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ATO PROCESSUALIZADO E AÇÃO ANULATÓRIA

ATO PROCESSUALIZADO E AÇÃO ANULATÓRIA (ARTIGO 966, § 4º, DO CPC)

Cássio Benvenutti de Castro

SUMÁRIO: Introdução; 1 A caracterização do ato processualizado no confronto com o ato processual; 2 Os efeitos da processualização e a questão da invalidação do ato processualizado (ação anulatória); Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O fato jurídico é um acontecimento com aptidão para produzir consequências no mundo jurídico, pois consiste na reunião do “fato sensível + incidência da norma“. Segundo Marcos Bernardes de Mello, a norma jurídica, portanto, enquanto não se materializa no mundo o seu suporte fático, não passa de uma proposição linguística sem consequências jurídicas quaisquer. Só a cópula norma/suporte fático cria fato jurídico e somente de fato jurídico nascem efeitos jurídicos. Por isso, qualquer doutrina que não leve em conta esses elementos, como as doutrinas normativistas que somente veem a norma, relegando a plano secundário, ou mesmo deixando de lado o fato jurídico, jamais poderão explicar convenientemente o fenômeno jurídico.[1]

Os exemplos de fatos jurídicos, no sentido amplo, podem ser visualizados no nascimento, na morte, no casamento, no contrato e no testamento, entre tantos outros. Um rol a depreender que os fatos jurídicos consistem em fatos da vida nos quais a incidência da norma jurídica implica diferentes consequências. Justamente, o critério que particulariza a classificação está na maior ou na menor escala de atuação da vontade humana no preenchimento do suporte fático eleito, abstratamente, pela norma jurídica[2][3].

A subdivisão do gênero fato jurídico, em espécies, utiliza o critério da vontade colocada no núcleo do suporte fático abstrato delimitado pela norma. Daí resultam o fato jurídico no sentido estrito, o ato jurídico no sentido estrito[4] e o negócio jurídico – as categorias que trafegam da menor à maior influência da vontade humana como elemento-chave no suporte fático em abstrato. Um fenômeno da teoria do Direito, que acontece tanto no direito material como no direito processual.

Não por acaso, o CPC estabelece, no art. 966, § 4º:

  • 4º Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei.

Na espécie fato jurídico stricto sensu, localizam-se os acontecimentos que independem da vontade humana no núcleo do suporte fático, a exemplo da morte e do nascimento[5]. A norma jurídica não permite espaço à vontade humana no cerne do suporte fático abstrato, à medida que, ocorrendo os eventos previstos, automaticamente, incide a norma e as suas consequências. Nesse ponto, tais fatos não interessam ao estudo.

De maneira diferente acontece no cerne do suporte fático abstrato que a norma estabelece para os atos jurídicos e para os negócios jurídicos, aos quais o elemento vontade humana é decisivo[6]. Aqui não se trata de eventos alheios à vontade.

Por sua feita, a diferença entre os atos jurídicos e os negócios jurídicos compete ao “espaço de jogo“, ou melhor, à escala de influência que a vontade humana pode preencher – os atos jurídicos constituem atos da vontade humana dirigida a determinada finalidade, na qual não se permite aposição de circunstâncias acidentais (condição, termo, encargo), uma vez que a própria norma jurídica incidente define todos os efeitos atribuídos; em contrapartida, o negócio jurídico aprofunda o grau de intervenção da vontade humana, consoante a previsão abstrata prevista pelo sistema normativo[7], chegando a se permitir que os sujeitos da relação jurídica disponham sobre os efeitos do negócio (as circunstâncias do fato jurídico em sentido amplo) – a condição, o termo e o encargo.

O mistério reside no plano da eficácia. O plano da eficácia dos atos jurídicos é pautado totalmente pela norma jurídica, enquanto o plano da eficácia dos negócios jurídicos é pautado parcialmente pela norma jurídica, na medida em que os efeitos dos negócios podem ser, de alguma forma, manejados pela vontade dos sujeitos.

A doutrina[8] esclarece que a distinção básica entre atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos está em que, nestes, a lei deixa à autonomia privada uma margem de liberdade, dentro de cujos limites podem os sujeitos criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões e ações. No negócio jurídico, existe sempre uma margem de autonomia privada que a lei reserva aos particulares, possibilitando-lhes estabelecer uma determinada forma de autorregulamento de seus próprios interesses e ações para o futuro, de tal modo que o ato e suas consequências jurídicas são determinados pela vontade, ou, se nem sempre por um ato volitivo expresso, ao menos em decorrência daquela margem de autonomia que a lei reserva aos participantes do ato. Nos atos jurídicos stricto sensu, ao contrário, os efeitos que os atos humanos hão de produzir estão determinados diretamente pela lei, não obstante possa haver uma classe de atos que não são negociais em que a vontade do agente se manifeste e tenha relevância.[9]

A lembrança sobre as espécies de fatos jurídicos (sentido amplo) permite sistematizar que, dentre os atos jurídicos stricto sensu, temos situações como o casamento, a revogação de um mandato, bem como a aceitação da herança. Nesses casos, a própria norma jurídica define toda a sorte dos efeitos imputados ao suporte fático realizado, sendo inviável sua vinculação a variações eficaciais (vale dizer, é impossível negociar sobre esses atos os aspectos como a condição, o termo ou o encargo). Em contrapartida, aceitável que os sujeitos combinem a colocação de elementos acidentais (circunstâncias) – condição, termo, encargo – no negócio jurídico, qualificando o seu momento eficacial, à medida que o sistema normativo permite verdadeiras faculdades aos negociantes, vide o exemplo do contrato.

A depender do núcleo do suporte fático abstrato, previsto na norma jurídica, segundo o grau de valorização do elemento vontade humana[10], é possível identificar as subespécies de fatos jurídicos: o fato jurídico stricto sensu, o ato jurídico stricto sensu e, para o que interessa o texto, o negócio jurídico. Esses dois últimos é que agora interessam, porque eles é que perpassam o plano da validade e da eficácia. Quanto ao fato jurídico no sentido estrito, à medida que dispensa a vontade humana em seu núcleo, não se fala em plano da validade, apenas no plano da existência, e disso advém um interesse secundário à dissertação.

Uma classificação análoga também pode ser utilizada no processo civil[11], desde que adequada às peculiaridades do rigor formal do processo.

Basta imaginar, por exemplo, que a morte de uma parte, além de fato jurídico no sentido estrito, da mesma forma é um fato jurídico processual, que acarreta a suspensão do processo e a habilitação da sucessão do falecido. Densificando a linha de visada, segundo o critério da vontade humana como elemento nuclear do suporte fático previsto em abstrato pela norma jurídica, o ato jurídico (sentido largo) processual é a manifestação de vontade humana que tende a criar, a modificar, a conservar ou a extinguir o processo, sejam os atos dos agentes estatais (juiz e auxiliares), como o das partes e dos intervenientes.

Qualquer classificação se arrisca na eleição das próprias prioridades.

Portanto, a chave desse momento não é elaborar uma sistematização de todos os critérios[12] que levam às diversas classificações dos fatos jurídicos no processo, mas chamar a atenção para o critério que utiliza o cerne do suporte fático para dividir os fatos jurídicos, à semelhança do que ocorre no direito material – ou seja, segundo a maior ou menor escala da vontade no suporte fático abstratamente previsto, os fatos processuais em sentido amplo também podem se subdividir nas espécies: (a) fatos jurídicos processuais no sentido estrito, como a morte de uma das partes ou o falecimento do advogado; (b) os atos jurídicos processuais, como a intimação e a penhora; e (c) os negócios[13] jurídicos processuais, que já existiam no CPC/1973, a exemplo do acordo para fixação do foro de eleição (art. 111), da convenção para a redistribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único), do negócio para a dilatação de prazo impróprio (art. 181), da convenção para suspensão do processo (arts. 265 e 792), da escolha da liquidação por arbitramento (art. 475-C, I), e agora vem expressos no art. 190 do CPC.

Todavia, o ensaio não aprofunda a análise dos atos ou dos negócios processuais no sentido estrito. As reflexões possuem um foco: atos de direito material que são colocados para dentro do processo – daí se falar na categoria de atos processualizados, cujo fundamento positivo está no art. 966, § 4º, do CPC, e não no art. 190 do CPC.

Com efeito, nem todos os atos praticados no processo consistem em atos processuais em sentido estrito. Desde o momento em que inserido no processo, pelo simples fato da processualização, um ato jurídico acaba se transformando em um ato do[14] processo.

Todavia, o gênero ato do processo não quer dizer ato processual típico ou ato processual propriamente dito.

Um ato processual típico é apenas uma das espécies em que se subdivide o gênero atos do processo. A outra espécie, que compõe esse mesmo gênero, é a do ato processualizado.

A distinção é fundamental.

A doutrina consolidou uma série de requisitos que encerra a definição de ato processual típico. O predicado de ato processual especializa-se por intermédio de um conjunto de características que se coordenam entre si. Em um primeiro momento, possível admitir que diversas teorias entrechoquem-se para disputar a prevalência. Acontece que as diferentes correntes não se excluem reciprocamente, mas possibilitam uma coordenação funcional.

O art. 966, § 4º, do CPC permite uma aproximação do tema, que perpassa na caracterização do ato processualizado até culminar na “ação anulatória” do ato processualizado. Daí a necessidade de uma precisa conceituação.

1 A CARACTERIZAÇÃO DO ATO PROCESSUALIZADO NO CONFRONTO COM O ATO PROCESSUAL

As quatro principais orientações sobre a definição de um ato processual típico (ou propriamente dito) são as seguintes: (a) a teoria “eficacial“, que reputa ato processual o que apresenta condições de produzir efeitos no processo, ou seja, o que interessa para essa corrente é o valor do ato jurídico para o processo; (b) a teoria “subjetiva”, porque denomina ato processual aquele praticado pelos sujeitos da relação processual; (c) a teoria da “sede”, a mais utilizada, que define o ato processual em virtude do local onde tenha sido praticado o ato, uma questão de topologia; (d) e a teoria da “integração“, que entende ser um ato processual o ato jurídico praticado no procedimento, pelos sujeitos que atuam no processo. Isoladamente consideradas, cada uma dessas correntes ensejou crítica.

