosa giudicata”. Essa, aliás, é a proposta de Ada Pellegrini Grinover: Proposta de alteração ao Código de Processo Civil. Justificativa. Revista de Processo, p. 191-195, n. 86.
[10] CAPONI, Remo. La tutela sommaria nel processo societario in prospettiva europea. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 2004, p. 1.388-1.390.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO; Daniel. Curso de direito constitucional. p. 710, em coautoria com SARLET, Ingo Wolfgang; ÁVILA, Humberto. O que é devido processo legal? Revista de Processo, p. 50-59, n. 163.
[12] CAPONI, Remo. La tutela sommaria nel processo societario in prospettiva europea. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 2004, p. 1.373.
[13] MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. p. 120-124.