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A AUTOFALÊNCIA COMO SOLUÇÃO VANTAJOSA E ÉTICA NA REALIDADE PÓS-COVID-19

A AUTOFALÊNCIA COMO SOLUÇÃO VANTAJOSA E ÉTICA NA REALIDADE PÓS-COVID-19

Felipe Caon

Caio Azuirson

 

A frase atribuída a David Rockefeller — “the business of business is business, not ethics” — pode muito bem refletir o capitalismo de seu tempo, pouco fértil na reflexão do conteúdo social e sustentável na busca pela prosperidade, que domina o debate econômico do século XXI. Esse capitalismo foi herdeiro das chagas do modelo de negócios surgido do século XIX, em que o prazer do prejuízo ao adversário era mais valioso do que a preocupação pela redução mútua de danos.

O inevitável domínio das discussões relativas ao direito falimentar em épocas de crise, como a que agora enfrentamos, leva-nos a refletir sobre como os instrumentos da Lei nº 11.101/2005 (autofalência, recuperação judicial, recuperação extrajudicial etc.) podem auxiliar na materialização dos princípios da disciplina. Qual deles será, a partir da análise da situação econômico-financeira da empresa pós-pandemia, o mais eficaz? Muitos profissionais, sem se dar conta, estão cegamente inclinados a tentar emplacar a recuperação judicial para soerguimento da empresa quando, na verdade, em um elevado número de casos, mais econômica é a opção da falência, sob o viés da diminuição de prejuízos.

Dentre tais instrumentos que regem juridicamente a insolvência, a figura da autofalência — assim mais chamada pelos tribunais, em detrimento da “falência requerida pelo próprio devedor“, como previsto na lei — ainda representa a última das opções adotadas na prática, como resposta a uma dissolução total desnecessariamente procrastinada.

Apesar de suas vantagens legais, a sua rejeição enquanto alternativa imediata se dá, principalmente, por dois motivos que se complementam: o primeiro diz respeito às condicionantes principiológicas (v.g. preservação da empresa) e legais (pois declarada se inviável a recuperação, cf. artigo 105, caput, da LFRE); o segundo trata da legítima luta do empreendedor na manutenção das atividades empresárias através das ferramentas à sua disposição. Não raramente, entretanto, essa insistência — que muitas vezes decorre da má experiência do instituto no país — reflete no aprofundamento do estado de crise e no alargamento de prejuízos ocasionados à devedora e aos seus credores.

Em trabalho original publicado em 2017, Jupetipe et al deu números à afirmação acima. Apenas os custos diretos do processo de falência, que dura em média 9,2 anos, consomem em média 38,62% do ativo inicial da devedora. Ao final, a quantia remanescente só é o bastante para satisfazer 12,40% do valor dos créditos, sendo 60,19% da classe extra concursal (apenas considerados honorários profissionais, custas e despesas judiciais) e 35,06% da trabalhista [1].

Uma das justificativas que se abstrai dos números é, inevitavelmente, a do fator tempo. O passivo que se avoluma com a soma de encargos representa muitas vezes o elemento decisivo para a baixa liquidez financeira, prejudicando sobremaneira e decisivamente o tamanho da dívida no estado pré-falimentar. Na companhia atual do fracasso, pergunta-se: qual credor preferiria passar anos a fio gastando tempo e alocando recursos em uma recuperação judicial notoriamente irrealizável, confiando em planos que sugerem, sem constrangimentos, deságios de 70% ou 90% sobre o crédito a ser recebido em dez ou 20 anos? Qual a perda financeira ocasionada por todas as recuperações convoladas em falência? Tais dúvidas surgem da constatação de que a recuperação judicial tem sido utilizada com frequência de forma desvirtuada, em plena fuga do seu ideal: deixar de ser meio de boa-fé para superação da crise temporária/cíclica da atividade para se tornar trilha de calote a longo prazo.

Além de os indícios indicarem que na crise a demora é inimiga da eficácia de uma eventual recuperação, um outro prejuízo decorrente da protelação incide sobre o sentimento do empresário, pois, parece que, do ponto de vista subjetivo, natural que os efeitos da falência — normalmente aliada ao sentimento de insucesso — também lhes causem prejuízos pessoais. Mas, sobre essa questão, apesar de parecer desnecessário, é sempre bom reafirmar que, no caso das sociedades empresárias, a falência é da empresa insolvente, a sociedade empresária, e não dos sujeitos que detêm suas cotas/ações.

Não obstante, nos inúmeros debates sobre a Lei de Falências nítidos são os resquícios de confusão quando se enfrenta o tema, todos recorrentes nos serviços de consultoria. E o comentário é necessário porque a ameaça dos efeitos jurídicos falimentares provoca naturais receios nos empreendedores, que muitas vezes aguardam a liquidação final da falida como condição à retomada dos negócios. Como se de algum modo, sem correta justificativa, estivessem eles pessoalmente sob a ameaça legal da “desabilitação” ou outra sanção que seja. Nesse sentido, as boas discussões que atualmente dominam o tópico, como a do fresh start, também se prestam a aperfeiçoar o espectro legal da matéria, pois objetivam criar facilidades para a breve retomada de atividades, por parte do empreendedor. Sutilmente, esse aprimoramento disciplinar já é, em si mesmo, o próprio estímulo à autofalência, pois deseduca a prorrogação da quebra através de recuperações judiciais desenganadas e vendidas a todo custo a credores.

Quando oportuna, certamente a recuperação judicial deverá ser preferida como solução à crise da empresa (artigo 47 da LFRE), afinal, estamos tratando de emprego de brasileiros e também de grande parte da receita do Estado. A sugestão deixada, todavia, é exatamente aquela que enaltece a autofalência como uma fórmula muitas vezes mais racional de mitigação de prejuízos dos envolvidos, contrariamente aos altos custos de um processo recuperacional. Se já existem sérias previsões que declaram até 2,3 mil pedidos de socorro à legislação falimentar para 2020, o que se passará com o mercado com a possível promulgação de leis (já em tramitação) que determinam a negociação preventiva com a potencial insolvente, aplicam moratória-geral, impedem a resilição de contratos e a decretação de falência no período de sua incidência? Diante de dados extraídos da prática, tudo indica que, ao invés de tais normas jurídicas representarem a chave da superação da crise, representarão o “cadáver-adiado“, na sua versão empresarial.

Por fim, se a frase que abre este simples texto exemplifica o desempenho da atividade empresarial em sua era, certo é que, atualmente, o dever contido na norma do artigo 105 da Lei nº 11.101/05 — o de pedir falência, diante do estado de insolvência — alcança fortes significados no plano da ética. A tomada de decisões mais lógicas e benéficas diante do claro estado de irrecuperabilidade da empresa não apenas beneficia credores, mas também o próprio devedor honesto, a economia e, por que não, toda a sociedade.

[1] JUPETIPE, Fernanda Karoliny Nascimento; MARTINS, Eliseu; MÁRIO, Poueri do Carmo e CARVALHO; Luiz Nelson Guedes de. Custos de falência no Brasil comparativamente aos estudos norte-americanos. Rev. Direito GV, São Paulo, v. 13, nº 1, p.20-48, abr. 2017. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322017000100020&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:  11/6/2020.