A teoria subjetiva, que define o ato processual como o ato jurídico praticado estritamente pelos sujeitos de uma relação jurídica (item b), trabalha com uma metodologia orgânica, pois fundada no dogma do processo enquanto uma “relação jurídica“. Essa corrente, adotada por Chiovenda[15], retira da definição de ato processual alguns dos sujeitos intervenientes que não são as partes, o juiz, ou os atores secundários[16] (auxiliares da justiça e advogados). Por exemplo, um ato jurídico pertinente à intervenção do assistente simples, ou mesmo um ato praticado por ele ou até pelo Ministério Público na condição de fiscal da lei, não consiste em um ato processual. Uma tese que despreza o fato de o processo ser um conjunto de atos interligados, todos conjurados em uma unidade procedimental e direcionados à finalidade do devido processo legal, que é o provimento que entrega a prestação jurisdicional[17]. A teoria subjetiva retorna à estática do processo civil como relação jurídica processual.

Calmon de Passos provoca:

Vincular aos sujeitos da relação processual a processualidade do ato é levar em conta menos do que a realidade impõe seja considerado. A atividade processual (aquela que se desenvolve no processo e pelo direito processual é regulada) não é atividade apenas dos sujeitos da relação processual, sim de todos quantos exercitam no processo, a qualquer título, direitos, poderes, faculdades, funções ou atendem a deveres e obrigações que lhes foram por lei atribuídos.[18]

A teoria da sede, que se utiliza do critério topológico ou geográfico para individualizar o ato processual (item c), por si só, também não resolve plenamente a questão. Existem determinados atos ou negócios jurídicos que, embora outsiders, mesmo celebrados fora ou antes do processo iniciar, produzem efeitos diretos no processo. Basta imaginar uma convenção para redistribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único, a contrário senso). Esses atos ou negócios jurídicos possuem significativo valor para o processo, influenciam diretamente o provimento que resulta ao cabo do procedimento; logo, possuem fundamento bastante para afastar uma aceitação completa da teoria da sede.

O critério da “sede” é assaz utilizado como um critério da “processualização“, o que implica uma confusão do ato processual típico com o ato processualizado. Ressalto se tratarem de espécies do gênero atos do processo, mas que cada qual apresenta uma individualidade deveras particular. Óbvio que a teoria da “sede“, defendida por Satta[19], é a mais persuasiva para caracterizar o ato processual. Por uma lógica fundada na ubiquidade, é muito convincente dizer que tudo o que toca o processo é um ato “processualizado” e que essa “processualização” é sinônimo de ato processual.

Uma perigosa falácia.

A nota da “processualidade” não é argumento suficiente para excluir da definição de ato processual a outra espécie – a categoria do ato processualizado. A teoria de Satta deixa as coisas sem uma solução. Isso é retrato de não aproximar o direito ao processo, ou melhor, o equívoco talvez seja laborar com um dualismo absoluto e não dissolver uma barreira que por séculos separou o processo do direito material, tudo em prol da tutela.

A teoria da eficácia[20] define o ato processual pelo critério da possibilidade de o ato jurídico produzir efeitos imediatos no processo (item a). A caracterização não reside somente na localização ou geografia do ato jurídico, mas no seu valor para o processo. Portanto, mesmo quando realizado fora do processo, pela relevância dos efeitos dele emanados, um ato jurídico pode ser considerado ato processual como, por exemplo, a convenção para a eleição do foro e a preclusão lógica do recurso pela aquiescência com o provimento sentencial.

Capitaneada por Carnelutti[21], essa corrente não explica a diferença entre o ato processual típico e o ato processualizado. Apesar de ocasional ao processo, também é possível dizer que o ato processualizado produza efeitos no processo. Tais efeitos seriam diretos à própria vida do processo. O autor cita como atos não processuais a renúncia ao direito e o reconhecimento do pedido sem, contudo, definir o motivo da diferença entre os efeitos produzidos por esses atos e os efeitos produzidos pelos atos que ele considera proces­suais. Ou seja, o aspecto da processualidade, que ele caracteriza como o “valor para o processo“, não é muito nítido de maneira a permitir uma subdivisão da classe atos do processo em ato processual e ato processualizado. Mais um reflexo do dualismo exacerbado inerente à escola sistemática italiana.

Até aqui, quando aplicadas isoladamente, as teorias que definem o ato processual parecem não superar todas as críticas. Um exame coordenado das escolas torna-se intuitivo, o que, de alguma maneira, é a fortuna da teoria da integração.

Em primeiro lugar, fácil assinalar que um ato processual é dotado de processualidade, pois integra um procedimento. Pelo simples fato dessa inserção, o ato processual produz efeitos sobre o procedimento e sobre o processo, e em função dele é que deve ser praticado pelos sujeitos que ocupam as posições jurídicas, exercem direitos, faculdades, cumprem deveres, ou se protegem contra ônus, no decorrer do procedimento.

Calmon de Passos resume:

O ato, para ser entendido como ato processual, não somente deve ser um ato integrante do conjunto de atos que constituem o processo e com eficácia para o processo, mas também uma terceira exigência se deve somar às duas precedentes – sendo ato do processo e com efeitos no ou para o processo, ele também deve ser ato que só no processo pode ser praticado. Donde conceituar o ato processual como aquele que é praticado no processo, pelos sujeitos da relação processual ou do processo, com eficácia no processo e que somente no processo pode ser praticado.[22]

O ato processual no sentido estrito (ou ato processual típico: o ato processual propriamente dito) consiste no ato jurídico regulamentado pelas normas do processo civil, pelo rigor formal do processo e, em linha de princípio dogmático[23], não[24] se submete a tratamento especificamente elaborado para outras espécies de atos jurídicos. Assim, a teoria da integração parece ser a mais abrangente, a que resolve a maioria dos problemas, quando considera o ato processual como o ato jurídico praticado pelos sujeitos não de uma relação processual, mas o ato dos sujeitos do processo e que atuam no decorrer do procedimento (item d).

A teoria da integração utiliza uma leitura amplificada[25], resumida por Fazzalari: “A disciplina de cada um dos atos é assinalada em função do ato enquanto componente de um processo. Ela, por um lado, determina a colocação e o papel de cada ato na série e, por outro lado, disciplina validade e eficácia do ato em conexão com toda a série[26].

Se o ato processual é um partícula (ou um átomo) do procedimento, coerente dizer que, sem o ato processual, jamais poderia existir um procedimento. Uma questão de antonomásia. Como o processo é uma espécie do gênero procedimento, óbvio que sem um ato processual também não existe um processo jurisdicional. Daí a referência que a série de atos processuais de maneira lógica e cronológica é instrumental ao procedimento e ao processo. Desde o ato inicial da demanda, ao largo do desenvolvimento do procedimento, até o momento do provimento final, o ato processual consiste em uma figura típica, da essência mesmo dessa sucessividade.

Quando atrela o ato processual ao procedimento, natural pensar no ato processual como um “ato próprio do processo e com finalidades processuais”[27]. A definição de Fazzalari, embora tenha sido batizada como a teoria da “integração”[28], parece que não se utiliza apenas do critério da mera colocação do ato processual no procedimento, da inserção do ato processual no processo. Uma hermenêutica desse quilate acabaria por equiparar a teoria da integração à teoria da sede, apoucando o sentido multifacetado que Fazzalari subentende.

A definição formulada por Fazzalari, acima transcrita, permite identificar a utilização dos conceitos “função“, “disciplina” e “validade e eficácia” para caracterizar os atos processuais ligados em série, em procedimento. Uma teoria nitidamente normativa. O que isso afirma?

Fazzalari ratifica que o ato processual consiste em um ato jurídico cujo fundamento é extraído das normas do direito processual civil. Logo, a estrutura do ato processual atende à tipicidade, que, por sua vez, é inerente ao respectivo efeito que tal ato pretende atingir no processo, ou seja, o ato atende ao rigor formal do processo. Para produzir efeitos no processo (e fora dele, enquanto resultado da atividade), necessário que o ato processual obedeça à funcionalidade definida pelo formalismo processual. O processo é o local em que o ato processual pode, deve, ou em função do qual o ato é praticado, sendo que assim desencadeia, impulsiona, instrui, ou, de alguma maneira, aparece ao largo da série normativamente prevista. Quando de sua reprodução em cadeia, o ato processual é um átomo que possibilita com que o procedimento chegue ao final, seja resultando em um provimento ou na satisfação real do direito. Ou seja, o ato processual pode produzir efeitos “endo” ou “extraprocessualmente“.

A teoria da integração não ostenta uma visão isolada, mas coordena os diversos aspectos de uma dinâmica; na verdade, a teoria normativa que Fazzalari adota predispõe uma sucessão de normas, atos e posições jurídicas, assim consolidando a nota do “movimento” ao processo, como um procedimento em contraditório. O ato processual possui uma finalidade, uma estrutura e uma fonte normativa peculiares, o que surpreende uma definição tridimensional.

A definição de Fazzalari não aparece como um hiato doutrinário[29].

Embora sem explicitar uma sincera tridimensionalidade, Mario Dondina deixa a descoberta a articulação entre fonte, estrutura e funcionalidade, quando define o ato processual como una condotta volontaria, esplicata, secondo le modalità statuite dalla legge processuale, da uno o più soggetti, anche in tempi successivi, nell’esercizio di una potestà, dovere, diritto soggettivo, facoltà o mandato processuali, e diretta ad influire sulla costituzione, svolgimento, modificazione ed estinzione del processo.[30]

A teoria da integração, ou melhor, a coordenação das diversas correntes doutrinárias para definir o ato processual típico, oferece uma maior abrangência ao problema. Entretanto, dizer que é aplicável o regime ou os fundamentos de direito público ao ato processual não o afasta completamente do ato processualizado.

A definição do ato processualizado reclama um raciocínio de semelhante envergadura, com um exercício de coordenação das influências que caracterizam tal espécie de ato “do” processo, para assim instrumentalizar uma aproximação entre os planos do Direito e do processo, com a superação do dualismo exacerbado. Pensar somente no regime jurídico do direito material como um plano incomunicável ao processo, bem como pensar somente nos efeitos diretos ou secundários[31] que um ato produz no processo, é mecanismo isolacionista que não permite a diferenciação entre o ato processual e o ato processualizado.

A caracterização do ato processualizado, como também ensejou em relação ao ato processual, implica recortes de complexidade.

Com efeito, está assentado que o processo é o hábitat do ato processual. Dentre esses atos processuais, o formalismo do processo permite certo espaço de jogo à autonomia da vontade, ou seja, faculta a prática de negócios processuais (art. 190). Para evitar confusão com os atos processualizados, a feição dos negócios processuais propriamente ditos merece uma identificação precisa, e por isso que não se perdeu tempo quando da explicação da teoria do fato jurídico aplicável no processo, mas, sobretudo, pretende demonstrar que, embora tal caracterização, isso não pode ser confundido como o ato processualizado.

Saliento que os negócios processuais permanecem no plano do processo[32]. Apesar de apresentarem flexibilidade negocial, a sua fonte normativa é a lei processual, a estrutura atende ao rigor formal do processo e os efeitos diretos produzidos tocam ao processo civil. Fonte, estrutura e função peculiares, como acontece no acordo para a redistribuição do ônus da prova, no acordo para dilatação de prazo processual não peremptório, ou no acordo para eleição de um foro para o julgamento[33]. O presente parágrafo requer releitura.

De outro lado, o ato processualizado internaliza, ao processo, um negócio jurídico, mas não um negócio jurídico tipicamente processual.

Justamente nisso, a importância em identificar o diálogo entre os planos do Direito e do processo, o interesse na relação dinâmica entre o dualismo exacerbado e a relativização desse dualismo.

O negócio processual pertence ao processo, é um produto vivo do dualismo, faceta da autonomia do processo civil. Porém, o ato processualizado (seja um ato jurídico ou um negócio – ambos, de direito material) reflete a relativização do dualismo, uma instrumentalização na qual um negócio jurídico do direito material efetua um corte entre os planos do direito e do processo, para surtir efeitos, também, nesse último.

Não é a sede do ato processual ou do ato processualizado, ou mesmo uma organização estrutural, que separa as espécies. Não é a processualização ou a procedimentalização que diferencia um ato processual de um ato processualizado. A processualização, justamente, é o que os aproxima. A diferença entre ato processual e ato processualizado reside em uma convergência multifatorial, pois é necessário visualizar a fonte normativa de onde o negócio jurídico retira a sua força, a funcionalidade desempenhada pelo negócio jurídico e, consequentemente, a estrutura que ele passará a assumir.

Nesses termos, os atos processualizados são os atos ou os negócios jurídicos praticados pelas partes, nos termos do direito material (geralmente o direito civil), mas que são colocados para dentro do processo por um ato processual típico e geralmente transparente, porque, de alguma forma, se referem ao desdobramento do objeto do processo.

O hábitat natural do ato jurídico ou do negócio jurídico, que está na essência do ato processualizado, é o direito material e, apenas para produzir efeitos no processo, é que ele será internalizado no processo. Não é a simples processualização[34] que se encarrega de qualificar um ato jurídico como ato processual, todavia uma sorte conjugada de fatores. A processualização (estrutura) é apenas um fator, que deve ser somado à fonte normativa (regime) da essência e à função desempenhada.

Um exemplo talvez facilite.

A transação sobre o objeto do processo não pode ser considerada um ato ou negócio processual propriamente dito. Para diferenciar a transação de um ato ou negócio processual, no pior das hipóteses, ela pode ser reputada um ato ou fato “extraprocessual[35]. Agora, desde que inserida no processo, a transação assume a nota da processualidade, daí fica difícil defender a terminologia “extraprocessual” manuseada por Mario Dondina.

O que deve ser percebido é a natureza jurídica contratual da transação. Na essência, a transação é um contrato do direito civil (arts. 840 e ss. do CC/2002), por meio do qual, mediante concessões mútuas, a transação termina ou até previne um litígio, assim extinguindo ou evitando o processo jurisdicional[36]. Ou seja, o contrato transação altera a normalidade do desenrolar da atividade jurisdicional. Na ocasião de ser internalizada ao processo judicial, é certo que a transação passa a ostentar uma executividade análoga à de uma sentença. Em termos satisfativos, de tutela do direito, transação e sentença alcançam efeitos análogos (art. 487 do CPC).

Todavia, em termos normativos, a transação afasta a necessidade de uma decisão, pois, desde o momento em que celebrada entre as partes, torna dispensável que um terceiro imparcial julgue a questão. A transação sobre o objeto do processo é antípoda a um julgamento sobre o objeto do processo.

Quando inserida, no processo, e se abrangente de todo o objeto do processo, a transação é homologada e, a partir disso, possui a força de um título executivo judicial.

Agora, homologar não é o mesmo que decidir. Uma sentença homologatória somente processualiza, jurisdicionaliza, enfim, judicializa a transação, e lhe confere a nota de imperatividade, pela chancela oficial. No processo, os efeitos da transação são ratificados pelos efeitos da sentença que a homologa. Daí se falar em processualidade indireta[37] da transação, que é um ato processualizado: o seu hábitat normativo, o seu regime jurídico, a sua natureza jurídica é ditada pelo direito material, pois a transação é um contrato; os efeitos produzidos no processo não deixam de serem efeitos diretos, mas em alguma maneira mediatizados pela necessidade do ato processual típico que internaliza a transação no processo.

A questão da processualização dos negócios jurídicos do direito material chega a ser observada pela doutrina[38] abalizada sem, contudo, uma plena tomada de diferenças entre o ato processualizado e o ato processual. A teoria da integração é assaz utilizada apenas para justificar uma processualidade “eventual“:

Outros atos ou fatos jurídicos, não integrantes da cadeia procedimental, podem eventualmente comparecer no processo e nele surtir efeitos. Esses atos ou fatos jurídicos mostram-se, contudo, irrelevantes para o desenvolvimento normal do processo, pois, mesmo que não ocorram, o processo deverá seguir o curso previsto em lei e assim chegar ao seu fim.

Não podem, assim, ser considerados estritamente de caráter processual; não são atos processuais, sendo apenas atos ou fatos processualizados. Se esses atos ou fatos são levados ao processo pela parte ou partes, o juiz deve levá-los em consideração, pois passam a ser atos e fatos jurídicos processualizados e se integram ao procedimento.[39]

O aspecto de o ato processualizado não integrar o que de comum acontece na cadeia procedimental, como se fosse um indesejado parasita, não soluciona o problema. Até poderia parecer que o procedimento seria um feixe de normas, que sempre viria prontinho da fábrica, em abstrato, totalmente alheio ao direito material. Uma leitura que distancia o procedimento e a sua espécie, o processo, do direito material que os impregnam.

O processo e o procedimento vivem para o direito material que, sem aqueles, também não sobreviveria. De qualquer maneira, impende ressaltar que o ato processualizado não consiste em um escândalo ao procedimento[40], em um desvio de rota, pois a processualização do negócio jurídico do direito material acaba por integrar o ato processualizado ao procedimento.

Em analogia, basta imaginar a figura do terceiro (segundo o CPC: denunciação da lide, nomeação à autoria, entre outros). O que acontece quando um terceiro intervém no processo? A admissão do terceiro, no processo, automaticamente o transforma em parte. O terceiro “toma a parte no processo“. Um fenômeno que também identifico no ato processualizado. À medida que processualizado, uma vez inserido no processo, o ato ou o negócio do direito material passa a integrar um procedimento, pois adentra na série concatenada de atos, normas e posições jurídicas. É como se retirado o elo de uma corrente – outro elo acaba ocupando o seu lugar. A colocação de uma figura que, inicialmente, não era prevista no procedimento não é motivo suficiente para caracterizar tal ato como sendo um ato processualizado, ao invés de um ato processual típico.

O procedimento continua sendo praticamente o mesmo quando adiantado ou quando postergado o evento “provimento“, quando colocado um ato processualizado em um “procedimento“. Se o ato inicial (demanda) e o ato final (provimento) integram o procedimento, mudando o interstício ou o tempo entre um e outro, acaba não se alterando a natureza do procedimento em si mesmo, que continua sendo um procedimento, apesar da consorte do ato processualizado[41].

No mesmo sentido, a variação do procedimento por intermédio da prática de inesperados atos processuais – por exemplo, os “não atos” ou “omissões” -, não resulta em desnaturar o procedimento.

O novelo normativo que organiza a sequência prevê as consequências, inclusive, para as omissões (como a contumácia, o silêncio etc.), porque a sucessividade dos acontecimentos é implacável na complexidade do procedimento. As técnicas é que variam, como a preclusão. Paula Costa e Silva[42] afirma que o “processo chegará sempre ao resultado final, mesmo que, em concreto, os actos pensados pelo legislador não sejam praticados. Na sua expressão mínima, o processo pode ser simplesmente composto por dois actos, quando não haja sequer citação do réu, ou por três actos, sempre que, entre a propositura da acção e a sentença final, o réu seja citado, entrando em revelia absoluta e operante[43][44].

Na verdade, o ato processualizado altera o esquema básico da dialética abstratamente prevista para garantir o contraditório.

O ato processualizado, assim, modifica a estrutura do processo, é acidental ao processo, e não ao procedimento. Observe-se que existe uma gangorra: quanto mais cresce a autonomia privada, que pode proporcionar às partes a tutela do direito com base nas normas do direito material, mediante um contrato, em pleno processo, mais acaba diminuindo a necessidade da utilização do processo para, por intermédio da tutela jurisdicional, entregar às partes a tutela do Direito.

A autonomia privada dispensa o processo, chega a ser um reflexo da maturidade civil de um povo. O processo é necessário para solucionar contendas que exasperam a autorregulação. Portanto, o ato processualizado é acidental ao processo, sendo incorreto dizer que é acidental ao procedimento. O procedimento é sucessão de atos concretos e, retirado um ato, outro aparece em seu lugar nessa série, o que não deixa de ser previsível ao seu fio condutor.

O ato processualizado interfere na força do contraditório, na necessidade do processo enquanto organograma dialético e simétrico. A autonomia privada dos sujeitos parciais, no interior do processo, não violenta o devido processo legal?

Duas ordens de ideias respondem que não.

Em primeiro lugar, assim como qualquer direito fundamental, o contraditório não é uma norma absoluta e irretorquível, pois, no plano concreto, pode ser relativizado quando em confronto com outros direitos de semelhante envergadura. Em segundo lugar (e como decorrência mesmo dessa primeira percepção), os direitos fundamentais merecem uma análise conjunta ou dinâmica, porque salvaguardar um direito ao aniquilamento dos outros direitos é o mesmo que não garantir muita coisa.

O dever de tutela ilustra todo o panorama constitucional. Logo, o contraditório, a coisa julgada, o devido processo legal, entre os demais direitos fundamentais de cunho processual, devem ser interpretados e concretizados com a mesma preocupação que preenche o ato jurídico perfeito, um direito fundamental que aparentemente está esquecido, mas cuja força normativa está bem prevista no art. 5º, XXXVI, da CRFB. A autonomia privada – seja fora ou dentro do processo – não violenta o devido processo legal. Pelo contrário, transforma um processo tout court em processo justo, confere um conteúdo modal qualificado[45], em concreto, ao que abstratamente era percebido como devido.

Vale dizer que a autonomia privada explicitada pelo ato processualizado não altera o contraditório no sentido abstrato, mas apenas o relativiza o contraditório no sentido de movimento, no sentido de combatividade real, porque o ato processualizado subentende a convergência – uma antípoda ao litígio. A questão é que o negócio jurídico processualizado retira o litígio, o fundamento para o contraditório.

A importância jurídica do ato processualizado, para o processo, é produzir efeitos diretos sobre a necessidade do contraditório. A relativização da dialética simétrica e paritária organizada pelo contraditório, na prática, pode ser de alguma forma mitigada pela convergência das partes, por intermédio da autonomia privada. Por decorrência, o ato processualizado afeta a sobrevivência do processo, da decisão e da própria coisa julgada material.

O sentido dinâmico da norma do contraditório[46] é que pode ser relativizado, quando o processo experimenta os argumentos e contra-argumentos dos sujeitos parciais. O contraditório-movimento é que realmente pode ser elastecido na prática da intersubjetividade do processo, um contraditório que denomino “substancial ou real”[47], por questão de fundamento dele mesmo. Melhor dizer que é a falta de fundamento, então por ocasião da convergência entre as vontades. O esquema dialético permanece assegurado em sua latência, o que pertence à base democrática do direito processual civil.

Imperioso constatar que é a quantidade do contraditório, o seu coeficiente de combatividade real, que se torna relativizável pela autonomia privada. Não é a qualidade ou o ser do contraditório que se altera[48], não é o esquema do processo como um ambiente dialético, quando analisado o processo em termos abstratos.

A formidável heureca do ato processualizado é compreender que a sua colocação no processo altera a margem do decidível. O ato processualizado, de alguma forma, modifica a própria necessidade de uma decisão. Deveras, quando é necessária uma decisão?

A decisão é imprescindível nas ocasiões em que existem litígios latentes ou evidentes e, para os resolver, como o provimento interferirá no patrimônio jurídico de um dos sujeitos, é necessário um contraditório real e combativo, com a ampla defesa, para a solução do debate por intermédio da heterocomposição. A letra da Constituição subentende que o contraditório requer um litígio, quando estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV).

O dinamismo do processo enseja a definição do ato processualizado com o norte em sua funcionalidade, à medida que a autonomia privada afeta o coeficiente do contraditório e a decorrente desnecessidade de uma decisão. A dialética que estrutura o procedimento para se transformar em um processo, segundo Fazzalari, consiste nella partecipazione dei destinatari degli effetti dell’atto finale alla fase preparatoria del medesimo; nella simmetrica parità delle loro posizioni; nella mutua implicazione delle loro attività (volte, rispettivamente, a promuovere ed a impedire l’emanazione dell’atto); nella rilevanza delle medesime per l’autore dell’atto: in modo che ciascun contraddittore possa esercitare un insieme – cospicuo o modesto non importa – di scelte, di reazioni, di controlli, e debba subire i controlli e le reazioni degli altri, e che l’autore dell’atto debba tener conto dei resultati.[49]

A convergência é antípoda ao contraditório e torna dispensável o processo mesmo.

Não defendo um apequenamento do contraditório abstrato tampouco da ampla defesa, pois se trata de preciosas salvaguardas do devido processo legal, hoje compreendido como direito fundamental que principia e enfeixa os demais princípios processuais previstos na Constituição[50]. Ninguém pode ser privado da liberdade e de seus bens sem um processo justo e adequado, e o processo justo[51] é uma “condição necessária da confiança dos cidadãos na justiça[52], cuja margem do decidível se reforça valorativamente com espeque no background axiológico da Constituição, mormente na dignidade da pessoa humana.

Todavia, pensar em dignidade remete à civilidade das pessoas, o que implica um diálogo pendular entre o contraditório-litígio e a autonomia privada-negócio. Ao invés do debate entre as partes, o debate é entre a maneira de as partes exercerem o seu direito. Nesses termos, quanto mais autonomia as pessoas tiverem para celebrar acordos, quanto maior a real força normativa da autonomia privada, de outro lado, é menor a necessidade da intervenção da jurisdição para resolver litígios, pelo instrumento de uma decisão que se imutabiliza na coisa julgada. A gangorra do raciocínio trafega entre o seguinte: litígio supõe disputa e acordo subentende convergência, duas metodologias antípodas.

Ambas devem conduzir para o norte verticalizado pela tutela do Direito.

A questão que remanesce é até que ponto o contraditório pode ser relativizado? Qual o limite da flexibilização do contraditório por ocasião do acordo das partes?

Tal medida é diretamente proporcional à igualdade material das partes, à natureza do objeto do processo e o seu caráter social. Necessário atentar à verificação da natureza social ou meramente privada do seu objeto em análise (antigamente se denominava interesse “público” ou “privado“).

No atual quadrante, todos os direitos tutelados possuem uma conotação de “público”; do contrário, não seriam sequer tutelados. O que os diferencia é o “grau” de importância entre o que se denomina “público e privado“, na verdade, o grau de disponibilidade.

Mesmo em se tratando de coisa pública, pode haver disposição.

Por exemplo, a Administração pode até dispor do seu patrimônio, desde que exista uma previsão legal específica para tanto (arts. 17 e seguintes da Lei nº 8.666/1993). Em contrapartida, no direito privado, uma doação sem encargos dispensa formalidades, na hipótese de beneficiar um incapaz (art. 543 do CC). Seja o regime do direito público ou o regime do direito privado, existem requisitos para a disponibilidade em diferentes “graus[53], fatores que acabam por modificar as formas dos negócios. O rigor formal é uma predisposição que o direito coloca para sopesar a situação de paridade ou simetria que os sujeitos ostentem, a fim de poderem negociar o patrimônio com uma suficiência ética e equilíbrio que preencha os objetivos sociais da Constituição (art. 3º).

A forma deve atender a um valor.

A disposição de direitos, a celebração de convenções sobre o objeto do processo, que resulta na desnecessidade do contraditório e do processo, não obedece a uma formal nota do público-privado. Sejam os sujeitos de relações em direito público, sejam os sujeitos de relações em direito privado, o que vai influenciar é o “grau” de disponibilidade que afeta a forma para negociar os interesses ou o patrimônio. Em um sistema normativo como o jurídico, existem diferenças entre os compartimentos (entre direito administrativo e direito civil), bem como ocorrem diversidades dentro de uma mesma disciplina do direito (quando comparados diversos contratos ou diversas situações que um mesmo contrato pode assumir, como no caso da doação do direito civil). Realidade que denota a definição do antigo “caráter público” ou “indisponível” ser um aspecto normativamente pautado pelo “grau” de disposição em um ambiente ético e obediente ao background constitucional (a questão da igualdade substancial).

O mesmo se reflete no contraditório: não é o caráter público do processo que o torna imutável, mas o grau de variação da disponibilidade do objeto do processo, colorido pela natureza social da questão e que depende da isonomia material[54] dos sujeitos que, realmente, pautam a possibilidade da disposição. Quando maior a disparidade jurídica dos sujeitos (porque reúne aspectos econômicos, sociais, e que de alguma forma tocam ao ambiente do processo), menor a possibilidade da disposição do contraditório e da margem do decidível. Um regime de compensação[55] que instrumentaliza o contraditório pela lente da igualdade material e pelo caráter social do direito em análise. Isso tudo porque, como será visto, a homologação do acordo não julga nada; quem julga não homologa, quem homologa não julga.

No entanto, existe uma questão de direito prévia à homologação.

Antes de homologar, o juiz deve analisar a igualdade material dos sujeitos e o caráter social do objeto do processo.

Um aporte ressaltado até para o negócio processual típico (art. 190, parágrafo único, do CPC).

Isso não consiste em julgar, mas é ponderar o peso dos interesses em momento precedente à concessão de eficácia processual à convenção das partes sobre o objeto do processo. Todo o juízo supõe uma pré-compreensão. O ato de homologar, embora não julgue o objeto do processo, possui um juízo, que está presente nessa questão prévia à homologação propriamente dita. A interpretação é sempre devedora da compreensão; logo, antes de homologar, o juiz deve compreender ou ponderar a paridade substancial da convergência.

A proposta não fere a perspectiva vertical ou assimétrica do processo civil, apenas lhe ratifica um matiz colaboracionista. Quando as partes negociam sobre o objeto do processo, o negócio jurídico do direito material, que é inserido no processo civil, apenas afeta a posição que elas, ao mesmo tempo, ocupam em relação ao julgador. Entre as partes, o contraditório está sempre presente, ou melhor, o contraditório se transforma em uma convergência, porque as partes estão mais próximas que nunca, através da bem sucedida negociação intersubjetiva. Um fenômeno que empresta solução de civilidade e não despreza a jurisdição ou o processo, tampouco os remete à natureza de remédios de segunda ordem, mas preserva a feição específica da tutela do direito.

Pelo exposto, os atos processualizados possuem uma existência “acidental[56] ao processo, no sentido de não serem necessários ao deslinde natural até ao advento da decisão. O mais correto seria os denominar ato “procedimentalizado”[57], porque ele se insere no procedimento e produz o efeito de retirar a necessidade de um processo e de uma decisão.

O ato processualizado aparece para de alguma forma barrar, frenar, ou obstaculizar o contraditório, que qualifica o procedimento como um processo. Assim, afeta a necessidade de uma decisão e retira, consequentemente, a imutabilização pela coisa julgada (o diálogo que resulta em decisão é o que se imutabilizaria, dispensado o primeiro, queda o conseguinte).

Intuitivo concluir que o processo jurisdicional sobrevive sem os atos processualizados. O trâmite natural de um processo inicia com uma demanda, trafega no desenvolvimento com o contraditório e culmina na decisão. Essa é a regra geral das coisas. O ato processualizado aparece no processo para trazer convergência e retirar o seu antípoda, a necessidade do contraditório, o que, na prática, pode ser compreendido como a disposição do objeto[58] do processo – porque não existe processo sem o contraditório.

De outro lado, se o processo sobrevive sem o ato processualizado – que lhe é acidental -, o processo não subsiste sem a prática dos atos processuais típicos, que atuam como verdadeiros átomos daquele hábitat ou todo maior.

Para o estudo da “ação anulatória“, não interessam os atos processuais típicos. Sua análise é de obiter dictum. O art. 966, § 4º, do CPC reclama a compreensão do ato processualizado, porquanto observam a essência do ato ou negócio jurídico do direito material, cotejando-o perante o sistema de nulidades do direito material.

O ato processualizado é o objeto[59] da “ação anulatória“.

A internalização de um ato ou negócio do direito material para dentro do procedimento é efetuada por um ato processual típico, um ato de “processualização” (procedimentalização). Geralmente, esse ato processual de internalização apenas encobre negócio jurídico do direito material e o conjunto disso resulta no ato processualizado – ato ou negócio subjacente + ato processual típico -, e assim retira a necessidade do contraditório e abrevia ou elastece a solução da causa[60].

O ato processualizado encerra uma solução do objeto do processo por intermédio da autocomposição. Até certo ponto é verídica a regra geral que identifica o ato processualizado com a disposição do direito, o que está muito bem estabelecido no art. 966, § 4º, do CPC. À doutrina cabe sedimentar os contornos do ato processualizado, sua fonte normativa, estrutura e funcionalidade, para afastar reducionismos pragmáticos.

2 OS EFEITOS DA PROCESSUALIZAÇÃO E A QUESTÃO DA INVALIDAÇÃO DO ATO PROCESSUALIZADO (AÇÃO ANULATÓRIA)

O ato processualizado possui uma função específica no processo, porquanto limitando o coeficiente do contraditório em virtude da convergência dos sujeitos parciais. O ato processualizado é expressão da autonomia privada no ambiente processual.

A tutela do direito agradece – a tutela não trata de meros “direitos subjetivos“, antes considera o “interesse” como produto de posições jurídicas, e que reflete uma multifatorialidade de possibilidades satisfativas.

O ato processualizado possui uma funcionalidade, uma estrutura, e uma forma de execução ou cumprimento do ato ou negócio subjacente, totalmente diversa da realidade conceitual do título executivo extrajudicial. A função, para o processo, é quebrar o contraditório e, por decorrência, arrefecer o litígio processual, mesmo; a estrutura consiste em um ato ou negócio jurídico do direito material + o ato institucional; e a modalidade legislativamente eleita para a execução do ato processualizado é como se fora um título executivo judicial (art. 487), porque celebrado no interior do processo.

Com a lente focada na possibilidade de instrumentalizar as relações entre Direito e processo, por intermédio do dualismo moderado, ressaltar que a (a) fonte normativa do ato processualizado é o direito material. Através de um corte longitudinal na essência do ato processualizado, observar que a sua (b) estrutura é complexa, porque reúne um ato ou negócio jurídico do direito material + um ato processual geralmente invisível. Tudo isso – fonte normativa e estrutura – são muito mais consequências que pressupostos da (c) finalidade ou função desempenhada pelo ato processualizado, que é a função de realizar a tutela do direito dos sujeitos parciais do processo, com a força da autonomia privada, e, por decorrência, dispensar a necessidade do contraditório e do processo, enquanto métodos para resolver um litígio e se recrudescerem pelo método da coisa julgada.

Os fatores coordenam-se mutuamente para formar o ato processualizado, uma quintessência, com efeitos sobre o direito material e sobre o processo.

A lente da interpretação é o instrumentalismo entre o plano do direito material e o plano processual.

Um dualismo denominado moderado.

A teoria geral do direito e o seu capítulo da teoria do fato jurídico implicam efeitos no plano do direito processual civil. Os fatos, atos[61] e negócios jurídicos processuais, todos no sentido estrito, são realidades conceituais que também ultrapassam os planos da existência, da validade e da eficácia na ciência do processo.

A nota diferencial é que o processo civil organiza-se por intermédio de um qualificado formalismo de direito público, sobremaneira precavido da eventualidade do arbítrio, ao mesmo tempo em que garante a liberdade aos sujeitos processuais. Disso advém a necessidade de o fato processual típico obedecer a requisitos específicos: sujeito, objeto e formas definidas pelas regras próprias do processo civil.

A diferenciação entre o fato ou ato processual e o ato processualizado é fundamental para que seja estabelecido, por consequência, os diferentes regimes de invalidades aplicado a cada espécie desses atos do processo.

Com efeito, se a essência o ato processualizado é preenchido por um ato ou negócio jurídico praticado pelos sujeitos, nos termos do direito material, chega a ser intuitivo que o regime de invalidades do ato processualizado também obedece aos ditames do direito material. A internalização ou a processualização do ato ou negócio das partes é acidental ao processo, ocorre para transformar o contraditório em contingência de convergência (e vice-versa).

Portanto, a origem jurídica do ato processualizado não permite que o direito processual paute a respectiva motivação de invalidade[62]. Em outras palavras, o ato processualizado perpassa pelos planos da existência, da validade e da eficácia regrados pelo direito material, e não pela existência, validade e eficácia com referência às normas do processo civil.

Por outro lado, fácil constatar que o direito processual civil rege os planos de existência, da validade e da eficácia, então aplicáveis ao ato processual, o que é inerente à tipicidade desses atos. O problema da invalidade do ato processual é de outra natureza, bem diferente do problema trabalhado quando se fala na invalidade do ato processualizado – invalidades tipicamente processuais estão previstas nos arts. 246 e seguintes, além de normas esparsas, mas que são normas tipicamente processuais.

Juridicamente inaceitável[63] a aplicação de um sistema de nulidades por outro, porque regidos por princípios específicos. A dinâmica do processo enseja o império do princípio do prejuízo, apenas para citar um aspecto peculiar.

O ato processualizado está para o regime de nulidades do direito material (normas do direito civil, administrativo e demais categorias pertinentes), assim como o ato processual típico atende ao regime de nulidades pertinente ao direito processual (regulado pelas normas do Código de Processo Civil e legislação afim).

Calmon de Passos resume:

Somente os atos jurídicos de direito material comportam o exame da conformidade ou não entre a vontade interna e a vontade manifestada, entre a intenção e a declaração. Os atos que no processo parecem permitir tal exame, como a transação, em verdade são atos de direito material, com efeitos nitidamente substanciais, comportando a invalidação por ação direta e pelos meio próprios à invalidação dos atos jurídicos em geral. Eles são invalidados fora do processo, como atos de direito material, nos seus efeitos de direito material. Tais atos não são processuais, sim conteúdo de atos processuais.[64]

Imperioso atentar que o ato processualizado internaliza-se no processo por intermédio de um ato processual típico, e que geralmente é transparente. Contudo, existem hipóteses em que esse ato processual de internalização possui efeito e eficácia típica[65] da jurisdição, como no caso de um acordo sobre a separação entre os cônjuges que possui um filho menor de idade[66]. Por sobre a convenção das partes, deve haver um provimento jurisdicional que decreta a separação ou o divórcio do casal. Saliento que as partes concordam sobre o valor jurídico perseguido, isto é, concordam sobre os termos da tutela do direito e, por questão de política institucional, a ruptura da sociedade conjugal (separação) ou a ruptura do vínculo matrimonial (divórcio) reclama a chancela eficacial da tutela jurisdicional, pois o “decreto” da separação ou do divórcio depende de um ato de autoridade. Um ponto assaz desprezado pelos comentadores.

Por isso a tautologia ao frisar que, apenas “geralmente“, o ato processual típico que efetua a internalização do ato ou negócio jurídico das partes é transparente ou invisível, tendo em vista que existem hipóteses nas quais tal ato não é invisível porque empresta a força da tutela jurisdicional para que seja juridicamente possível a tutela do Direito.

De qualquer maneira, vale dizer que o ato processual e o ato processualizado não se confundem. Cada uma dessas espécies de atos do processo reclama um peculiar regime de invalidades.

Ato processual típico versus ato processualizado.

Ambos possuem uma característica fundamental que os aproximam pela superfície sensível – a nota da processualidade.

Qualquer semelhança não é mera coincidência. Daí a importância da vivificação das premissas metodológicas de análise para uma compreensão dos institutos do processo e do respectivo regime de invalidades, seja o aplicável aos atos processuais típicos (arts. 276 e seguintes do CPC), seja o aplicável aos atos processualizados (art. 966, § 4º, do CPC).

 

CONCLUSÃO

O ato processualizado consiste em um ato ou negócio tipicamente do direito material que é internalizado ao processo. Assim, ele repercute efeitos inerentes ao direito material, e somente pode ser desconstituído consoante as normas do direito material (art. 966, § 4º, do CPC).

O Código de Processo Civil modificou a topologia do instituto, porém manteve-se a essência, apenas elencando, expressamente, a figura do negócio jurídico processual – que é fenômeno diverso.

Tudo sopesado, é necessária a expressa menção normativa sobre o ato processualizado e sobre a ação anulatória, nos termos do direito material. Embora tal categorização seja heterotópica – norma de direito material colocada no bojo do CPC.

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[1] Prefácio do ensaio Teoria dos fatos jurídicos processuais, de Didier Jr. e de Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, p. 12.

[2] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, t. II, 1970. p. 184.

[3] Impossível, metodologicamente, reexaminar toda uma terminologia utilizada pela teoria geral do Direito e, inclusive, pela lógica jurídica. A noção do fato jurídico pertence à propedêutica de qualquer estudo jurídico. Logo, comentar com naturalidade esquemas como o “suporte fático” (conjunto de fatos) ou o “preceito” (programa consequencial da norma) subentende a pré-compreensão e o caldo de cultura do leitor.

[4] A categoria do ato jurídico no sentido largo é gênero ao qual pertence o ato jurídico stricto sensu e o negócio jurídico. De sua feita, o ato-fato jurídico situa-se a médio termo entre o fato jurídico e o ato jurídico – como um entre-lugares. Vale dizer que as presentes linhas apenas recapitulam o leitor sobre a matéria, que merece ser pormenorizada na bibliografia citada.

[5] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, t. II, 1970. p. 187.

[6] Pontes de Miranda salienta que “os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos são o campo psíquico dos fatos jurídicos. São os meios mais eficientes da atividade inter-humana, na dimensão do Direito. Neles e por eles, a vontade, a inteligência e o sentimento inserem-se no mundo jurídico, edificando-o” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, t. II, 1970. p. 446).

[7] Saliento que tanto os efeitos do ato jurídico como os efeitos do negócio jurídico são oriundos de preceitos pautados pela norma jurídica. Os efeitos dos fatos jurídicos em sentido amplo são determinados pela norma jurídica. Ou seja, não é tecnicamente aconselhável dizer que a vontade humana pode definir os efeitos ou as finalidades de um negócio jurídico. O direito é uma ciência normativa por natureza e, assim, preordena um esquema de normas e de possibilidades nas quais a própria norma proporciona aos sujeitos, como uma discrição, proibição, ou imposição. Pontes de Miranda expressa que, no ato jurídico, a “vontade é sem escolha de categoria jurídica, donde certa relação de antecedente a consequente, em vez de relação de escolha e escolhido. Toda caracterização do negócio jurídico como regulador de relações jurídicas, normativo, preceptivo, ou algo semelhante, deriva de engano, que é o de se crer na edição de normas jurídicas pelas pessoas”. Ao raciocínio-base pontiano, em poucas palavras, resumo o seguinte elemento de conexão inerente ao mundo jurídico: relação de condicionalidade jurídica. No ato jurídico, a condicionalidade chega ao extremo, determinando todas as consequências atribuídas a determinado suporte fático; no negócio jurídico, a condicionalidade permite alguma discrição, de maneira que os sujeitos podem adequar determinados efeitos nos limites à pauta normativa, de antemão colocada como alternativa. Ver MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, t. II, 1970. p. 447.

[8] A doutrina estrangeira também efetua a distinção, apesar de quedar no lapso da “finalidade”: “La moderna dottrina distingue ulteriormente gli atti giuridici in atti giuridici in senso stretto, consistenti in mere condotte umane materiali, operanti sul mondo esterno, che i loro autori vogliono in sè e per sè, indipendentemente dagli effetti che il diritto ad esse ricollega; e negozi giuridici, consistenti, secondo la prevalente opinione, in manifestazioni di volontà direttamente produttive di conseguenze giuridiche (poichè nel negozio giuridico non sempre l’agente si rappresenta l’effetto previsto dal diritto, sembra essere sufficiente che la volontà si diriga ad um fine pratico)”. Ver DONDINA, Mario. Atti processuali (civili e penali). Novissimo digesto italiano, I. Torino: Utet, 1957. p. 1519.

[9] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. Processo de conhecimento. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2002. p. 196-7.

[10] Aqui, a questão do “autorregramento” da vontade, quando os sujeitos podem dispor em maior ou menor autonomia com as alternativas que o plano das normas lhes faculta. Saliento que autorregrar a vontade é a possibilidade de preencher em concreto o conteúdo da norma jurídica, de acordo com o “espaço de jogo” que ela mesma permite à vontade dos sujeitos. Além de a norma permitir contratar, ou não, ela define alguns termos do negócio e deixa em aberto aos interesses dos sujeitos outros tantos interesses. Esse panorama, em sentido amplo, consiste na autonomia da vontade, no autorregramento da vontade. Diferente é a autonomia privada, que significa a produção de efeitos jurídicos a partir do que tenha sido negociado. Pontes de Miranda critica a terminologia “privada”, porque excluiria a autonomia em direito “público” – com efeito, também existem questões autorregráveis e que produzem efeitos no direito público. Ver MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, t. III, 1970. p. 54 e 56.

[11] Com propriedade, a doutrina estrangeira refere que a lógica da teoria do fato jurídico é utilizada no processo, por uma questão de método: “Considerato che la teoria generale degli atti giuridici contiene in definitiva la enunciazione di un metodo, attraverso il quale è dato di procedere ad una più accurata analisi del contenuto di ogni attività lecita od illecita, ne consegue che tale metodo deve essere applicabile ad ogni ramo del diritto, salve le integrazioni e varianti rese indispensabili dalle particolari caratteristiche di ogni singolo ramo”. Ver DONDINA, Mario. Atti processuali (civili e penali). Novissimo digesto italiano, I. Torino: Utet, 1957. p. 1520.

[12] A título de exemplo, brevemente, os fatos jurídicos do processo podem ser classificados por critérios como o utilizado pelo sujeito que o pratica, pela fase procedimental em que ocorre, ou pela função desempenhada, entre outros. A questão não é qual o melhor ou pior critério, mas a utilização prática que se pode extrair de cada qual. Por isso, explorei o critério da “vontade” no cerne do suporte fático eleito abstratamente pela norma.

[13] Em vista do rigor formal do processo, é discutível a possibilidade de existirem negócios jurídicos processuais. A doutrina apresenta divergências. Didier Jr. e Pedro Nogueira o admitem expressamente, classificam os fatos jurídicos processuais em fatos, atos e negócios processuais, chegando a elencar os atos-fatos processuais. Ver DIDIER JR., Fredie Didier; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 61 e ss. Contra, rejeitando a categoria de negócio jurídico processual, ver Calmon de Passos (Esboço de uma teoria das nulidades aplicadas às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 69). Dinamarco chega a escrever que o ato processual é voluntário por excelência e que essa vontade antecede o ato concreto externalizado no processo. “Isso não significa que os efeitos do ato processual sejam sempre todos aqueles, apenas aqueles e precisamente aqueles programados pelo sujeito que o realiza. A vinculação entre ato e efeito programado é característica dos negócios jurídicos e os atos processuais não têm essa qualificação. Eles produzirão os efeitos desejados pelo agente se assim a lei autorizar e produzirão efeitos não desejados, se isso for disposto pela lei. De todo modo, algum efeito produzem sobre o processo, com ou sem a vontade do agente de produzi-lo. Os efeitos dos atos processuais são sempre os que resultam da lei e não necessariamente da vontade” (Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, v. II, 2003. p. 472). No mesmo sentido da negativa, ver MARDER, Alexandre Salgado. Das invalidades no direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 45/6. Particularmente, além dos negócios jurídicos do direito material que são internalizados no processo e formam a quintessência do ato processualizado, penso que é possível um negócio jurídico processual propriamente dito – como exemplos, imagino a convenção para estipulação do ônus da prova, o acordo para a fixação do foro de eleição e o pacto para a flexibilização de um prazo processual não peremptório. A título de “ação anulatória”, necessário manter o foco naquilo que comentei na introdução, o dogma da absoluta divisão dualista e a instrumental aproximação entre os planos do direito-processo no atual quadrante constitucional. Com efeito, apesar do rigor formal do processo, o dualismo permite identificar negócios jurídicos processuais. Agora, esses negócios processuais, que são bastante raros e pontuais, não se confundem com um negócio do direito material e que é internalizado no processo para dispensar o processo, o que consiste no ato processualizado. Nesse último, a ponte entre o processo e o direito material é evidente, e o ponto de partida é o direito material – e por isso parece tão difícil ao processualista a visualização, porque apenas como ponto de chegada ocorre o efeito no processo.

[14] Levando a extremos científicos, atos “do” processo não seria uma terminologia mais precisa. Como será examinado, o ato processualizado é um conjunto de um ato ou negócio jurídico do direito material que, ocasionalmente, é colocado “no” processo. Ou seja, tal ato ou negócio não pertence “ao” processo, não é “do” processo, mas é apenas emprestado ao seu regime interno do processo, o que consiste na sua processualização. Uma questão meramente acadêmica.

[15] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Trad. da 2ª ed. italiana por Paolo Capitanio. 2. ed. Campinas: Bookseller, v. III, 2010. p. 21/2.

[16] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, v. II, 2003. p. 198.

[17] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicadas às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 44.

[18] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicadas às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 45.

[19] SATTA, Salvatore. Direito processual civil. Trad. Luiz Autuori. 7. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, v. I, 1973. p. 228/9.

[20] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Op. cit., p. 196.

[21]  CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. Trad. Adrián Sotero De Witt Batista. Campinas: Servanda, v. I, 1999. p. 477.

[22] Op. cit., p. 43.

[23] O processo civil é um campo do rigor formal. Apesar de seus atos serem colocados no cenário do “tipo” e da “tipicidade”, isso não afasta por completo um espaço de jogo à vontade. Somente ocorre que, a depender do “grau” de formalismo, o espaço de jogo é mais ou menos restrito. A colocação de uma conduta no processo não retira a essência dos atos humanos – a vontade -, uma ideia que consiste em um vetusto dogma. O clássico axioma do liberalismo que, em nome da “garantia da forma”, retirava qualquer lembrança da autonomia da vontade do cenário processual não merece uma conservação absoluta na atualidade. A mensagem do formalismo ou da tipicidade merece reparos contemporâneos, primeiro, para diferenciar o que é do processo para com o que “está” eventualmente no processo – é o caso do ato processualizado; em segundo lugar, para lembrar que mesmo o que é do processo, como o ato processual típico e, entre os quais, o ato postulatório, pode apresentar vícios no aspecto da vontade e merece correção, seja no plano eficacial (do provimento final) ou pela via rescisória. O ordenamento oferece medidas para tanto. O tipo e a tipicidade, enfim, o rigor formal não mais possui o argumento de autoridade de afastar por completo a questão da vontade no processo civil.

[24] Idem, p. 49.

[25] Fazzalari não apenas refere que o ato processual seria o ato do procedimento. Isso consistiria interpretar o texto do autor de maneira açodada. Na verdade, Fazzalari agenda o fenômeno ato processual-procedimento como átomo-molécula e, nesses termos, reflete toda a sorte de efeitos, estruturas e fundamentos, que decorrem desse dinamismo. A hermenêutica utilizada é normativa, como assaz ocorre na ciência do Direito, mas uma normatividade coetânea ao dinamismo do processo, e não matéria-importação do direito material.

[26] FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Trad. da 8ª edição por Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006. p. 127.

[27] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de; MITIDIERO, Daniel Francisco. Curso de processo civil. Teoria geral do processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 282.

[28] SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 171.

[29] Mario Dondina deixa em aberto a questão do ato processualizado. De outro lado, Vittorio Denti parece não o desconectar da figura dos negócios processuais propriamente ditos, embora utilize uma definição que conjuga fatores, ora denominada definição tridimensionada: “Il problema, quindi, si risolve attraverso una corretta ricostruzione della fattispecie dell’atto nei suoi elementi costitutivi, necessari e sufficienti per la produzione dell’effetto”. Ver DENTI, Vittorio. Negozio processuale. Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. XXVIII, 1978. p. 138.

[30] DONDINA, Mario. Op. cit., p. 1519.

[31] REDENTI, Enrico. Derecho procesal civil. Trad. Santiago Sentís Melendo y Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: Ejea, t. I, 1957. p. 188.

[32] O negócio jurídico processual propriamente dito consiste em uma convenção sobre aspectos tipicamente processuais. Aqui deve ser compreendida a dicotomia entre direito processual e direito material, porque os sujeitos acertam operações estranhas ao estrito objeto do processo, como no exemplo do acordo para eleição do foro competente (art. 111 do CPC), na convenção que disponha sobre o ônus da prova (art. 333, parágrafo único), ou no adiamento de algum prazo não peremptório (art. 181). Evidente que esses negócios jurídicos acarretam consequências instrutórias e motivacionais, temporais, ou até competenciais, ao desdobramento do processo e, de alguma maneira, podem influenciar a sorte ou na maneira como seria decidido o objeto do processo. A condicionalidade não é apenas jurídica, mas, uma lei da própria natureza. O problema não é sobre o influenciar ou não, mas o “como” influenciar e o “grau” de influência que o negócio processual pode despertar. Porque uma coisa é dizer que o negócio processual transferiu a demanda para a competência de um juiz que decidirá a questão diferente daqueloutro, ou que o ônus da prova sobrecarregou uma parte negligente, ou que ao tempo da decisão sobreveio um entendimento jurisprudencial que fulminou a pretensão. Outra coisa bem diferente é avistar que o negócio jurídico que toca o objeto do processo altera a margem do decidível – como acontece no ato processualizado e não acontece no ato processual -, à medida que dispensa o próprio julgamento.

[33] Os negócios processuais no sentido estrito permitem a colocação de determinações inexas (cláusulas de termo ou condição) para os autorregularem.

[34] Instituições de direito processual civil. Trad. 2ª ed. italiana por J. Guimaraes Menegale. São Paulo: Saraiva, v. III, 1965. p. 20.

[35] DONDINA, Mario. Op. cit., p. 1519.

[36] A espécie “processo” não é estritamente da jurisdição, como salienta Fazzalari, com explícita remessa a Benvenuti, nos escritos citados. Também existe processo, por exemplo, nos processos administrativos, nos quais o provimento pode surtir efeitos no patrimônio jurídico do sujeito postulante, e a relação para com a Administração, assim, deve ser paritária e simétrica. Da mesma forma que existe processo em relações extrajurisdicionais entre particulares, basta imaginar a hipótese de uma corporação ou sociedade processualizar a exclusão de um integrante ou sócio, permitindo o contraditório e a ampla defesa para tanto. Mais fácil ressaltar que existe processo na jurisdição voluntária, atualmente, essa conclusão parece evidente.

[37] Não chega a ser completamente correto falar em processualização indireta, reflexa ou mediata. Ora, a colocação do negócio jurídico do direito material no processo ocorre de maneira direta. O negócio é fincado no processo para afastar a necessidade do processo. Ocorre é que o negócio existe para tutelar o direito dos sujeitos, e o processo, em sua inteireza, é um instrumento para possibilitar essa missão. Mesmo que, para tanto, o melhor que existe para o interesse das partes seja a dispensa do próprio processo, como um efeito da celebração do negócio do direito material. Uma questão de semântica.

[38] A doutrina critica a falta de estudos sobre o tema e chega a formular um esboço sobre a vontade nas convenções processuais formuladas pelas partes. Todavia, não acerta uma distinção entre uma convenção processual e um ato processualizado. A ausência de diferenciação se deve ao fato de o autor não reputar o processo um procedimento em contraditório. Tratar o processo como uma relação jurídica coloca todos os atos “do” processo na mesma categoria de ato processual. Não sobra espaço para o ato processualizado. Ver MOREIRA, José Carlos Barbosa. Convenções das partes sobre matéria processual. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 87 e ss.

[39] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de; MITIDIERO, Daniel Francisco. Curso de processo civil. Teoria geral do processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 282-3.

[40] A doutrina majoritária acaba vinculando o ato processual ao procedimento, uma influência significativa de Fazzalari. Ver MOREIRA, José Carlos Barbosa. Convenções das partes sobre matéria processual. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 93. O ensaio salienta o papel da vontade nos atos processuais, inclusive, deixando aparente uma opção por aceitar a espécie dos negócios processuais ou convenções processuais das partes sobre a matéria processual. O que é de grande relevo para a época em que fora escrito, tempos em que predominava um dualismo estrito. Porém, não chega a distinguir o ato processual do ato processualizado.

[41] Os atos processualizados obstaculizam a rotina do processo (não do procedimento). Com ou sem o ato processualizado, o procedimento chegará até o seu ato final previsível, o provimento judicial. O que se altera, na verdade, é a necessidade ou a qualidade do provimento em si mesma, porque, ao invés de um julgamento, haverá uma homologação ou, pelo menos, a retaliação do objeto do processo (independente da fase em que esteja, conhecimento ou execução). A alteração acontece sobre a margem do decidível.

[42] O grande pecado da tese da Paula Costa e Silva, que não a permitiu identificar a diferença entre os negócios processuais (que são espécies de atos processuais típicos) e os negócios do direito material colocados no processo para afetarem o contraditório (atos processualizados), deve-se à respectiva compreensão da natureza jurídica do processo. Inicialmente, a autora rejeita a tese da relação jurídica e da situação jurídica e coloca o processo como um fenômeno dinâmico em sequência de atos. Agora, a autora não diferencia nitidamente o processo do procedimento, praticamente acaba os tratando como sinônimos e, inclusive, chega a dizer que o procedimento administrativo somente não é processo porque não existe a “imparcialidade” – ou seja, ela despreza o modal qualificado pelo contraditório e retorna à velha máxima da estraneidade, quiçá, neutralidade. Deveras, o contraditório é a medida essencial para a definição do processo: o processo é o procedimento em contraditório. Ver SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 126/8.

[43] SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 120.

[44] Mais adiante, Paula Costa e Silva aparentemente se contradiz, ao dizer que os negócios jurídicos do processo não pertencem à cadeia procedimental: “Não tendo existência necessária, os negócios não podem ser previstos enquanto actos regulares da cadeia paradigmática estabelecida pelo legislador, uma vez que esta apenas prevê a sequência que permitirá chegar à decisão final”. A contradição é apenas aparente. O percuciente leitor não se deixará enganar e identificará o endereço da falta: a autora utiliza o paradigma que a todo o processo deve haver uma “decisão”, esquecendo que o negócio jurídico internalizado no processo, justamente, dispensa o julgamento ou decisão e reclama, assim, a “homologação”. Essas espécies de sentenças – não de decisões – não acarretam uma quebra do procedimento. O procedimento continua em sua continuidade-padrão, o que se altera é o processo, porque afetado o coeficiente reitor do contraditório substancial. Ver SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 173.

[45] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela, cit., p. 131.

[46] O contraditório é uma metodologia de duas frentes: uma frente que coloca em contraposição as partes reciprocamente, permitindo um diálogo franco e paritário para que cada qual defenda seu interesse; e outra frente que coloca ambas as partes em posição de direcionar seus argumentos perante o órgão julgador, promovendo, de maneira persuasiva e demonstrativa, aquilo que elas reputam verídico, na tentativa de fazer valer a sua verdade para o terceiro imparcial. Um princípio cujo motor é uma metodologia multifuncional.

[47] Todo o processo estabelece em abstrato um esquema dialético, que consiste no contraditório formal. Por “formal” não subentendo um predicado equivalente à igualdade formal do liberalismo clássico, mas um contraditório fundado em uma paridade de armas que contemple mesmo a realidade social e os fatores concretos dos sujeitos em possível debate. Agora, o contraditório formal atua no plano das normas, no plano deontológico, do que é ideal para a manutenção da justiça, do que é previsto em abstrato. Densificando esse arquétipo, é necessário o contraditório real ou substancial, que repercute os termos daqueloutro, só que no plano da combatividade, na própria dinâmica ínsita ao processo civil. Esse contraditório substancial pode ser mitigado ou relativizado, de alguma forma modificado, oportunidade em que diminui a nota da litigiosidade ou da necessidade do processo para crescer a influência da autonomia privada, todas as quais direcionadas à tutela do direito: tudo reflexo do processo justo no plano da vida das pessoas, ora elastecido pelo ato jurídico perfeito. Uma percepção dos esquemas do processo em abstrato e em concreto não causa surpresa, basta ver FAZZALARI, Elio. Procedimento e processo (teoria generale). Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. XXXV, 1986. p. 821 e ss.

[48] Fazzalari deixa implícita essa categorização de “grau” de contraditório, quando comenta que o esquema dialético está sempre presente no processo de jurisdição voluntária: “Il conflitto di interessi (o sul modo di valutare un interesse) potrà costituire la ragione per cui la norma fa solgere un’attività mediante processo, ma, intanto si può parlare di processo, in quanto si Constantino, ex positivo iure, la struttura e lo svolgimento dialettico sopra illustrati. In assenza di tale struttura, è vano indagare intorno ad um attuale o eventuale conflitto d’interessi: dov’è assente il contraddittorio, cioè la possibilita, prevista dalla norma, che esso si realizzi, ivi non c’è processo. Così, mentre è di certo possibile cogliere l’impiego del processo nella giurisdizione volontaria quante volte la norma disponga il contraddittorio, non sembra, invece, teoricamente lecito configurare un processo di volontaria giurisdizione senza contradittorio”. A porta do contraditório e do esquema dialético-formal que o garante no sentido forte está aberta na jurisdição voluntária, em maior ou menor “grau”, nos termos da elasticidade das normas que regulamentam esse quadro da jurisdição. O teor da litigiosidade, o princípio da demanda, o comportamento das partes, e a cognição exigida do juiz como terceiro imparcial, são fatores que influenciarão a “medição” desse contraditório, para a estabilização da matéria colocada em juízo através de duas formas: como um ato jurídico perfeito ou como uma coisa julgada – hipótese em que existe a homologação ou o julgamento. Situações que serão aprofundadas abaixo. Ver FAZZALARI, Elio. Processo. Teoria generale. Novissimo digesto italiano. Torinese, v. XIII, 1957, em especial, p. 1073.

[49] FAZZALARI, Elio. Procedimento e processo (teoria generale). Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. XXXV, 1986. p. 827.

[50] MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 196.

[51] A justiça do processo exige uma coloração axiológica, com o reencontro das finalidades constitucionalmente válidas e o reforço da estrutura que reforça deontologicamente a colaboração dos sujeitos na dialética policêntrica. Não basta um processo, mas que ele seja um processo justo, “con il richiamo alla ‘giustizia’ del processo si intende sottolineare che non è sufficiente l’osservanza formale delle regole processuali, ma occorre recuperare l’aspetto etico, oltre che logico, del processo, a cominciare dal comportamento leale delle parti”. Ver PICARDI, Nicola. Manuale del processo civile. 3. ed. Milano: Giuffrè, 2012. p. 235.

[52] MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 201.

[53] O regime de imputação utilizado pela ciência jurídica dispõe as suas matérias-primas sobre diferentes “graus” de organizatividade. Expressamente, Kelsen rejeita (p. 402, nota de rodapé da Teoria pura do Direito) a ideia de uma “graduação” da coisa jurídica; todavia, implicitamente, ele trabalha com exemplos e agenda referências que denotam um acerto da tese de um escalonamento em “graus”. Basta observar quando o autor comenta a teoria do órgão para com a pessoa jurídica e os “graus” da violação ultra vires, bem como na oportunidade em que relaciona a representação legal e a voluntária (em especial, p. 180 e 205/7, do Teoria pura do Direito). Ver KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

[54] MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 209 e ss.

[55] Esse regime de compensação é de maneira implícita avistada por Nicola Picardi, quando comenta a necessidade do contraditório forte – uma “força” que não possui dimensão exata -, mas que possui uma função de manutenção da igualdade das partes, uma razão social qualificada. “Il contraddittorio in senso forte ha un funzione compensativa delle ineguaglianze che, per la natura delle cose, existono fra le parti (ad es. fra governanti e governati; fra ricchi e poveri); esso comporta che il processo assicuri reciprocità ed uguaglianza e, quindi, sia impostato sulla base di rapporti paritetici, su quello che è stato chiamato l’ordine isonômico” (PICARDI, Nicola. Manuale del processo civile. 3. ed. Milano: Giuffrè, 2012. p. 234).

[56] Sem utilizar a denominação “ato processualizado”, considerando-o como um negócio processual (o que é um equívoco), Vittorio Denti chega a referir uma transação ou uma conciliação (negócios jurídicos processualizados) não produzem efeitos para o processo, mas são relevantes para o processo. Ver DENTI, Vittorio. Negozio processuale. Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. XXVIII, 1978. p. 141.

[57] Por questão de fixação do conteúdo, o texto permanece utilizando a terminologia “ato processualizado”, apesar de tecnicamente ser mais correto o nome “ato procedimentalizado”.

[58] Na prática, o ato processualizado retira o processo de cena. Academicamente, é ques­tionável se a disposição recai sobre o processo mesmo, sua estrutura qualificada pelo contraditório, ou sobre o objeto do processo. Particularmente, mais palatável falar que os sujeitos disponham de um objeto. Um objeto consistiria em uma coisa passível de disposição. Nossa lente kantiana indicaria tal raciocínio. No entanto, geralmente, a convenção sequer toca no objeto do processo, mas de alguma forma altera a necessidade do contraditório. A questão é das mais complexas. É tênue e, certamente, despertará profícua discussão.

[59] A noção é fundamental: no plano do direito material, são analisados os atos e negócios jurídicos praticados pelas partes. Tais fenômenos de direito material, pela função que desempenham no processo, são trazidos para o interior do procedimento. O link de conexão entre o plano material e o processo se realiza por um ato processual típico e geralmente transparente, responsável pela colocação daqueles atos e negócios no interior do processo. Daí resulta a aparente confusão: sempre haverá um ato processual típico – seja ele bem visível, ou transparente em termos de efeitos, como na grande maioria das hipóteses, porque esses últimos possuem a singela finalidade de internalizar o ato ou o negócio jurídico praticado pelas partes no plano do direito material.

[60] Serem “irrelevantes ao atingimento da eventual atividade decisória” significa que os atos processualizados abreviam o processo. O ato processualizado abrevia uma latente ou evidente litigiosidade, que seria pressuposta da decisão, do julgamento, consoante será analisado. Daí referir que a essência do objeto da ação anulatória é um ato regulamentado pelo direito material: basta observar a transação, a renúncia o direito, o reconhecimento do pedido – situações que extinguem o processo, mas não exigem o julgamento do mérito, apesar de “resolverem” o mérito. Parece açodada a referência de José Rubens Costa quando escreve que “atos da parte expostos à ação anulatória serão todos os que não conduzam à solução de qualquer conflito, os praticados na jurisdição voluntária, no processo cautelar, os de desistência da ação de conhecimento ou de execução, os de substituição de tutores, curadores, arrematação, adjudicação, remição, etc.” Com efeito, diz o ditado que “o que não tem solução, solucionado está” – ou seja, o ato processualizado não retira a solução do processo, entretanto, abrevia a solução, arrefecendo o contraditório e de alguma forma, na prática, correspondendo a uma disposição do processo e da necessidade de uma decisão e da coisa julgada. Afinal, o ato processualizado é um “ato jurídico perfeito” e isso tem a mesma envergadura de direito fundamental equivalente à coisa julgada. Ver Ação desconstitutiva de ato processual. Revista Forense, n. 383, p. 194.

[61] Inclusive, existe a defesa dos atos-fatos jurídicos no certame processual, consoante Didier Jr. e Pedro Nogueira, op. cit., passim.

[62] O ato processualizado não prescinde do ato processual típico, ou melhor, depende de um ato processual típico e geralmente transparente para se internalizar no processo. Todavia, para a finalidade demonstrativa, interessante tratar as duas realidades como se antípodas o fossem: ato processual típico versus ato processualizado.

[63] TALAMINI, Eduardo. Notas sobre a teoria das nulidades no processo civil. Revista Dialética de Direito Processual, n. 29, p. 41.

[64] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicadas às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 63.

[65] Recordo que o dispositivo permite uma dupla ordem de interpretação. Primeiro, que, sobre a tutela do direito providenciada pelas próprias partes, seja somado o efeito da tutela jurisdicional que, assim, “decreta” a desconstituição da sociedade conjugal ou o vínculo matrimonial. De outro lado, o sistema normativo permite interpretar que por sobre a tutela do direito acertada pelas partes, a jurisdição apenas promove a “publicização” da ruptura da relação jurídica, da mesma sorte que ocorre no registro de uma escritura pública para adquirir um imóvel. Tanto que, no caso de o casal não possuir filhos menores, a separação ou divórcio é celebrada diretamente em cartório extrajudicial. Isso não é mera coincidência, mas o sistema normativo preordenando meios para o atingimento de uma mesma finalidade. A diversidade de interpretações, na prática, não altera a questão do problema da “ação anulatória” e de seu objeto. Agora, é interessantíssima questão, quiçá, não meramente acadêmica.

[66] Vide art. 1.124-A do CPC.